José Carlos Mucangana
Subsídios para a caboverdeanidade (5):
A nova linguística soviética e como foi que Estálhine esclareceu os
camaradas desorientados, que misturavam política e ideologia com a linguística,
na Universidade de Baku. Estálhine
parece ter aprendido com os seus erros, depois do gulague e do respectivo
holocausto, tornou-se promotor da liberdade de opinião na ciência.
A experiência
relativamente recente da União Soviética (URSS) mostrou-nos que, quando os
cientistas e investigadores misturam a política com a ciência, esta última
afunda-se. O académico ucraniano Trofim
Denisovich Lysenko (1998-1996) tornou-se célebre por ter defendido uma genética
proletária, oposta à genética burguesa americana. Para ele, os genes eram conceitos
burgueses. Desta maneira, por falta de
genes, a genética soviética perdeu a sua razão de ser e definhou. T. D. Lysenko, o membro da academia, que
prejudicou a genética, desviando-a do campo da ciência para o campo da
política, como escreveu o Doutor Almerindo Lessa (1960, Seroantropolgia das
Ilhas de Cabo Verde, Mesa-redonda Sobre o Homem Caboverdeano, Mindelo, 21 a
24 de Julho de 1956, Junta de Investigação do Ultramar, Estudos, Ensaios e
Documentos Nº 32, 159 p.), era bem conhecido em Cabo Verde e a sua genética sem
genes foi discutida durante a mesa-redonda do Mindelo sobre o homem
caboverdeano, em 1956, à qual participaram 23 investigadores caboverdeanos, 1 indo-português
e 6 portugueses.
Disparates deste
quilate surgiram também, na linguística soviética. Após o golpe de estado do partido
bolchevique, que ficou conhecido por grande revolução socialista de Outubro, um
professor da Universidade de São-Petersburgo, Nicholas
Yakovlevich Marr (1864-1934), decano do Departamento das
Línguas Orientais, que era filho de pai escocês, e tinha nascido de mãe
georgiana, na Transcaucásia, aderiu ao marxismo-leninismo, que estava
oficialmente na moda, e quis interpretar a linguística à luz dessa doutrina
política. Tratava-se dum profissional de mérito reconhecido, que, só depois da
revolução, se tornou marxista-leninista.
Aderiu ao partido bolchevique, provavelmente a toda a pressa para
defender a sua cátedra e não ser saneado, e depois tentou ser consequente, estudando
o marxismo-leninismo, inspirando-se deste na sua actividade profissional, a que
tentou dar um cunho original e criador, como todos os verdadeiros
cientistas. Estas tentativas levaram-no
a misturar a política com a ciência, a sua obra científica ficou esterilizada
pela política e deixou de ter interesse.
A partir daí, teve uma
carreira brilhante e tornou-se o mandarim da linguística soviética com a sua
“nova doutrina linguística”, segundo a qual a noção de protolíngua era fictícia
e as línguas nacionais se tinham formado pela convergência de numerosos
dialectos tribais, uma origem “sociolinguística” antes da letra (Manuel Monteiro da Veiga, 1995, p. 19, O crioulo de Cabo Verde-Introdução à gramática do Crioulo,
Instituto Caboverdeano do Livro e do Disco, Praia, 490 p. Ver Subsídio 9.). A linguística comparada era “burguesa” ao
passo que a sua “nova doutrina linguística” era marxista e proletária, porque,
segundo ele, as línguas tinham evoluído, com as lutas de classe, como parte
integrante da superstrutura ideológica.
Recebeu o prémio Lênine em Janeiro de 1934, ano em que morreu e teve
funerais oficiais (René L'Hermitte, 1984, Science et perversion idéologique: Marr, marrisme, marristes, une
page de l'histoire de la linguistique soviétique, Institut d’Etudes Slaves, Paris, 104 p.).
A linguística
soviética foi dominada pela nova linguística de classe até que Marr e os seus
discípulos da Universidade de Baku, Azerbaijão fossem criticados pessoalmente
pelo primeiro tsar (= imperador) da URSS, Yosif Visarionovitch Djugachvili,
conhecido pela sua alcunha Estálhine e caucasiano como N. Y. Marr (Joseph
Staline, 1950, A propos du marxisme en linguistique, in Derniers Ecrits 1950-53, Editions Sociales, Paris, p. 11 –
59).
Estáline negou que a
língua fosse uma superestrutura (institucional e cultural) acima da base
social, que definiu como “regime económico da sociedade a uma dada etapa do seu
desenvolvimento”. Lembrou que quando o
regime económico se modifica, aparece a superstrutura que corresponde ao novo
regime, mas que isso não acontece com a língua.
Exemplificou com a língua russa, que se manteve essencialmente a mesma,
enquanto que a sociedade russa tinha atravessado três regimes económicos
diferentes, feudalismo, capitalismo e socialismo, assim designava ele o capitalismo
de estado, com as respectivas superstruturas diferentes. Sublinhou que a língua é radicalmente
diferente da superestrutura.
A seguir vamos resumir
os principais esclarecimentos feitos por Estálhine, no seu estilo pesado e
repetitivo, como respostas a questionários e a cartas de linguistas e membros
do seu partido único. Começa por
lembrar, que não sendo linguista, não poderia dar inteira satisfacção aos seus
camaradas mais competentes do que ele em linguística, mas que podia falar com
conhecimento de causa das relações entre o marxismo e as ciências sociais. Era um autodidata, que mostrou, nos seus
últimos escritos, ter espírito prático, aberto às realidades e pouco dogmático.
(1) Contrariamente
à superestrutura a língua “não é obra duma classe qualquer, mas de toda a
sociedade, de todas as classes da sociedade, (…) é criada como língua do povo
inteiro, única para toda a sociedade”. É
uma ferramenta de comunicação entre os homens e o seu papel “não consiste em
servir uma classe em detrimento das outras, mas serve indiferentemente toda a
sociedade, todas as classes da sociedade.”
Acrescenta, mais adiante, que a língua “serviu de igual
modo os membros da sociedade, independentemente das suas condições sociais” e
que
(2) a língua “está directamente ligada à
actividade produtiva do homem”, por outras palavras ao trabalho.
Foi como língua de
trabalho que os caboverdeanos ensinaram a sua língua materna, primeiro na Ásia e
na África, a seguir, no Brasil e depois nas Guianas e Antilhas, aos escravos
que lá encontraram e aos que iam chegando numerosos de África.
Entre as outras
opiniões e comentários de Estálhine para esclarecer os “camaradas
desorientados”, interessa citar ainda mais dois.
(3) “Não se pode compreender as leis do
desenvolvimento duma língua, sem estudá-la em relação estreita com a história
da sociedade, com a história do povo ao qual pertence a língua estudada, seu
criador e falante.”
Infelizmente a longa e
rica história do povo caboverdeano está insuficientemente conhecida e estudada
dentro do Arquipélago e ainda menos conhecida e estudada está a história da nação
caboverdeana espalhada pelo mundo, no império português e como ramo da diáspora
da nação portuguesa portuguesa, porque a história oficial portuguesa, tem
escondido e ignorado, até hoje, páginas e capítulos importantíssimos da
história de Portugal e seu império.
Voltaremos a discutir mais demoradamente este assunto em subsídios que
se seguem. Ainda vamos a tempo de
eliminar esta grande lacuna e desenvolver o estudo da história das diásporas
caboverdeanas nas nossas universidades.
Infelizmente os
crioulistas do século XX gastaram os seus preciosos recursos para tentar
compreender a formação das línguas crioulas com a ajuda da sociologia, quando
deviam ter estudado a história dos seus falantes. Acumularam milhares de páginas de trabalho
inútil. Já não vamos a tempo de
recuperar todos os esforços desperdiçados, esta lacuna e desorientação dos
crioulistas deu como resultado, durante um século de abnegado trabalho
intelectual, inúmeros disparates, meio século antes e meio século depois de
Estálhine se ter debruçado sobre a glotologia ou linguística.
Estáline criticou mais
do que a perversão ideológica da linguística.
Criticou também as escolas sectárias que se tinham formado nas
universidades a partir dessa perversão e do culto dogmático prestado ao
mandarim e suas teorias sem fundamento científico.
(4) “Está universalmente reconhecido que não
pode haver ciência a desenvolver-se e prosperar, sem uma luta de opiniões, sem
liberdade de crítica”, escreveu ele. Foi
por isso, que Estálhine criticou a escola da nova linguística de classe, que se
tinha tornado um grupo fechado à crítica, mas aberto aos privilégios
burocráticos e mercantis, onde só progrediam e subiam na hierarquia os adeptos
incondicionais do mandarim desorientado.
Parece que os
marxistas-leninistas caboverdeanos foram melhores discípulos de Trotsky do que
de Estálhine, cujas obras aparentemente desconheciam, durante o exílio político,
fora do país. Com a leitura dos
comentários de Estálhine à nova linguística soviética poderiam ter evitado
misturar a investigação científica com a política, como infelizmente fizeram,
cobrindo carências de informação, estudo e investigação com conceitos
políticos, nomeadamente a “resistência dos escravos sublimada”.
Porém, mais vale tarde
do que nunca, ficam neste subsídio registadas as ideias mais importantes, que Estálhine,
marxista-leninista convicto, exprimiu sobre a linguística, em geral e sobre a
nova linguística soviética, em particular.
Nos próximos subsídios
tentaremos compreender e discutir mais detalhadamente as teorias da nova
linguística caboverdeana baseada na sublimação da resistência dos escravos.
Antes de terminar,
queríamos ainda confirmar que o tsar autodidata da URSS não deixava de ter
espírito prático, aberto às realidades e pouco dogmático e até parece que
aprendia da sua própria experiência, praticando a auto-crítica!...
Fig. O economista
Nikolai Kondratiev com sua filha
Dois anos depois, foi
assassinado, no México, Lev Davidovich
Bronstein, mais conhecido pela sua alcunha Trotsky, que nasceu aos 7 de
Novembro de 1879, na aldeia de Bereslavka, Ucrânia, no seio duma
família de agricultores abastados e morreu a 21 de Agosto de 1940, na cidade de
México, um dia depois de ter sido agredido pelo assassino (https://en.wikipedia.org/wiki/Leon_Trotsky). O KGB tinha organizado três grupos
independentes de assassinos e um célebre pintor mexicano do partido comunista
também tinha tentado assassiná-lo. Com os
seus capangas do Partido Comunista Mexicano metralhou a residência
descarregando as munições todas. Com
Trotsky, Estálhine queria enterrar a teoria de que não era possível estabelecer
o socialismo num único país, mas só ajudou a criar o mito do seu camarada, que
tinha fundado o Exército Vermelho, militarizado o trabalho (Ver Subsídio 6.) e
a quem se pode reconhecer um olhar de psicopata, mesmo em fotografias tiradas
há dezenas de anos.
Os ciclos Kondratiev
fizeram implodir a URSS. Em 26 de
Dezembro de 1991, a URSS dissolveu-se.
Depois de ter mandado
assassinar um brilhante economista russo e muitos outros homens e mulheres de
ciência, durante grande parte da sua vida, foi nos seus últimos dias, que o
primeiro tsar soviético escreveu o que citámos mais acima: “Está universalmente reconhecido que não pode
haver ciência a desenvolver-se e prosperar, sem uma luta de opiniões, sem
liberdade de crítica”. Como interpretar
esta sua frase? Aprendeu dos seus
erros? Desculpava-se? Estava arrependido? Todos os seus assassinatos seriam, para ele,
ossos do ofício dum político? Mesmo com
espírito prático e aberto às realidades e pouco dogmático, não passava dum
típico marxista-leninista convicto e realizado…
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