quinta-feira, 21 de março de 2019

Dada a ocasião – a celebração dos 75 anos do movimento “CERTEZA” – tomei a liberdade de aqui transcrever com a devida vénia à autora, a Jornalista Otília Leitão e publicada por Joaquim Saial no blog. «Praia de Bote», uma entrevista, uma conversa, com um dos organizadores - Nuno Miranda - daquele movimento literário, surgido em Mindelo,  em 1944.
N. B. A entrevista foi feita em 2013. Embora  já com algum tempo, o seu conteúdo, ilustra de forma interessante e viva, o poeta, romancista e crítico literário, Nuno Miranda, nascido em Mindelo em 1924.

Otília Leitão (Jornalista)

Sobre a secretária do seu escritório, onde se resume uma vida, Nuno de Miranda, um cabo-verdiano sobrevivente da revista “Certeza” de que foi co-fundador (1944) e editor do movimento “Claridade” (1936), mostra-me um livro pronto a editar, “Fogo e Alimento” (notas ensaístas), enquanto burila as palavras de um novo romance que começa em Bragança, uma cidade transmontana de que gosta muito e, inevitavelmente, como aliás toda a obra, vai perpassar Cabo Verde.



O escritor, natural de S. Vicente, e que viveu um dos períodos mais agitados da política portuguesa como chefe do protocolo e do gabinete de imprensa do Conselho da Revolução (1976 /79), segue o fio da História, numa conversa que, pela sua sabedoria e lucidez, esmaga os sinais da cronologia do tempo sobre a matéria humana - nasceu em 1924.

Deixa transparecer uma frescura romântica quando, esboçando um sorriso, me aponta na estante: “esta pedrinha (com uma flor em estanho gravada) pertencia ao espólio do antigo jornal “O Século” que comprei à jovem que o vendia e por ela me apaixonei”. Ela é hoje Natércia Miranda, uma distinta médica de saúde pública e que tem também obra escrita na sua área profissional.

Na sua casa, num local calmo da cidade de Lisboa apenas perturbado quando em dias de euforia do futebol no Estádio do Benfica, ali perto, o poeta aceita o desafio de me levar ao imaginário do seu mundo, pela palavra. É português de nacionalidade, a mesma que o arquipélago cabo-verdiano possuía na sua época colonial mas, Nuno Álvares de Miranda, que conviveu numa elite do regime do Estado Novo e prosseguiu na Democracia, é uma evidência de que um ser humano tem múltiplas pertenças.

E é na simbiose de vivências que o poeta revela em toda a sua obra e na sua postura actual a transparência da alma cabo-verdiana, ou seja, a raiz ao espaço telúrico onde está enterrado o seu umbigo. Desde logo, quando se lê “Cais de Ver Partir”, Lisboa, Orion, 1960, o livro que um seu amigo, Alfredo Margarido, levou à editora de Orlando Gonçalves, dono do jornal “Notícias da Amadora” - e o apresentou já publicado, de surpresa. Com esta obra, Nuno Miranda  ganhou o prémio literário Camilo Pessanha em 1961.



Deste livro e, por me parecer profundo e significativo, transcrevo: “Os homens estão cansados/ das suas graves amarras/ são estáticos barqueiros, no seus mares decifrados. Os homens estão cativos/ sem qualquer explicação/ tensos de riba da onda/ vinda rolar do mais longe. Os homens estão ancorados/ em sua nave incorpórea/ o rio ao largo a lembrar/ falas de amor e segredo”.


 
Voltou a ganhar o mesmo prémio, em 1964, com “Cancioneiro da Ilha”, Braga, Ed. Pax, em paralelo com José Hermano Saraiva, o famoso professor que já então se notabilizava em História, distinguido com o prémio “João de Barros” pelo livro “Formação do Espaço Português” (Boletim Geral do Ultramar, Fevereiro de 1964).

Nuno de Miranda foi condecorado pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, pelos “serviços culturais” prestados e também pelo Instituto brasileiro de Antropologia da Amazónia. Foi também distinguido pela Academia Brasileira de Letras, pela sua participação na “Palavra de Poeta- África”, um projecto que englobou a faceta “Palavra de Poeta-Portugal” e “Palavra de Poeta-Brasil”.

Considera-se “um conservador” para quem escrever um romance em crioulo é “uma aberração”, pois “apenas será lido a nível interno”, diz. As suas obras são em português, língua que a sua mãe, professora, cultivava com exigência e rigor, proibindo que falasse o crioulo em casa, mas “não na rua”, sorri.

Além da ficção “Cais de Pedra” (1989) e do primeiro romance “Caminho Longe” (1974), o autor possui ainda outras obras, quer em prosa, quer em poesia, sempre incluindo elementos da cabo-verdianidade: “Gente da Ilha”, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1961; “Poema”, in Sul, Florianópolis, 1954; “Recado”, in Cabo Verde, Praia, 1958; “Um poema do Cais de Ver Partir”, in Cabo Verde, 1959; “Crepuscular” in Garcia de Orta, Lisboa, 1961; “O Chá”, in Cabo Verde, 1962.

Ao longo da sua carreira, em cargos destacados do funcionalismo público - talvez o cabo-verdiano que mais alto tenha subido durante o regime do Estado Novo - o poeta sempre escreveu artigos na imprensa portuguesa e brasileira onde enaltecia a cultura cabo-verdiana. Tal se pode apreciar em “A propósito do Pilão”, S. Paulo, 1941, e “A propósito da Hospitalidade cabo-verdiana”, 1961.

Destaca-se um curioso artigo “sobre educação e desenvolvimento em Cabo Verde” (1961) onde o autor dava conta do número de alunos que frequentavam a universidade em Lisboa (34) e criticava o “marcante predomínio pelas profissões ditas clássicas” (Direito e Letras). “Será esta a propensão, aconselhada para o caso de Cabo Verde”, (...) na hora em que se conjugam esforços de realizações que nos dizem serem adequadas para subtrair a nossa terra e o nosso povo aos círculos tradicionais que trazem a marca do flagelo?”, instava, ao mesmo tempo que concluía: “tudo indica que não e o bom senso preconiza o desvio da referida propensão”.

Não contive uma gargalhada quando, desfiando a memória, Nuno de Miranda “me transportou” ao Cais do Sodré lisboeta onde, nos anos 50, vindo de Cabo Verde, foi comprar seis lagostas para oferecer à pessoa que o haveria de encaminhar (Castro Fernandes, administrador do BNU), à sua chegada à então Metrópole, com vista a prosseguir os estudos universitários e arranjar emprego: “trouxe de Cabo Verde esta lembrança do meu tio António, o médico, seu amigo...”, recorda, rindo-se do próprio episódio.

Instalado na capital portuguesa, aqui se licenciou em Letras pela Universidade Clássica de Lisboa, áreas de Filosofia e História, além de cursos de Visualização Artística, na ARCO e de Animação Cultural, em França.

Foi numa das manhãs em que habitualmente passava pelo Palácio Foz, na baixa pombalina, local onde à época se tomava café e lia os jornais, que Nuno de Miranda se apercebeu da importância da sua poesia, através de um homem, que mais tarde soube ser o jornalista e crítico literário Luís Forjaz Trigueiros, que lhe terá perguntado: “Conhece Nuno de Miranda? É que desde 1945 que procuro saber dele, pois Maria Barroso (mulher do ex-presidente Mário Soares, naquela época declamadora) diz poemas dele!”. “Fiquei surpreendido ao saber que sou o primeiro poeta cabo-verdiano a ser declamado e disse: Sou eu!”.

E foi nesse deambular pelos centros de tertúlia da cidade que conheceu personalidades com relevância em diversas áreas do saber. E foi através do professor Almeida Lessa que chega ao professor Adriano Moreira e este o admitiu na Junta de Investigação Científica do Ultramar onde esteve entre 1958 a 1973.

Na sua sala de estar, de onde se avistam verdes campos de ténis, e onde passa grande parte do dia, pela melhor acessibilidade à musica e à televisão, são visíveis as fotos de família do casal. Dos seus ancestrais, lá está a sua mãe, Maria Amélia (em honra da Rainha D. Amélia), neta do seu bisavó originário de Loulé, Algarve.

Foi dela que herdou uma cultura pela qual sempre se sentiu fascinado. “Um dia, lá em S. Vicente, o Eduíno Brito Silva, chamou-me, aos gritos, para ver umas coisas que tinham chegado de barco... Fiquei deslumbrado quando ele me pôs a ouvir as fadistas Amália Rodrigues e Fernanda Baptista. “Decidi que queria viver em Lisboa...”, mas tinha apenas o sexto ano e para prosseguir os estudos universitários era preciso o sétimo ano, recorda o escritor, cuja força anímica o fez completar o grau necessário, em apenas quatro meses. E, quando pensava estar pronto para viajar para Lisboa, a família colocou-o no Banco Nacional Ultramarino, no Mindelo, em Cabo Verde.

Do seu pai, João Baptista, que veio para Lisboa aos nove anos para estudar e mais tarde foi para a Guiné, Nuno de Miranda guarda a herança crioula. “Vivíamos bem em Cabo Verde, mas o sonho era Lisboa e isso só foi conseguido, um tempo depois, mediante uma troca com outro funcionário”.

Com uma vida muito preenchida ao longo da história, ingressou na Direcção Geral de Comunicação Social como consultor em 1966, na qual, três anos depois, foi Chefe de Secção de Realizações Artísticas, lugar de grande satisfação por se relacionar com a arte através de congressos e exposições que organizava.

Em 1984 foi a Mindelo e Praia para apresentar a 1ª exposição de Gravura Portuguesa Contemporânea, em que pela primeira vez Cabo Verde pôde ver trabalhos de Júlio Pomar, António Quadros, Maria Keil, Nikias Skapinakis, Júlio Resende, Grechem Wohlwill, Sá Nogueira, Maria Velez, entre outros. Para assinalar o doutoramento Honoris Causa do então ex-presidente senegalês Léopold Sédar Senghor, na Universidade de Évora, organizou a exposição de Literatura afro-lusa.

Nuno de Miranda organizou colóquios com estudantes cabo-verdianos e lê-se no Boletim de Cabo Verde de Março de 1960 que “aproveitando a passagem por Lisboa a caminho de Angola do Dr. Júlio Monteiro, para assumir o cargo de Intendente Administrativo, Nuno Miranda fez reunir a 23 de Fevereiro desse ano, num dos anexos do centro de Estudos Políticos e Sociais (...) estudantes universitários e mais elementos da colónia cabo-verdiana, para serem informados de alguns aspectos da vida actual do Arquipélago”.

Jornalista na televisão e Emissora nacional, foi demitido de redactor do Telejornal (1973) tendo a PIDE (polícia política do regime de Salazar) posto um carimbo no despacho de demissão: “inconveniente o seu ingresso nos quadros”.

O poeta soube do “25 de Abril”, revolução que derrubou o regime ditatorial em 1974, quando vinha da sua casa em Cascais para o Palácio Foz, percurso que estranhou nessa manhã estar deserto. À sua chegada, num carro Mercedes, foi surpreendido com gritos chamando-lhe “fascista!”. Lá dentro foi informado pelo director de que tinha havido um golpe de estado.

Depois da designada “revolução dos cravos”, - pelos milhares de cravos vermelhos que circulavam de mão em mão, símbolo da liberdade - Nuno de Miranda foi chamado, em 1976, para o Conselho da Revolução, a convite de Almeida Santos para trabalhar com o capitão Sousa e Castro, que era na altura chefe dos serviços de extinção da PIDE, e em comissão de serviço, foi Chefe do Gabinete de Imprensa e do Protocolo até 1979. Reformou-se do Palácio Foz, de que era quadro da Direcção Geral de Comunicação Social, no início dos anos 90.

Nuno de Miranda nunca faltou ao trabalho e, de 1984 a 1989, obteve cada ano, como funcionário público, a qualificação de “Muito Bom”. Hoje continua apaixonado pela escrita.

No final de uma conversa pela tarde dentro, na Sexta-feira Santa, aceitando um chá preparado pela sua mulher, fiquei a saber que a filha Joana e o genro do casal, estavam a aprender crioulo. Achei curioso e exclamei: uma herança do pai, provavelmente! Fixei, nesse momento, o poeta e li-lhe aquiescência no brilho do seu olhar!

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