Mas qual socialismo?[ii]

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Por Adriano Miranda Lima[i]

Com frequência, se ouviu nos últimos tempos, entre políticos de partidos da chamada direita, a exclamação tonitruante de que é preciso “acabar com o socialismo”, “mandar o socialismo para casa”, “libertar Portugal do socialismo”. Claro que o alvo dessa disparatada fraseologia é o PS, devido ao nome do partido e, sobretudo, por ser o que tem governado nos últimos anos. Para os seus críticos e detractores, o socialismo congrega todos os malefícios como ideologia política, ao passo que o capitalismo livre de amarras e contingências – ou seja, o neoliberalismo − é o redentor da felicidade humana.

O truque consiste na grosseira mistificação que é associar intencionalmente o socialismo às experiências fracassadas do socialismo/comunismo na União Soviética e outros países onde o marxismo-leninismo foi aplicado sob a égide da marca rubra do estalinismo. Só que o socialismo é uma ideologia que não é susceptível de uma visão redutora, dado que qualquer produto da idealização humana resulta de um diálogo entre a mente e as motivações morais e psicológicas que determinam o comportamento, este sempre complexo e imprevisível. O socialismo nasceu na Europa, nos finais do século XVIII, para tentar corrigir as desigualdades sociais criadas pela industrialização, na sequência da Revolução Industrial. A finalidade era transformar a sociedade capitalista em comunidades mais justas e mais igualitárias, ideal que afinal se compagina com os princípios do humanismo cristão. Não faltam classificativos para o socialismo, desde o “socialismo utópico”, concepção genérica que pressupõe os seus objectivos passíveis de serem atingidos sem a destruição do capitalismo, ao “socialismo científico”, corrente de pensamento protagonizada por Marx e Engels, para quem o socialismo só seria possível com a destruição do capitalismo, a estatização da economia e a ditadura do proletariado. A primeira corrente é reformista e mantém-se incólume na sua índole e na perseguição ao ideal de maior igualdade e justiça social. A segunda corrente é revolucionária e os seus resultados revelaram-se até hoje infrutíferos e desastrosos, podendo dizer-se que tende a pertencer ao domínio da arqueologia.

O socialismo que segue a via reformista identifica-se com o chamado socialismo democrático e a social-democracia, ambos tencionando encontrar respostas políticas e soluções económicas e sociais em oposição ao que foi ensaiado nos regimes totalitários. Preconizam que a sociedade socialista pode ser construída através da democracia pluralista e preservando a economia de mercado, desde que o Estado crie as condições essenciais que reduzam as desigualdades entre os cidadãos, como a saúde, a educação, a habitação e outras formas de apoio social. Há uma proximidade doutrinária entre o socialismo democrático e a social-democracia, mas pode dizer-se que a diferença entre um e outra pode estar mais na expressão terminológica do que no conteúdo ideológico. Dependendo necessariamente de cada realidade nacional – designadamente, ao nível da cultura e das mentalidades – o grau de intervenção do Estado na construção da economia e das estruturas de apoio social é que em concreto exprimirá uma maior ou menor propensão para uma ou outra modalidade. Porém, a dúvida surge quando se verifica que nos países – da Europa do Norte – onde o socialismo de expressão democrática mais vingou, os partidos que o realizaram têm na sua maioria a designação de “social-democrata”. Deste modo, é possível que as duas designações sejam encaradas como sinónimas uma da outra, tornando irrelevante a questão terminológica.

Reportando à integridade do ideário programático inicial dos nossos partidos, o PS se reclamava do “socialismo democrático” e o PPD/PSD da “social-democracia”, bem entendido. E em resposta às verberações dos radicais e populistas da direita contra o socialismo, o mínimo de honestidade intelectual obriga a que se reconheça que até hoje não houve qualquer forma de socialismo em Portugal, ou social-democracia. E eu, que sou adepto desta ideologia, acreditando que é a melhor solução para o nosso país, digo que infelizmente é assim. Com efeito, lembre-se que em 1978, na tomada de posse do segundo Governo Constitucional, numa coligação entre o PS e o CDS, liderado por Mário Soares e Freitas do Amaral, o primeiro o afirmou: “não se trata agora de meter o socialismo na gaveta, mas de salvar a democracia". Aludia às dificuldades da economia portuguesa agravadas com as convulsões sociais então desencadeadas e que tinham obrigado à primeira intervenção do FMI, em 1977, a pedido do mesmo Mário Soares. Desde então, não se pode dizer que o socialismo, na sua pureza programática, tenha alguma vez saído da gaveta, mesmo que ao longo dos governos que se seguiram se tenha criado o Serviço Nacional de Saúde e introduzido medidas de protecção social, como o Rendimento Mínimo Garantido e outras, sempre por iniciativa do PS, porém sem que haja equivalência com o progresso social alcançado com os modelos de social-democracia praticados nos países nórdicos.

Contudo, é lícito afirmar que, dos dois partidos do poder, o PS é o mais vocacionado para a defesa do Estado social que nenhum português de boa mente pode renegar, ao passo que o actual PSD pouco ou nenhum jus faz à sua designação de partido social-democrata. Assim, a realidade objectiva manda reconhecer que o PS é actualmente um partido social-democrata com prática liberal, enquanto o PSD é um partido do centro-direita com prática neoliberal. Se algo fez inflectir os propósitos iniciais dos dois partidos, em parte pode ser atribuído a conjunturas nacionais restritivas e também a condicionalismos externos, além das responsabilidades próprias.

Por isso, os medos e os fantasmas que alguns políticos extremistas tentam impingir ao eleitorado não fazem qualquer sentido e têm de ser vigorosamente denunciados, sob pena de deixar que se passe um atestado de menoridade mental ao nosso povo. Deixo aqui os meus votos de um bom Ano ao Templário e aos seus leitores, desejando que as nossas mentes se iluminem no momento em que avaliamos o que é o mais conveniente para o nosso futuro próximo.



[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO90

[ii] Publicado no jornal Templário de Tomar 

Crónica de uma crise política anunciada

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

 

Por Adriano Miranda Lima[i]

As crises políticas nas democracias resultam normalmente de um problema de governabilidade, que é o que acontece quando um executivo não consegue assegurar apoio parlamentar ou deixou de o ter. Mas a crise em que inesperadamente Portugal mergulhou é bem diferente, com tudo para se constituir em caso de estudo, ou não tivesse o país uma solução governativa potencialmente estável que se viu extinta, a meio da legislatura, sem uma causa política. E é particularmente custosa porque o voto popular tinha sinalizado o desejo de uma estabilidade política. No entanto, uma coisa é a vontade popular, genuína e pura, que se exprime em pleito eleitoral e chancela uma legitimidade política, outra é tudo o que pertence à ordem de motivações, ambições e interesses ocultos que determinam comportamentos individualizados e de grupo. Enquanto o povo anónimo cumpre o dever cívico e vai a seguir à sua vida, as elites têm a prerrogativa de exercer um continuum de acção influenciadora da vida social, em estruturas privadas e corporativas ou por influência directa ou induzida na esfera institucional do Estado. E é deste modo que a vontade da maioria pode ver-se condicionada ou mesmo bloqueada por razões que escapam à lógica normal do jogo democrático.

Dito isto, analisando a presente crise, é de presumir que ela começou a ser congeminada e montada peça a peça a partir do momento em que o povo fez a sua escolha eleitoral elegendo um governo de maioria absoluta. Esta teve o efeito de um murro no estômago da oposição e, tudo o indica, foi uma surpresa para o Presidente da República (PR), classifique-a o leitor como entender. De facto, não é possível descartar o PR da responsabilidade primária que o prende inapelavelmente a todo o processo que de forma larvar se foi delineando e que haveria de conduzir à dissolução do Parlamento. Desde logo, no discurso da posse do governo, percebeu-se algo de inusitado nas palavras presidenciais, havendo razões para especular sobre o que lhes estaria subjacente. Terá sido o desconforto de pressentir que um governo de maioria absoluta ensombraria o protagonismo presidencial? Porque quando o PR frisa a António Costa que a maioria era dele pessoalmente, mas que não significava poder absoluto, é como se dissesse que ela não era a legitimação natural de uma escolha política, mas o plebiscito a um putativo primeiro-ministro. Teve necessidade de o afirmar ao empossado e de o sublinhar perante a puridade. E, cereja em cima do bolo azedo, fez questão de aludir à natureza do exercício do poder – “poder absoluto” −, como se algum precedente lhe permitisse dúvidas sobre o estilo de liderança política de António Costa.

Na verdade, em matéria de pedagogia cívica, o PR não esteve bem ao contribuir para que no espírito do cidadão se instalasse uma dúvida sobre o significado constitucional das eleições legislativas – em que o povo elege deputados optando por um programa político e não propriamente o chefe do executivo, embora na prática o desiderato seja este, dado que o líder do partido mais votado é geralmente quem chefia o governo. Por outro lado, com a conduta que lhe é peculiar, o PR iria dar azo, ao longo do tempo em que durou a legislatura, a uma subversão constante do princípio da separação e interdependência dos poderes soberanos, ao comentar a par e passo os actos da governação perante as câmaras de televisão, endereçando recados subliminares ou tecendo apreciações críticas mais ou menos discretas. Só que o governo responde é perante o Parlamento, não perante o PR, dispondo este das reuniões privadas com o chefe do executivo para se poder pronunciar sobre os problemas da governação. Mas o corolário da impertinência do PR foi o modo insidioso como amiúde comentou publicamente o significado da maioria absoluta, trazendo à baila, com raro propósito, o recurso à “bomba atómica”, como se a escolha eleitoral do povo lhe causasse uma azia política insuperável. Além disso, os inúmeros vetos presidenciais ocorridos neste ano, sem paralelo com os anteriores, é mais uma demonstração de que algo mudou na relação do PR com o governo.

Assim, sobram razões para o cidadão comum construir cenários, podendo especular-se com o que a realidade oferece.

Cabe então perguntar se o chamado “caso Galamba” não foi o gatilho que se armou a aguardar a oportunidade do tiro. Se não foi, parece. O Ministério Público há muito que lavrava em silêncio o terreno da sua autonomia, onde António Costa recusou sempre interferir, sequer comentar, quanto mais propor qualquer medida reformadora, mesmo que as evidências sugerissem a sua necessidade. E assim se tornam públicos, em conluio com uma comunicação social sedenta de sensacionalismo e aberta a promíscuas relações, casos judiciais de oportunidade questionável e que se foram sucedendo destacando-se pela sua frequência inusitada ou pelo excesso de medidas restritivas de direitos individuais – em que, por exemplo, ultrapassa todos os limites a auscultação sistemática de um ministro 82.000 vezes durante 4 anos, e outras situações indiciadoras de perseguição justicialista visando, estranhamente, quase sempre o mesmo partido.

Imaginando um cenário arrepiante, o processo “Influencer” é como se o Ministério Público tenha escolhido a pólvora para o tiro decisivo e ajustado o respectivo rastilho. O processo já fez correr muita tinta, e credite-se-lhe ao menos o mérito de fazer despertar a atenção para o que no sistema judiciário pode estar a fugir ao peso e à medida adequados para funcionamento equilibrado do Estado de direito e o respeito pelos direitos fundamentais. A ética e a integridade cívica são requisitos imprescindíveis para se poder confiar a um servidor do Estado um estatuto de autonomia intocável como a dos procuradores do Ministério Público. São os únicos não escrutinados e isentos de responsabilização funcional. Mas por quantos deles poríamos a mão no fogo em matéria de isenção político-partidária, para além de outras virtudes? A pergunta faz sentido quando se sabe que um dos intervenientes no processo “Influencer” foi assessor em ministérios do governo de Passos Coelho. De resto, não terá sido por acaso que o juiz de instrução deixou cair os crimes de corrupção e mandou em liberdade os indiciados.

Se tudo o que sobreveio com o tal “parágrafo assassino” foi inesperado ou previamente calculado, só o futuro o dirá. Saltou estrepitosamente à vista a inadvertência da Procuradora-Geral da República (PGR), ao aparentar não fazer a mínima noção do que poderia resultar do “seu parágrafo”, não percebendo a gravidade que é publicitar que um primeiro-ministro é alvo de investigação criminal, com buscas intrusivas na sua residência oficial, sem haver uma suspeita fundada da prática de qualquer crime. Uma PGR não pode limitar-se a uma interpretação legalista e mecanicista das suas funções, à margem da ponderação racional e da visão abrangente que o seu poder exige, sob pena de comprometer o normal funcionamento dos órgãos de soberania e das instituições democráticas. Dizer-se surpreendida com o pedido de demissão de António Costa só reforça a presunção de que não estará à altura da responsabilidade do cargo. E, sobretudo, que carece de uma integridade ética que a habilite a perceber a ética de António Costa.

Ao PR terá sido proporcionado, resta saber se de bandeja ou por encomenda, o manípulo para o accionamento da explosão com que antes ameaçara. Sim, porque o Conselho de Estado não lhe sugeriu a dissolução da Assembleia Legislativa e havia soluções que teriam evitado paralisar o país e insuflar o ânimo dos inimigos confessos da democracia. Mas Marcelo Rebelo de Sousa deve ter realizado um desígnio pessoal, acertando contas que não são seguramente as do país.

P.S: E que o Ministério Público se credibilize para o combate aos verdadeiros crimes públicos.



[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO90.

Quando a democracia acolhe cavalos de Tróia no seu seio

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

 

Por Adriano Miranda Lima[i]

Calha estar a escrever numa altura em que se assinala o 99º aniversário de Mário Soares, o homem político a quem muito devemos o privilégio de viver numa democracia prestes a comemorar o cinquentenário. Ele que, se fosse vivo, não deixaria, mesmo em idade mais avançada, de fazer ouvir a veemência da sua voz para condenar sem apelo nem agravo aqueles que aproveitam a liberdade para atentar contra o regime democrático e agredir os que o servem. Ultrapassa os limites do desrespeito o teor de certas afirmações e atitudes, como a que se ouviu recentemente a André Ventura quando proferiu que “é preciso dar um pontapé no traseiro ao Augusto Santos Silva”. Este cidadão não é um parceiro de café ou tasca, é simplesmente a segunda figura do Estado, o presidente da Assembleia da República, eleito pelo povo.

Ignoro que reacções suscitaram na sociedade política tão deploráveis palavras. Mas se com o silêncio e a passividade dos democratas a intenção é a pedagogia da tolerância e da moderação, esquecem que isso pode ser interpretado como fraqueza ou cobardia por aqueles que ignoram a ética e os princípios e não hesitam em recorrer a processos iníquos para descredibilizar a vivência democrática. São os que apostam na degradação do debate político e na tentativa de desqualificação, deslegitimação e enfraquecimento do adversário. À argumentação racional e fundamentada, preferem a provocação, a insinuação, a vacuidade e o espalhafato verbal e gestual. De facto, a direita radical e populista é incapaz de discussão em moldes democráticos, pelo que o discurso se centra e se consagra na proclamação de inimigos políticos e no negativismo, não em propostas sérias e responsáveis.

Porém, ao falar em ameaças à estabilidade democrática, talvez seja curial valorizar também o efeito deletério que indirectamente resulta da atitude política dos partidos mais à esquerda. Partidos que se distinguem sobremaneira por uma sistemática e cerrada oposição, mesmo contra políticas de governos do centro-esquerda, há que reconhecer a quota parte das suas responsabilidades no bloqueamento da vida nacional que volta e meia ocorre e leva a eleições fora do ciclo legislativo normal. A história política desta II República fala por si. Basta revisitar os vários incidentes de percurso que impediram o consenso nacional em sede parlamentar e provocaram situações de ruptura orçamental, obrigando a três intervenções do FMI, desde 1977, com inevitáveis reflexos na progressividade do crescimento do país. Como geralmente se constata, o que esses partidos exigem é a aprovação pura e simples das suas políticas programáticas, sob pena de oposição obstrutiva, o que, se acontecesse a seu bel-prazer, convenhamos que desvirtuaria a lógica e a coerência do programa de quem foi eleito para governar. O recurso constante e exaustivo a reivindicações, greves e manifestações dos sectores do Estado demonstra que tais prerrogativas são, por enquanto, praticamente exclusivas de quem tem trabalho assegurado para toda a vida. Os sectores privados não dispõem de instrumento de luta equiparável porque dependem de um vencimento cuja garantia não tem a sustentação do poço sem fundo (no imaginário de alguns) que é o Estado.

Assim, cada um que ponha as mãos na consciência e avalie honestamente o peso inflexivo dos actos que pratica quando a tendência é julgar a saúde do regime elegendo como os únicos culpados os dois partidos que até agora assumiram a governação do Estado. É muito cómodo colocar-se à margem e contribuir para engrossar o sentimento anti-sistema, mediante proclamações e teatralizações demagógicas, servindo-se preferencialmente das redes sociais, o meio por excelência onde a extrema-direita se tem expandido aqui e em outros países.

O que se passa em Portugal naturalmente que é influenciado pelo que vai acontecendo pelo mundo fora, com as democracias a ressentirem-se do surgimento de forças políticas da direita que radicalizam o discurso e inflamam o propósito de alterar os fundamentos do Estado democrático. Mas nada acontece sem uma causa. Em quase todo o lado, os países sofreram um abanão provocado pelas forças do mercado e pela inversão ou desordenamento da hierarquia entre o interesse público e o interesse privado. Hoje, ninguém já duvida de que a globalização, que se propunha como a via para a resolução pacífica dos conflitos políticos, como imaginou Fukuyama, de repente parece postergada, dando lugar à guerra, como estamos a ver. Apreensivamente, aguarda-se o que sairá das próximas eleições presidenciais americanas, porque o regresso de Trump representa uma potencial ameaça à saúde das democracias mundiais, pela maléfica influência que à distância não deixará de exercer no espaço planetário.

Aqui chegados, cabe perguntar se a insuficiência ou a menor qualidade da nossa democracia justificam a emergência de movimentos ou forças que lhe são adversas. A resposta é dada pela história e dispensa considerações, tão clara é a diferença entre a vida dos povos governados em democracia e a dos submetidos a ditaduras. Mais, pergunta-se se o problema está na qualidade dos políticos ou no seu insuficiente comprometimento com a causa pública. Com razão acrescida, a resposta é redondamente negativa. O sistema político em apreço não é estável ou definitivamente ultimado como ideia e conceito, e quem o interpreta e aplica está tão sujeito às engrenagens da complexidade da própria natureza humana como à instabilidade e mutabilidade dos fenómenos sociais. Porque ambas estão irremediavelmente interligadas. Eu que não sou político e não tenho familiares na política, considero absolutamente inaceitável alimentar o preconceito de que os políticos são “eles” e nós somos “nós”, apontando-os como os únicos responsáveis pelos insucessos do país. Ora, os políticos emanam da nação, e, embora se devam distinguir por atributos e qualidades específicos, é surreal supor que a sua idiossincrasia os diferencia necessariamente da massa genética de onde provêm e onde a natureza forjou a matriz identitária comum. A democracia não pode deixar de reflectir as virtudes e bem assim os defeitos do todo colectivo, não exclusivamente ou segmentariamente os de quem é eleito para liderar. Não é preciso muito esforço para se confrontar com o paradoxo que é elaborar certos juízos denegridores da classe política por aqueles que a escolhem. É disso que se alimentam os populistas e radicais, gente que tenta enganar os ingénuos e os desatentos com artes de esquizofrenia política.

Estou convencido de que o povo não deixará de fazer valer a sua sabedoria e o seu instinto quando proximamente for às urnas, enquanto já se vai preparando para as festas natalícias.



[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO90

 

Também eu, Miguel

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Por  Adriano Miranda Lima

No seu artigo publicado no jornal Expresso de 1 de Dezembro passado, intitulado “Desculpem insistir”, Miguel Sousa Tavares continua a abordar a temática da Justiça e a dado passo escreve:

À Justiça e aos seus magistrados concedemos o poder de decidirem sobre os nossos deveres e a nossa liberdade para resolverem os nossos conflitos e garantirem os nossos direitos. No dia em que cada uma destas entidades, como cada um dos poderes institucionais, não for controlada por outro ou por ninguém − no dia em que um só dos poderes estiver fora de controlo −, não tenham dúvidas de que o Estado de direito e a democracia estão ameaçados. Entre nós só há um poder que, na lei e na prática, ninguém controla a não ser ele mesmo: o Ministério Público (MP)”.

No exercício da minha cidadania, replico que também não me coíbo de insistir no tratamento do tema porque a Justiça é um pilar fundamental do Estado de direito, justificando-se, por isso, que ocupe o centro do debate nacional até que deixe de ser o abcesso institucional em que parece ter-se convertido, conforme a classificou Vital Moreira. Com efeito, justifica-se uma urgente reflexão nacional, empenhando os políticos, a cidadania e a comunicação social, quando parecem claros os indícios de que no Ministério Público podem existir procuradores imbuídos de ideias contrárias à transparência, isenção e linearidade que a sua conduta funcional exige, em alguns casos procedendo como se tivessem uma agenda política, de tal modo que já se fala de um “legal wafare contra os políticos”. Excederia o espaço de um mero artigo de opinião a menção dos casos mais sonantes que se constituíram em verdadeiro paradigma daquilo que a Nação não pretende da sua Justiça. Não é este o meu propósito, tanto mais que o citado colunista do Expresso, nas suas palavras transcritas, sintetiza a opacidade em que se movimenta o Ministério Público e que carece de ser trespassada com a luz clara da verdade.

Conforme vem acontecendo, não é aceitável que baste uma simples denúncia anónima, por mais infundada ou nebulosa que seja, para investigar o exercício de funções políticas e condutas privadas a elas associadas. Funcionando como uma espécie de pesca de arrasto, as escutas telefónicas tornaram-se o método habitual e por excelência, excedendo consideravelmente o que é prática normal em todo o lado onde o direito funda e estrutura o Estado. Para cúmulo, parece existir uma ligação promíscua e sigilosa entre sectores do Ministério Público e certo jornalismo que se intitula de investigação, para onde são canalizadas informações seleccionadas e segmentadas sobre supostas ou alegadas ilicitudes criminais. Fica assim urdido um estratagema cujo intuito parece ser o julgamento na praça pública das pessoas visadas, ante a constatação da fragilidade dos indícios e provas para levar ao seu julgamento e condenação em tribunal. São várias as figuras públicas que foram vítimas deste tratamento iníquo e acabaram absolvidas em tribunal, mas que ficaram com a sua reputação enlameada e as suas carreiras políticas irremediavelmente arruinadas.

A Procuradora-Geral da República parece incapaz de pôr termo à sistemática violação do segredo de justiça que compromete gravemente a imagem do Ministério Público, como que encerrada numa torre, na expressão de alguns colunistas, de onde não tem o hábito de sair, por decisão própria, para prestar esclarecimentos públicos, nem quando são notórias as disfuncionalidades e os erros do organismo que tutela, como sucedeu com o processo “Influencer”, com as consequências políticas que se conhecem e cujas proporções ainda é cedo para calcular.

Enquanto os políticos são escrutinados pelo voto popular e prestam contas à Nação, possibilitando a alternância do poder e a perpetuação saudável do regime democrático, os servidores da Justiça parecem gozar de um estatuto de absoluta e inaceitável inimputabilidade, o que constitui uma ameaça sistémica ao Estado de direito e a democracia, na opinião de vários reputados juristas e constitucionalistas.

As sociedades contemporâneas tendem a viver ao ritmo e sob a influência dos media, mas infelizmente não se pode dizer que a agenda destes coincide sempre com o interesse nacional. Contudo, uma vez que a liberdade de imprensa é o mais cintilante sinal de vitalidade da democracia, é de esperar que a problemática da Justiça se mantenha no cerne das preocupações da comunicação social.

O que é surpreendente, para não dizer estranho, é o tema da reforma da Justiça andar arredado das campanhas eleitorais dos actuais “candidatos a primeiro-ministro” para a próxima legislatura, como se ela fosse um tabu ou algo com que não se deve mexer para evitar o risco de ser apanhado em qualquer futura pesca de arrasto. Isto devia preocupar seriamente os eleitores, porque na verdade demonstra que falta coragem política para extirpar do organismo do Estado de direito o cancro em que a Justiça se tornou.

P. S. Bem-haja José Pacheco Pereira por não desistir de abordar o tema da Justiça, como o fez com o seu artigo “A ideologia antidemocrática do justicialismo”, publicado no jornal Público de 2 de Dezembro.


Portugal é mesmo ingovernável em democracia?

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

 (Conclusão)[i]

Por Adriano Miranda Lima[ii]

Prosseguindo e concluindo a reflexão iniciada no artigo anterior, torna-se legítima a dúvida se a recente demissão do governo de maioria absoluta foi algo inesperado ou um desfecho ansiado por quantos, ao longo deste ano e meio de legislatura interrompida, foram afinando a orquestra de uma dura e intransigente oposição e semeando uma inquietação social permanente.

Inquietos com as consequências previsíveis para o futuro próximo, justifica-se um esforço de introspecção para tentar saber o que pode ser um simples acidente de percurso ou um problema sistémico instalado como abscesso no regime político. Aqui é que entronca a interrogação crítica que tem de ser formulada, sob pena de nos iludirmos ou de não conseguirmos detectar os mecanismos correctivos. Será altura para cada um acertar as contas com a consciência cívica e com a realidade. Para isso, a maiêutica, ou a auto-reflexão, podem ajudar, como a seguir se propõe.

Este governo parece ter causado engulho aos que não esperavam a maioria absoluta, e nem o Presidente da República fica imune à suspeição quando se sabe do teor das suas constantes e impertinentes observações: “maioria requentada”; “bomba atómica”, metáfora de uma possível dissolução da assembleia legislativa; intrusão quase diária na acção governativa, etc. Essa postura ajudou a que nenhuma medida do governo fosse credora da mais ténue concordância dos partidos da oposição, nem daquele que mais se lhe aproxima no centro do espectro político. Como se à mesma realidade social e económica pudessem corresponder leituras tão multifacetadas vinculando diferentes perspectivas de solução. Prova-o a ausência de alternativas plausíveis ou realistas.

Mas é claro que todo o confronto político, mesmo o mais aceso e chispante, tem a sua natural legitimidade no debate democrático e em sede parlamentar, onde têm lugar mesmo esses partidos que são anti-regime e que aproveitam a casa da democracia como campo de ressonância da sua animosidade e agressividade e não como espaço de construção e entendimento. Agora que algumas sondagens lhes sugerem possível crescimento eleitoral e uma hipótese de partilha do poder, fazem por simular alguma moderação e contenção, mas só se deixa enganar quem tiver desligado a campainha de alarme e abdicado do exercício responsável da cidadania.

É certo que um pouco por todo o lado se assiste a um decréscimo da qualidade das democracias, pelo que convém sempre auscultar a verdadeira extensão do problema entre nós a fim de saber em que medida isso significa um fenómeno político transitório ou um fenómeno social capaz de deslocar substancialmente do centro do espectro político a opção maioritária do eleitorado, como até hoje aconteceu, desde 1975. A acontecer, a nossa democracia receberia um golpe antes de podermos ajuizar em base segura sobre a nossa capacidade de a consolidar e de garantir a perenidade do regime que é o único que nos serve para a construção de um futuro mais próspero e mais justo. Por enquanto, a expressão do voto popular não dá razão para recear aquele cenário.

Perguntar-se-á se a nossa alegada dificuldade de entendimento e de concertação no plano político é mesmo um sintoma daquela característica psicossomática de que se queixava o romano Sérgio Galba e que iria servir de pretexto a Salazar. A resposta exigirá que se distinga entre povo e elites para aferir se o problema tem, de facto, relação com características identitárias ou se resulta mais do comportamento típico de estratos sociais mais instruídos e evoluídos. Exemplifica-se: é mais provável o povo profundo unir-se à volta do interesse comunitário na aldeia do que os representantes dos vários interesses sociais concordarem sobre a localização do novo aeroporto ou de um novo hospital regional. Compreende-se que aumentando a escala da incidência do problema aumenta necessariamente a sua complexidade. Só que o refinamento intelectual e cultural se compraz com a pulsão filosófica para divergir de forma sistemática, e nisto o melhor exemplo é a chamada “esquerda caviar”. É o paradoxo de a condição social e cultural poder conduzir à denegação da democracia.

Todavia, uma coisa é o circunstancialismo normal que rodeia o funcionamento da democracia e a existência do estado de direito, outra é a ocorrência de situações anómalas que atentam contra a sua integridade, e mais críticas e intrigantes são quando nascem de fenómenos disfuncionais dentro de um organismo do Estado. Foi o que aconteceu com as circunstâncias em que o processo “Influencer” contribuiu para derrubar um governo de maioria absoluta e criar uma crise política. Ultrapassando as normais contingências do activismo parlamentar ou da conflitualidade social, a situação vai por muito tempo ocupar o cerne do debate nacional. Hoje, quase ninguém questiona a necessidade de reorganizar o funcionamento da Justiça, não propriamente pelas incidências deste processo ou pela forma como o juiz de instrução criminal deixou cair os crimes de corrupção e de prevaricação, mas também, e sobretudo, por uma série de antecedentes que não são favoráveis à imagem institucional do Ministério Público.

Seria irónico que fossem distopias na organização e funcionamento do Estado, passíveis de correcção, a contribuir para a descrença do cidadão nas virtudes da democracia. Na verdade, o Ministério Público carece de reorganização funcional para que não perca a probidade e as virtudes cívicas que lhe são imprescindíveis como órgão do Estado de direito democrático.

Para concluir, a minha convicção é que o português é tão capaz como os melhores de viver em regime democrático e sob os seus melhores auspícios. A própria União Europeia o atestou quando se admirou com a nossa maioria absoluta, a única no espaço europeu, e com o sucesso da governação financeira, reduzindo consideravelmente o défice orçamental e baixando a dívida pública para abaixo dos 100%. A Moody’s melhorou a notação da nossa dívida soberana em dois níveis, ficando Portugal acima de Espanha, o que nunca tinha acontecido. E agora veio Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia, afirmar que Portugal realizou um milagre económico. Ora, nada disto seria possível com um povo avesso à democracia.

Salazar, em uma entrevista concedida a António Ferro, descreveu os principais defeitos e qualidades do povo português. Segundo ele, os defeitos são: “excessivamente sentimental, com horror à disciplina, individualista sem dar por isso, falho de espírito de continuidade e de tenacidade na acção.” É estranho que ele não tenha mencionado o que justificou a imposição da ditadura do Estado Novo. No mais, penso que a auto-estima nacional impede que tenhamos de dar razão aos descrentes. Até porque os quase cinquenta anos de democracia já lavraram um percurso que só pode ser irreversível.



[i] Artigo publicado - 1ª parte e conclusão - no jornal “Templário” de Tomar

[ii] Nota: Para evitar mal-entendidos, esclareço que sou simplesmente um militar reformado, preocupado com o mundo, crente nas virtudes da democracia, adepto da social-democracia, e atento à realidade política do país. Sem vinculação partidária.


Portugal é mesmo ingovernável em democracia?

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

 

Por Adriano Miranda Lima[i]

A recente queda do governo de maioria absoluta, abrindo caminho para uma inesperada e indesejável instabilidade política, obriga a que se levantem algumas interrogações.

É certo que se assiste nos tempos que vivemos a um enfraquecimento das democracias um pouco por todo o lado, em consequência de uma aparente erosão dos sistemas de controlo tradicionais − eleições livres, parlamentos e tribunais – com influência directa na eficácia das instituições. Mas não é disto que agora se trata. A formulação em título pretende ir ao fundo de uma questão já antiga e que obriga a revisitar algumas considerações sobre as nossas predisposições naturais ou tendências ancestrais para viver harmoniosamente em agregação colectiva e no cumprimento ordeiro das regras comuns. A nossa democracia está a caminho de comemorar o seu cinquentenário, tempo que alguns já considerarão suficiente para a maturação do sistema político implementado. Mas não haja ilusões. Contrariamente à ideia mais comum, não é o sistema político instituído que por si só estimula, promove e gera uma cultura política. A História demonstra que é o contrário. Quanto maior é a cultura política de um povo, mais evoluído é o seu sistema político e aperfeiçoadas as suas práticas. Isto significa que o período temporal de cinquenta anos pode não ser suficiente para a formatação e consolidação de uma cultura política, dado que esta requer o contributo de sucessivas gerações e a acumulação contínua de experiências diferentes, umas bem-sucedidas e outras não, para ela se tornar uma realidade efectiva.

Mas recusamos admitir a fatalidade interrogada no título deste artigo, porque o orgulho nacional impede-nos de aceitar que sejamos diferentes dos outros europeus por qualquer condicionalismo genético ou por contingências coercitivas da história dos últimos séculos. No entanto, Oliveira Salazar pensava o contrário, e com assumida convicção, a ponto de, perante o fracasso da I República, se ter arvorado em salvador da pátria inaugurando e dando expressão política e corporativa ao que iria ser o mais longo regime autoritário na Europa Ocidental durante o século passado. Talvez radicasse no seu espírito aquela conhecida afirmação de que “nos confins da Ibéria, existe um povo que nem se governa nem se deixa governar”, que é comum ser atribuída a Júlio César, mas que para alguns historiadores foi o general e político romano Sérgio Galba. Por sua vez, a Manuela Ferreira Leite afirmou, há alguns anos, numa entrevista ou num debate, que para introduzir reformas importantes no país teria de suspender o Parlamento.

Embora a Revolução dos Cravos nos tenha devolvido este regime democrático com que a maioria da nação se identifica, não se iluda, porém, porque há sectores da sociedade que não o reconhecem e lhe são adversos. São uma realidade, com maior ou menor diluição na sociedade, com uma notoriedade mais ou menos explícita ou encapotada nas redes sociais e em certo jornalismo, e têm assento parlamentar dois partidos da oposição mais à direita que o personificam com pompa e circunstância. Para eles, o objectivo é a reversão das mais importantes conquistas que a nação logrou, ou atacando a extensão e a natureza das liberdades cívicas, ou afrontando o papel do Estado na sustentação do sistema social que é a mais gratificante, honrosa e emblemática conquista de Abril.

O desperdício da estabilidade política que o governo de maioria absoluta do Partido Socialista garantia foi como deitar fora a água do banho e a criança. Este acontecimento obriga a que, efectivamente, se levantem interrogações incómodas que envolvem não apenas a qualidade do sistema político-partidário e os seus protagonistas, mas sobretudo a natureza do regime e as instituições que o estruturam e garantem o seu funcionamento. Se o governo de maioria absoluta fosse do PSD, teria acontecido o mesmo? A pergunta não é impertinente e se deve à percepção, não sei se errada ou obliterada por situações que podem ser extemporâneas, de que o partido do histórico Mário Soares tem vindo a ser, desde há alguns anos, visado preferencialmente pelos inimigos da democracia, talvez por ser o alvo mais justificável, dada a sua dimensão e implantação transversal na sociedade e a sua condição de importante fundador da democracia. Enfraquecer ou mesmo aniquilar a sua existência facilitaria o regresso à autocracia a que aspiram alguns políticos e uma multidão anónima que parece crescer nas redes sociais. E, paradoxalmente, esse partido fica mais exposto quando governa em maioria absoluta, porque se sujeita a ser atacado simultaneamente à direita e à esquerda, com intervenções que entre si se contradizem na substância ideológica, derrogando-se a respectiva lógica argumentativa. Por exemplo, se os partidos mais à esquerda criticam a insuficiência de aumentos salariais, os da direita pugnam pela baixa dos impostos, sem se ter em conta que os recursos financeiros não caem do céu e só podem ser gerados pela economia. Se uns criticam as falhas do Serviço Nacional de Saúde, os da bancada contrária apostam as fichas na medicina privada. E assim por diante. Não foi por acaso que com o actual governo se assistiu a uma onda reivindicativa e grevista que até fez lembrar a instabilidade de uma conturbação revolucionária. Curiosamente, pareceu instalar-se a anarquia social em vigência de um governo democrático de maioria absoluta. Desde os professores, médicos, enfermeiros, funcionários judiciais, ferroviários, ambientalistas, aos sem casa e sei lá quem mais, de repente toda a gente pretendia aumento salarial avantajado, a par de outras reivindicações, mesmo que dentro das possibilidades financeiras do país se viesse a negociar pacientemente para contemplar com racionalidade e sentido de equilíbrio o que era de justiça e comportável pelo orçamento. Crê-se que desde os governos de Guterres se instalou a crença de que com o Partido Socialista no poder as reivindicações têm maior viabilidade de sucesso, pelo carácter mais dialogante, tolerante e permissivo desse partido, e houve até quem tivesse glosado que o antigo governante e hoje secretário-geral da ONU levava consigo um “livro de cheques” sempre que saía de S. Bento para qualquer visita no país.

Em que medida e em que circunstâncias o Ministério Público contribuiu consideravelmente para espoletar a presente crise política e pode vir a tornar-se um grave problema para o regime se a democracia não corrigir os seus mecanismos institucionais? Outros desenvolvimentos seguir-se-ão em próximo texto.



[i] Nota: Para evitar mal-entendidos, esclareço que sou simplesmente um militar reformado, preocupado com o mundo, crente nas virtudes da democracia, adepto da social-democracia, e atento à realidade política do país. Sem vinculação partidária.

 

As Línguas: ser colonizado ou mudar?[i]

terça-feira, 21 de novembro de 2023

 

Por se tratar de um texto interessante - eventualmente polémico - numa perspectiva das vicissitudes por que vai passando a nossa Língua, tomámos a liberdade, com a devida vénia ao seu autor, de o publicar aqui, recomendando a sua leitura ao visitante do «Coral Vermelho».

Por: Raúl Proença Mesquita[ii]

Já há tempos tinha pensado em trazer este assunto à baila. É para mim um assunto da maior importância: a língua. Esta exprime um tipo de pensamento ou vice-versa, o pensamento exprime-se por uma sintaxe e por uma morfologia particulares.

Ora vejamos. “I am going to go home”, à letra, “eu vou indo para ir para casa”, ou seja, “eu vou andando para casa”. O “eu vou indo para ir para casa”, mentalmente, não é o mesmo do que eu vou para casa. Significam o mesmo, mas não são o mesmo. O que quero dizer com isto? Quero simplesmente dizer que o processo mental de um falante da língua inglesa é diferente do da língua dos portugueses e dos PALOP.

No Brasil a coisa é outra. O português deste país está oficialmente colonizado pelo inglês dos EUA. Mas o encadeamento não acaba aqui.  Com a invasão de telenovelas brasileiras, mas especialmente com a massa imigratória de brasileiros para o nosso país, sem fazer qualquer comentário sociopolítico, até porque sou por uma sociedade cosmopolita, a língua portuguesa degradou-se ao ponto de a mente se deteriorar no raciocínio, tal como a britânica pela colonização linguística americana, por exemplo, nas exclamações tais como “cool!”, “awesome!”, etc.

Claro que vou dar mais exemplos (mas não “darei exemplos”). “Sente aqui, relaxe.” O que é isto? Primeiro: Sente aqui uma dor? Não sinto. Está bem. Em português diz-se sente-se aqui. Segundo: Relaxe não é português, é inglês, relax. Em português usa-se o verbo descontrair – descontraia-se. Como veem em inglês não há praticamente verbos reflexos, excepto quando se usa o yourself mas em português há muitos.

Dir-me-ão que as línguas mudam. Sim, é verdade. A língua portuguesa, por exemplo, mudou muito no século XVI, a francesa, no princípio do século XVIII, por exemplo, na pronúncia de Roi (rei) Rué, para Ruá, mas a estrutura mental, não. Tirar a reflexão a um verbo é como retirar os espelhos a uma sociedade inteira. Isso não mudará a mentalidade de um povo?

As mudanças que referimos em Portugal foram de ordem gráfica e de pronúncia, relativas a um lógico afastamento da tradição galega. De bēstia para besta, por exemplo. Mas actualmente são muito graves.

Aqueles que advogam acordos ortográficos que, curiosamente, não o são só, são muito mais, tornam-se em acordos ideológicos em que se serve de bandeja a língua de vários países (Portugal e PALOP) a um que se estipulou ser o mais importante, que será, do ponto de vista económico.

A Europa abdicou de lutar pela sua cultura, ou seja, pela sua maneira de pensar, pelas suas estruturas mentais, entregando-se ao facilitismo de um pensamento primário que serve para o dia-a-dia, mas nunca para um pensamento crítico que, aliás, infelizmente, não convém ao status quo.

Tudo isto acompanhado pelas aspas em mímica com os dedos indicador e médio de ambas as mãos em jeito de teatro de Robertos, onde pode ter graça, mais o constante OK americano que invadiu a cultura britânica e agora o mundo (em Portugal, o bonito Ókay) e o wau, aqui, uau, completam um cocktail de asneirada apropriado para os tempos actuais. Mas não ficamos por aqui.

Que tal o “avariou”? Mas avariou o quê? É um verbo transitivo, pede complemento directo. Desculpem, mas tem de haver gramática, o tal pensamento de que falei. Exemplo: Ele avariou todas as trotinetes do Alfeite. Ou então: O meu carro avariou-se. Já sabemos de onde vem o erro. Mas os portugueses mesmo os dos meios universitários dão-no. Grave, hein! E não posso deixar de assinalar, antes do fecho, dois advérbios que andam na boca das gentes: basicamente e obviamente. Bem, existem no léxico português mas são palavras anglo saxónicas. Por que não, no primeiro caso, no fundo… e no segundo, é claro ou é evidente…?

Falar bem, ou seja, com simplicidade, sem arrebiques, será actualmente uma utopia tal como Shangri-La? Depois do exposto fica-se perplexo.

“To be, or not to be”, Hamlet, Shakespeare. A pergunta metafísica par excellence no contexto da decadência da linguagem leva a quem se preocupa a perguntar: decadência contínua inevitável ou esperança numa travagem? Acredito na segunda hipótese.  Será difícil. À primeira vista parece impossível, lembremos a República de Platão, mas então por que escrevo?

In: "Jornal Económico" de 14 de Novembro de 2023.



[i] Escreve de acordo com a antiga ortografia

[ii] Professor reformado, escritor. 

 


A Bomba Atómica

sábado, 18 de novembro de 2023

 por Adriano Miranda Lima[i]

O meu sentimento de homem já bem amadurecido pelo tempo e pela vida diz-me que o nosso regime democrático corre o risco de ser desfeiteado, se não mesmo seriamente ameaçado, por gente que lhe é visceralmente estranha. Os principais protagonistas da actual direita radical e populista ou não tinham ainda nascido ou apenas gatinhavam quando, em Abril de 1974, os portugueses recuperaram todas as liberdades cívicas e construíram os fundamentos do regime democrático em que vivemos. Em que a maioria da nação se revê, comprovando-o em cada escrutínio eleitoral. Por isso, esses entusiastas do iliberalismo não têm uma perfeita noção do que foi viver sob a batuta do regime autoritário e conservador que o comum dos historiadores considera de inspiração fascista, por antiliberal e antiparlamentarista. De facto, as gerações mais jovens não tiveram oportunidade de o sentir na pele e na alma, em ordem a poderem alicerçar uma formação ideológica de forma consciente e parametrizada em função de uma realidade vivida e sentida. Contudo, com maior ou menor retoque cosmético dissimulador, esse é o seu modelo político de eleição para a vida dos portugueses.

O que preocupa, ou devia preocupar, é que essa gente recruta os seus adeptos e correligionários entre os sectores mais jovens da sociedade, explorando as suas insatisfações ou frustrações. Basta olhar para as redes sociais e os montões de dejectos mentais que nelas são sistematicamente despejados, com os seus autores a beneficiarem da liberdade de expressão que lhes confere o próprio regime político da sua hostilidade. A sua estratégia consiste em explorar insucessos pontuais da democracia e a sua impossibilidade de satisfazer no imediato todos os anseios das gerações mais novas e das populações. Como se o regime da sua aparente afeição pudesse alguma vez constituir alternativa séria e credível para a resolução de todos os problemas do país. Bastar-lhes-ia olhar simplesmente para o Portugal rural, subdesenvolvido, com as taxas de analfabetismo das mais altas da Europa, que a revolução de Abril quis deixar definitivamente para trás.

A maioria absoluta sufragada nas urnas e que permitiu a constituição do actual governo foi sem dúvida um autêntico murro no estômago de uma oposição que almejava o poder que lhe vinha escapando. Mas se o murro pode simplesmente ter tido um efeito terapêutico nos sectores democráticos da oposição, o mesmo não se poderá dizer da tal direita radical e populista, cuja gritaria histriónica e atitudes civicamente deploráveis em sede parlamentar ou fora dela, não disfarçam a sua animosidade contra o regime democrático, em geral, e o Partido Socialista, em particular, o seu principal fundador.

Essa maioria absoluta, em vez de saudada por prenunciar uma desejada estabilidade política em tempos pouco promissores no mundo em geral, foi logo alvo de insinuações gratuitas e de uma sanha persecutória tão despropositadas que um dia tudo merecerá ser estudado no âmbito da politologia. O problema é que foi o próprio Presidente da República a dar o mote, a ponto de não tardar a ameaçar com a “bomba atómica” se fosse caso disso, isto é, dissolver a Assembleia da República, devido a pequenos incidentes de percurso, sem real relevância política, na sua maioria insidiosamente engendrados por adversários do poder declarados ou dissimulados. Se o Presidente da República o disse sem rodeios, tem o cidadão comum de supor ou desconfiar que o urânio, matéria-prima da bomba, talvez já estivesse em processo de enriquecimento. Onde e com quem é o que importará perguntar, se bem que o cidadão mais desatento não terá dificuldade em ajuizar e tirar as suas conclusões.

Com efeito, a bomba estourou, vinda dos lados do Ministério Público. A questão é saber com que motivação foi enriquecido o urânio e com que orientações explícitas ou sibilinas. E também se deve perguntar se o concebeu com a perfeita noção do grau de destruição e da letalidade que ia desencadear. A onda de choque estamos a senti-la e o país vai seguramente sofrer os seus efeitos danosos. Os sinais macro da governação eram e são claros e irrefutáveis na sua positividade, desde o acerto das contas públicas e a redução da dívida, à criação de condições objectivas para o investimento produtivo, dois dos quais de indiscutível alcance estratégico.

Pelo que foi tornado público e cujos desenvolvimentos o país aguarda, foram tidos como procedimentos susceptíveis de ilicitude criminal conversas de toda uma entourage relacionada com os dois referidos investimentos estratégicos. Pelo teor das conversas telefónicas que o Ministério Público foi cirurgicamente segmentando para os jornais, para tentar lavar a cara, em manifesta e grave transgressão do segredo de justiça, fica uma séria dúvida sobre o que é ilicitude criminal e o que é diligência absolutamente normal para remover obstáculos que rodeiem a aplicação de grandes investimentos económicos. Só que bastou ser mencionado o nome do primeiro-ministro, ao que parece por confusão com o do ministro da economia, para que aquele se julgasse ferido na sua honra pessoal e na sua dignidade política e pedisse demissão do cargo.

Perante tudo o que vem acontecendo, faz todo o sentido questionar se não se está a “judicializar” a acção política, o que isso tem de anómalo e de ameaçador para a saúde do regime democrático. Agora, não é descabido o receio de se ter aberto caminho para uma grave e indesejável instabilidade política, despropositadamente espoletada neste tempo de incerteza que paira na Europa e no mundo, tributária de condições potencialmente ruinosas para a via positiva que o país vinha singrando.

Embora talvez não o admita, a bomba deflagrou estrepitosamente e há cacos que inevitavelmente jazem nas mãos do Senhor Presidente da República e o devem incomodar e preocupar. Não se questiona a isenção do mais alto magistrado da nação, tão-só o excesso do seu verbalismo em ocasiões que talvez recomendassem maior reserva, recato e contenção. Quanto ao papel do Ministério Público, neste como em outros processos, há evidências claríssimas e gritantes de que urge uma mudança radical no seu funcionamento e nos seus procedimentos. Para que a democracia não se ressinta de zonas sombra que possam existir na definição das competências e atribuições de cada órgão de soberania.

Rui Rio sabia o que dizia quando propôs a António Costa uma reorganização do sistema judiciário, mas não foi ouvido.



[i] Escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

Apresentação do livro “Mascarenhas Monteiro - Discursos e Mensagens (1991 -1996)

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Decididamente, não vou falar do autor cuja biografia, na parte que interessa, consta deste livro.

António Manuel Mascarenhas Gomes Monteiro era, profissionalmente, ou de formação, jurista; um homem público sobejamente conhecido, primeiro pelas funções que desempenhou como o mais alto magistrado da Nação durante dez anos consecutivos graças a uma muito abrangente maioria de cabo-verdianos – cerca de 75% – o ter escolhido pessoalmente para ser o seu Presidente da República. E depois, por ter merecido, no seu passamento, quiçá, a mais alargada – todos os escalões sociais – onda de homenagem do País a um seu dilecto filho.

Iriamos falar, outra vez, do homem de fino trato, afável e simpático, discreto, amigo do seu amigo, honrado e honesto, leal, vertical, íntegro, culto e erudito, humanista, estadista de corpo inteiro, diplomata de mão cheia, impoluto e dedicado servidor público. Politicamente, acima de tudo um fervoroso amante da liberdade e um democrata convicto – uma convicção assente em princípios e valores de dignificação e elevação da pessoa humana e não em formatadas ideologias partidárias. Portanto, absolutamente nada iria acrescentar ao que os senhores já não soubessem.

Vamos, portanto, ao assunto que me traz aqui – o livro.

O livro “Mascarenhas Monteiro – Discursos e Mensagens (1991 – 1996) é composto de 105 temas, ou melhor, títulos, classificados como Discursos, 85, Mensagens 16, Intervenções 3 e Conferência 1, distribuídos ao longo dos cinco anos que constituíram o 1º mandato de Mascarenhas Monteiro.

É um livro de cariz manifestamente político. E também histórico, porque cada assunto é devidamente datado e contextualizado. Todos os temas são densos, porque escritos para uma ocasião específica sintetizando sempre, deste modo, uma série de pertinentes mensagens; e calendarizados, por se referirem a ocorrências ou eventos fixados num tempo e num espaço bem determinados.  Cobre, [o livro] por isso, um largo espectro de assuntos que constituem matéria de interesse da população, da sociedade no seu todo, abrangendo assim, obviamente, a da governação e administração do País.

É de leitura fácil porque escrito numa linguagem simples, normalmente acessível ao seu destinatário directo e aos que têm interesse na matéria; esta facilidade de leitura também se verifica pela descontinuidade no tratamento dos diferentes temas – não há conexão entre eles – servido por um índice cronológico. Isto é, os assuntos estão ordenados de acordo com a data de ocorrência.

É uma escrita para oralidade, para se dizer em voz alta, daí as marcas da oralidade que surgem na decorrência dos textos e, por vezes, na repetição de diversos termos e expressões e na presença, quiçá, profusa, dos chamados articuladores de discurso.

Para fazer a apresentação propriamente do conteúdo do livro, seria bom contextualizá-lo no decurso de um mandato marcado por vários acontecimentos, alguns bem relevantes da vida social e política do País.

Podemos citar de caminho, e quase de cor, a nova Constituição oriunda de uma Revisão constitucional e os problemas decorrentes da sua promulgação, a cizânia no seio do Partido do Governo (MpD); a crise com Angola que obrigou ao envio de uma missão para normalizar a situação, a demissão de ministros dissidentes, a formação de um novo partido (PCD); o surto da cólera, as erupções do vulcão do Fogo, entre outros acontecimentos.

É bom ter presente que no nosso sistema jurídico-constitucional o PR não governa, não é executivo, e pela própria índole do Presidente Mascarenhas Monteiro, não se intromete publicamente nos assuntos que não são da sua esfera legal de acção, designadamente, os estritos de governação ou de natureza político-partidária.

Contudo, isto não o inibe nem o estorva de aproveitar as suas obrigações públicas e protocolares para apresentar as suas ideias e fazer passar as suas mensagens em matérias que lhes são caras e que constituem preocupações da sociedade, sobretudo quando são das camadas mais carenciadas que lhe merecem sempre cuidados acrescidos.

Entusiasta da nova ordem em Cabo Verde e convicto das virtualidades da democracia afirma peremptoriamente (cito): Tenciono apoiar todas as iniciativas que visam a edificação em Cabo Verde de uma sociedade de tolerância, de liberdade e de solidariedade. Importa desenvolver no povo, nas camadas juvenis em particular, a crença nos valores fundamentais da democracia, do humanismo e da justiça, numa sociedade que coloque o homem no centro das suas preocupações, com igual dignidade para todos e onde prevaleça a liberdade e o respeito pelos direitos fundamentais do homem. (pág. 31).

Este sentimento, aliás como outros dos quais abordarei adiante, ainda que de forma muito breve, acompanha de modo explícito ou com discreta subtileza, transversalmente todos os seus discursos. E é nesta linha de repetição de diversas formas e em várias situações que ele não se cansa de avisar (cito) ”continuamos, é certo, a ser um país pobre, dependente da cooperação internacional e vítima das agruras da natureza”. A esta constatação reveladora de um inquestionável realismo acrescentou algumas vezes: (cito) “o que largamente compromete a capacidade endógena de construir o desenvolvimento” o que, acrescentaria eu, contrasta com o triunfalismo ingénuo ou, quiçá, narcisístico, daqueles que falam de um país já viabilizado quando, ao longo destes quase 50 anos de independência não conseguimos fazer passar um único orçamento sem a ajuda da cooperação internacional.

Vem ao de cima, outra vez, o bom senso de Mascarenhas Monteiro ao concluir que [cito]: É minha convicção que, nesta tarefa de viabilização do país, um papel de primeiro plano está reservado aos operadores privados… [fim de citação – o negrito é meu] Deste jeito, volta a pôr nos carris, que não só a viabilização é ainda um processo em construção como um certo liberalismo será o caminho.

Mas o aviso de Mascarenhas Monteiro e as suas sensatas e pragmáticas observações são de sinal pedagógico e constituem um alerta aos nossos gestores públicos de contenção e rigor na gestão da coisa pública ao recomendar [cito]: saibamos aplicar de forma rigorosa os recursos que vamos conseguindo mobilizar, a bem de toda a população.

Um outro assunto constante da agenda mundial e muito caro a Mascarenhas Monteiro e que ele tratou de forma, por vezes, redundante mas sempre com a ideia de complementaridade, ao longo de muitas intervenções neste seu livro, são as alterações climáticas e o ambiente que ele considera que [cito] “Infelizmente, em Cabo Verde a problemática do meio ambiente não ocupa ainda o merecido e urgente lugar no conjunto dos empenhamentos da generalidade dos cidadãos, pelo que se torna cada vez mais necessária uma acção pedagógica de fundo em ordem ao desenvolvimento de uma consciência colectiva sobre tão grave problemática. Direi mesmo [repetiu] uma consciência colectiva sobre tão grave problemática. [fim de citação]

Mas, logo de seguida o seu pragmatismo e, sobretudo, a sua busca de equilíbrio, vem ao de cima e conclui: [cito] “É certo, há que reconhecê-lo, que existe uma certa interdependência entre esses comportamentos e o nível de vida da população, especialmente a pobreza existente, a qual obriga a soluções que relegam para um plano secundário quaisquer considerações de ordem ambiental”. E vai mais longe: “Os países que têm maiores recursos e cujas economias se desenvolveram com prejuízo das condições ambientais devem poder contribuir com meios humanos, financeiros e tecnológicos, no sentido de ajudarem os países não industrializados a prosseguir políticas e programas de desenvolvimento consentâneos com as medidas requeridas para uma boa gestão ecológica e ambiental. (Fim de citação, o negrito é meu)

E ainda nesta linha, tem várias e diversificadas intervenções incluindo a desertificação e a seca no Sahel e noutras regiões do Globo bem como o papel que considera importante do CILSS na nossa sub-região. A este propósito lembra as nossas mulheres e o seu sacrifício e diz: (cito) “Há que ter presente que, de forma mais vincada no Sahel do que em outras paragens, o papel da mulher é essencial, designadamente em virtude dos fenómenos da desertificação e da emigração que fazem aumentar as suas responsabilidades. E num outro passo, conclui: [cito]: Certo é que a mulher está na base de todas as actividades geradoras da vida; certo é que ela está na primeira linha da procura do bem-estar familiar. E avança:

“Eis assim um leque de responsabilidades que, objectivamente, obrigam a um interesse acrescido pelo estatuto da mulher no Sahel e militam a favor da sua formação, do seu acesso à terra, aos meios de produção e ao crédito. (fim de citação)

Uma outra matéria que o empolgava e merecia a sua particular atenção e de que trata profusamente neste seu livro é a cabo-verdianidade que ele considera o mais poderoso instrumento do povo cabo-verdiano na sua luta para a afirmação da sua identidade. E é nesta linha que nos diz: [cito] “É esta ideia de cabo-verdianidade, esta consciência comum sedimentada através de usos, costumes, hábitos, linguagens e outras formas de cultura, que constitui o elemento aglutinador de toda a Nação cabo-verdiana e que nos define como povo.” [fim de citação]

E neste particular considera Baltasar Lopes da Silva um verdadeiro paladino e paradigma da cabo-verdianidade” pela “postura humanista e universalista do seu pensamento, o seu entranhado apego à mamãe-terra, o reconhecimento generalizado da sua grande capacidade tanto interna como externamente.”(fim de citação) E fazendo jus ao seu conceito de cabo-verdianidade acaba por identificar, para além de Baltasar Lopes da Silva outras figuras brilhantes e, [cito] “ilustres que souberam lançar as bases da cabo-verdianidade, abrindo caminhos que contribuíram para a nossa afirmação como povo dotado de identidade própria, nomeadamente nos domínios da criação artístico-literária, da investigação, da cultura e do magistério.  São elas [as figuras]: Eugénio Tavares, José Lopes, Pedro Cardoso, Manuel Monteiro Duarte e Januário Leite”. E conclui: “os concidadãos que hoje distinguimos, a título póstumo, têm em comum um grande amor a esta pátria nossa e merecem ser apontados à juventude de hoje para uma vida de dignidade e de dedicação ao país.” ( fim de citação)

E para que não haja más interpretações na distinção concedida a essas figuras que fora devidamente justificada através de uma breve memória descritiva das respectivas razões, Mascarenhas Monteiro alerta que “De todo o modo, o que importa não é sobressaltar o passado com um olhar julgador, mas outrossim, adoptar uma perspectiva serena e solidária que, permitindo-nos tirar dele as mais judiciosas lições, nos ajude a enfrentar o futuro com o optimismo e segurança.” O que para mim, é o mesmo que dizer que a História não se julga, analisa-se e tiram-se as devidas ilações. Aliás, é o que se infere num outro trecho desta sua obra, ao afirmar que: [cito] “Assiste-nos o direito de interpretar e compreender, [a História] e não de julgar, o que impõe uma análise dos circunstancialismos de cada etapa e das formas humanamente possíveis a cada um colocar a sua pedra no edifício da cabo-verdianidade.” (Fim de citação)

Ao falar de História, somos automaticamente transportados para o 5 de Julho – a data histórica da Independência Nacional. Esta data, ao longo do livro foi evocada e celebrada pelo menos cinco vezes, as correspondentes aos 5 anos do mandato.  Sobre a efeméride diz-nos Mascarenhas Monteiro que: [cito] “A independência nacional é resultado de uma gesta colectiva e, como tal, património de todos e de cada um dos cabo-verdianos, sem distinções. E acrescenta:

“Tal luta não se fez numa única frente nem se desenvolveu de um só lance, antes concitou contribuições as mais diversas em etapas diferentes, porquanto se tratava de um processo progressivo de afirmação e assumpção, primeiro do que tudo, da identidade cabo-verdiana, seguindo-se mais modernamente, o cerrar de fileiras em prol do direito à autodeterminação e à independência. [E continua:]

“Trata-se, na verdade, de um processo complexo que importa, aliás, ser melhor conhecido e estudado, já porque persiste neste domínio um acentuado défice de conhecimento do passado, e designadamente um conhecimento feito com verdade histórica e não com voluntarismo ou intenções maniqueístas.” Isto tudo, “tendo em vista uma história que não se reduza à soma, e muito menos à subtracção, de histórias individuais, por exemplares ou desabonatórias que elas tenham sido, segundo os pontos de vista ou as conveniências”.

Ora chegado a este ponto não nos custa muito assumir que a História contada na primeira pessoa não merece integral credibilidade histórica. Tem sempre algo de história, é certo, mas muito de ficção. Aliás, quem nos deixa assim entender é, primeiro, o ilustríssimo   escritor, poeta, ensaísta, pensador Jorge Luís Borges que afirma que “História não é o que sucedeu, mas o que pensamos que tenha sucedido” que de certa forma é corroborado pelo igualmente distinto escritor, poeta e ensaísta moçambicano Mia Couto que nos diz no seu livro de crónicas “O Universo num Grão de Areia” que “memória não é exactamente o que se lembra mas o que se inventa”; e, finalmente, o saber popular que nos alerta para o facto de “quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto”.  Concluindo, a História tem de estar bem fundamentada em provas e factos, e não em narrativas avulsas.

A independência é um marco muito importante, mas um valor estritamente político, como o é, a autonomia, o protectorado, o federalismo, e por aí adiante, enquanto a liberdade é um valor ético consignado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e inerente à condição humana. Um valor, é bom registá-lo, que formalmente [autodeterminação] permitiu a nossa independência como bem frisou Mascarenhas Monteiro e nos foi de seguida negado no próprio dia 5 de Julho de 1975 fazendo jus a um determinado legado da generalidade dos chamados pais fundadores da independência – partido único, ditadura, centralismo democrático (leninismo), pensamento único, autoritarismo, violência, censura, repressão, negação de liberdade, etc. etc  – do qual só nos  livramos a 13 de Janeiro de 1991 e que permitiu, de acordo com o próprio Mascarenhas Monteiro, o aparecimento pela 1ª vez na História de Cabo Verde de dirigentes livre e democraticamente escolhidos. Não estou a julgar, apenas a constatar os factos.

É este regime instalado a 13 de Janeiro de 1991 que fez de Mascarenhas Monteiro o 1º Presidente da República de Cabo Verde democraticamente eleito, de que, segundo o próprio, muito se orgulha e mais o honra, e que ele no seu livro não se inibe de exaltar.

É bom salientar que em todo o livro não detectámos uma só menção explícita de desabono à I República.  As críticas, se existem, são muito veladas e surgem pelo contraponto ao superlativar a liberdade, a democracia e o pluralismo como alavanca para o desenvolvimento e bem-estar, como poderemos verificar pelas suas seguintes afirmações:

·      a democracia pluralista é o sistema que melhor serve os interesses dos povos e que está melhor vocacionado para a realização da justiça social e do progresso.

·      “Vamos lutar para que se institua em Cabo Verde uma sociedade cada vez mais livre, dotada de um regime que coloque o homem no centro das suas preocupações e que faça da dignidade da pessoa humana o fim último do exercício do poder.”

·      É através dos esforços de progressiva democratização do país que serão reassumidos os valores tradicionais da sociedade cabo-verdiana.

·      A minha mensagem é ainda uma mensagem de esperança nos valores e nas virtualidades da democracia, cuja consolidação e florescimento poderão abrir perspectivas excepcionais para o desenvolvimento económico e social e consequentemente para a promoção do bem-estar material e espiritual das populações.

·      Estão assim criadas condições para uma revigorada caminhada em prol do desenvolvimento e do bem-estar das populações, num quadro alargado de participação e dinamismo da sociedade civil, realizando plenamente as virtualidades do sistema democrático.

·      A liberdade de imprensa é um dos critérios para definir se um regime é democrático ou não. Ela é, antes de mais uma liberdade dos cidadãos…

·      Na verdade, a instalação do regime democrático significou o reacender da esperança e, na fase em que nos encontramos, é necessário que o povo tenha razões para acreditar na democracia e assim participe na tarefa quotidiana da sua consolidação.

·      Tratou-se [opção pela liberdade e democracia] de um período que marcou todos os cabo-verdianos, tendo acordado neles a esperança num futuro de mais liberdade e justiça, mas igualmente de mais e melhores condições de vida.

·      Tenho já repetidas vezes afirmado que o advento da democracia acordou nos cabo-verdianos a esperança de um futuro melhor.

E por aí fora não faltam loas ao regime pluralista e democrático.

Contudo, para que o regime seja mesmo pluralista e democrático – é Mascarenhas Monteiro quem o diz – tem de haver partidos políticos e uma oposição legal e institucionalizada. Sobre esta matéria não há quaisquer derivas e é categórico abordando primeiro os partidos para logo a seguir se referir à oposição. E tece, desta forma as suas considerações:

·                    Na verdade, não se afigura razoável perspectivar uma democracia sem partidos políticos.

·                    Neste novo ambiente em que vivemos não pode perder-se de vista a importância dos partidos políticos. Eles são factores essenciais de qualquer sociedade verdadeiramente democrática e moderna, o que deriva, desde logo, do seu papel na formação da vontade popular e na organização do poder político.

·                    … … …, impõe-se como necessidade ao jovem regime democrático, valorizar e dignificar os partidos políticos, tarefa essa da qual o próprio Estado não pode alhear-se. Pelo contrário, deve contribuir para a criação de condições necessárias à normal e plena intervenção daqueles.

 

E relativamente à oposição e o seu papel avança:

 

·               Neste contexto, é de realçar o papel que a oposição, agora legal e institucionalizada, pode desempenhar enquanto factor importante e indispensável para o funcionamento de qualquer democracia.

·               Igualmente, no âmbito da consolidação da democracia deve ser perspectivado o papel da oposição, de quem se espera seja leal e construtiva, o que não significa abdicar do seu direito à crítica e à luta pelo poder.

·               Todos desejamos que a oposição desempenhe o seu papel com firmeza e determinação, no quadro aliás, do seu estatuto legalmente aprovado. E assim é, justamente porque todos reconhecemos que o funcionamento normal de uma democracia é tributário de uma oposição forte e participativa.

Os trabalhadores organizados não foram esquecidos:

“Necessário se torna afirmar que os trabalhadores e as suas organizações representativas, enquanto actores e parceiros privilegiados do processo de desenvolvimento, devem estar na primeira linha do esforço nacional em vista de uma sociedade de progresso e justiça social, de concórdia e tolerância, mas também de exercício pleno do direito de participação num quadro de integração e jamais de exclusão, na certeza de que a unidade nacional deve ser sempre preocupação de todos os cidadãos deste país pequeno e frágil.”

Através do livro percebe-se, sem grande esforço, a intenção de Mascarenhas Monteiro em ajudar e apoiar o Governo ao divulgar as suas realizações. Manifestações a este respeito em que se assiste o empenhamento do Presidente em mostrar trabalho do Governo são bem patentes à medida que se entra no espírito das mensagens, de onde extraio duas ou três intervenções alusivas: [a seguir transcritas]: [Diz Mascarenhas Monteiro]:

·     … … … transformações vêm sendo, entretanto, introduzidas nos mais diversos campos da vida sócio-política do país. No campo económico, igualmente, o Governo da II República tem um programa novo, que deverá estimular, em novos e mais adequados moldes, a economia do país e a sua inserção na economia internacional. [E acrescenta a seguir]:

·        … devo exprimir o meu apreço por algumas medidas já tomadas, como sejam as relativas ao crédito habitação, ao fomento de iniciativas empresariais e ao chamado cartão jovem. [para continuar]:

·Temos já identificados projectos e programas que conduzirão à completa transformação do país no sentido do progresso e da modernidade, tanto no plano da infra-estruturação, como no que se refere à eficácia do aparelho de Estado … … …

Verifica-se, pois o esforço do Presidente em criar um ambiente de concórdia e estabilidade para o bom funcionamento das instituições mostrando o seu elevado apreço a estabilidade. É ele que a este respeito refere:

·        A defesa da estabilidade não tem, pois, um mero valor retórico. Ela é condição de funcionamento do país e da realização do bem-estar colectivo.  [e depois]

·        Num país como o nosso, a estabilidade e o correcto funcionamento das instituições devem ser garantidos sempre, pois toda e qualquer perturbação, por pequena que seja, reflecte-se nos mais diversos sectores de actividade, prejudicando a produtividade e os nossos frágeis equilíbrios. [e fecha, afirmando que…]

·        Isto é especialmente acertado num país como o nosso, cujas carências e fragilidades estruturais obrigam a erigir como um valor cimeiro a defesa constante da estabilidade, por forma a que energias nacionais e os parcos recursos que dispomos sejam inteiramente investidos na ingente tarefa de construir o desenvolvimento do País.

E é precisamente a manutenção desta estabilidade que ele muito preza e considera fulcral para o bom funcionamento do país, pelas razões acabadas de enunciar, que toma, quiçá, a decisão mais difícil do seu mandato – promulgação do texto constitucional.

Na verdade, este assunto mereceu do Presidente Mascarenhas Monteiro uma mensagem dirigida à Nação que se encontra nas páginas 113 a 118 deste livro cuja leitura cuidada e atenta recomendo, porque obrigatória para todos aqueles que se interessam por este tipo de assunto.

Acontece que a nova constituição surge, não de uma “constituinte” eleita para o efeito, mas de uma revisão constitucional que, ao que parece, não estabelecia limites à sua revisão, isto é, linhas vermelhas para esse efeito.  Este facto acaba por conferir a nova constituição, a meu ver, a mesma lógica da constituição anterior – reflectir o ponto de vista de um só partido, desta feita, do MpD. É com este sentimento que o Presidente Mascarenhas Monteiro nos diz (cito): “em devido tempo tive a oportunidade de intervir publicamente, chamando a atenção para a necessidade de debate e consenso, por forma a que a Constituição da República reflectisse a sociedade cabo-verdiana por inteiro, assim acautelando-se um horizonte temporal alargado.

Igualmente “lamenta verificar que o texto aprovado não tenha acolhido o sentir da sociedade civil quanto a uma questão tão sensível, qual é a do estatuto do Presidente da República. (fim de citação)

Acontece que ele foi eleito à luz de uma constituição que lhe conferia certos poderes; e, não obstante ter sido o órgão que acolheu a mais ampla maioria – mais de 74% do voto popular – não terá sido escutado e foi, como diz, “esbulhado do essencial desses poderes”.

Explica bem as razões por que acaba por promulgar o texto constitucional.  E estas, fruto de uma ponderação que põe os interesses de Cabo Verde em lugar cimeiro, visam – ou visavam – essencialmente “evitar crises ou situações de instabilidade, na certeza que só em concórdia e tranquilidade poderemos construir um futuro que signifique a materialização dos desejos de progresso e bem-estar para todos.

Apesar das queixas e das mágoas que Mascarenhas Monteiro legitimamente justificou e apresentou, não deixa, contudo, de, com a elevação e a dignidade que se lhe reconhecem, de enaltecer a nova Constituição quando observa que: (cito)

Nesta presente circunstância desejo antes de mais afirmar que, independentemente da análise que se possa fazer sobre o conteúdo do texto aprovado, constitui, na verdade, um evento histórico de particular importância o facto de a Assembleia Nacional ter elaborado para o país um texto constitucional que não apenas reflecte o novo regime vigente em Cabo Verde, como igualmente acolhe ensinamentos positivos e modernos da teoria e prática constitucionais a nível internacional, particularmente no que se refere aos direitos, liberdades e garantias.

Por esse facto devemos todos regozijar-nos.” (fim de citação)

Toda a polémica residual à volta da nova Constituição, a meu ver, ter-se-á dissipado, com a revisão constitucional de 2010 (?) em que todos os partidos com assento parlamentar participaram, o que não reduz a dimensão histórica da mensagem do Presidente Mascarenhas Monteiro na aprovação da Constituição de 1992.

Umas palavrinhas rápidas sobre a nossa diáspora que nunca tivera do regime anterior qualquer reconhecimento como parte activa da Nação cabo-verdiana, uma vez que lhe era negado o exercício dos direitos de cidadania fora do território nacional.  Mascarenhas Monteiro sem nunca citar este facto dirigiu-se-lhe, no Congresso dos Quadros Cabo-verdianos da Diáspora, em Junho de 1994, dando-lhe indicações seguras de que o novo regime, o País, a considerava um importante activo e contava com ela para o seu processo de desenvolvimento nos seguintes termos (cito): “A ampla representatividade deste Congresso, a nobreza dos seus propósitos e a importância dos temas que estão em debate autorizam-me a acreditar no início de uma nova era no relacionamento entre Cabo Verde e a sua diáspora.”  (O negrito é meu)

E acrescenta, deixando subtilmente, mais uma vez, uma certa crítica ao regime anterior:

“Se erros têm existido, é necessário agora superá-los e extrair as lições devidas, na certeza de que o tempo não joga a nosso favor nem tão pouco assiste a quem quer que seja o direito de marginalizar ou desperdiçar recursos.

Todos e cada um dos Quadros de Cabo Verde, residentes ou não no País, têm a sua quota-parte na tarefa comum de realizar a nossa legítima aspiração a um desenvolvimento real e durável.” (fim de citação)

O que, outra coisa não é, do que dizer que a partir de agora, não há cabo-verdianos dispensáveis!

O tempo já vai longe e eu não gostaria de terminar esta apresentação sem falar da visita oficial de Mascarenhas Monteiro aos Açores, em Novembro de 1991.

O texto é um pequeno canto à cultura e à história. É o retrato de Mascarenhas Monteiro. É que para além do incontornável texto político, – trata-se de uma visita oficial – nele vamos encontrar com maior incidência, uma abordagem cultural/histórica. E uma bem conseguida aproximação dos dois Arquipélagos – Açores e Cabo Verde – num abarcar cultural que constituiu a linha de força da visita de Mascarenhas Monteiro aos Açores.

Ao longo do seu discurso Mascarenhas Monteiro aludiu à insularidade, à Condição de ilhéu, ao cancioneiro poético da emigração, da partida e da saudade, temas que, como se sabe, foram vertidos tanto na Literatura dos Açores como na Literatura cabo-verdiana. Hiperboliza a insularidade quando, a determinada altura do seu discurso nos diz: “Não constitui novidade para ninguém, se disser que o que mais aproxima os dois povos, para além da língua e da história é a sua condição de ilhéu, numa palavra, é a insularidade.”

E neste amplexo cultural que une os dois arquipélagos, aproximou e citou Vitorino Nemésio, Natália Correia, Baltasar Lopes da Silva e Jorge Barbosa como os expoentes mais expressivos e mais emblemáticos dessa similitude literária que deram como resultado a açorianidade e a cabo-verdianidade.

Faz uma pequena incursão pela História ao estabelecer uma certa ligação entre Cabo Verde e os Açores no processo das descobertas ao dizer: A própria cabo-verdianidade – fruto do diálogo e da tolerância cultural e biológica entre a África e a Europa, já desde os primórdios da 2ª metade do Séc. XV e num contexto islenho – existe com algumas características que a identificam porque antes de Diogo Gomes e António da Noli escalarem em 1460, a Ribeira Grande, já o piloto do Rei de Portugal Diogo Silves, no ano de 1427, [uma das datas que se atribui à descoberta dos Açores] tinha já escalado a Ribeira dos Flamengos. (fim de citação)

E a terminar faz um apelo; um apelo que materializa e dá um sentido político e utilitário à sua visita: “Espero que a minha visita possa abrir caminhos, descortinar horizontes, traçar rotas para novas descobertas, não de terras mais além que já não existem, mas de potencialidades de acções que possam aproximar os nossos povos e desenvolver as nossas ilhas.” E diz mais: acredito na fecundidade e sageza do nosso relacionamento e cooperação.

Finalizo, com uma curiosidade: Durante o mandato de Mascarenhas Monteiro dezenas e dezenas de projectos e iniciativas governamentais foram vetados no recato do seu Gabinete. O relacionamento entre o Governo, designadamente, o seu chefe, Primeiro-Ministro, e o Presidente era estreito, amistoso e convergente no que toca servir Cabo Verde. E estas características facilitaram o entendimento político entre os dois órgãos de soberania projectando a governação a um patamar de satisfação plena que culminou com uma nova maioria qualificada, desta feita, não de punição/rejeição do adversário, mas de consagração e de celebração de obra feita.

Sobre este tema, ainda na decorrência do 1º mandato, existe uma entrevista concedida ao “Correio Quinze” de 30 de Novembro de 1994, conduzida pelo então jornalista Júlio Lopes bastante esclarecedora, que, para finalizar mesmo, transcrevo um pequeníssimo extracto alusivo:

Correio Quinze: Mas o Senhor Presidente tem feito isso de forma discreta e esta acção não tem sido do domínio público…

MM: Evidentemente. O Presidente da República deve agir discretamente. O Presidente da República não pode revelar à comunicação social as conversas que tem com membros do Governo. Com o senhor primeiro-ministro, por exemplo, que vem cá regularmente, ou com o senhor ministro tal ou com a senhora ministra tal. Seria, até, penso eu, revelar coisas que não devem ser reveladas e isso seria, por vezes, até, contraproducente.

Correio Quinze: Quer dizer que o senhor Presidente da República faz advertências ao Governo?

– MM: Sempre que necessário, faço advertências ao Governo, faço sugestões, faço os meus reparos sempre que necessário.  Tomo a liberdade de fazer sempre que julgo necessário. Só que estes reparos não podem ser feitos na via pública. Não posso ir ao Cachito dizer “bom já disse ao senhor Primeiro Ministro isto, aquilo, ou aqueloutro”…

– Correio Quinze: Concretamente, em que domínios, em que aspectos, o senhor Presidente já interveio?

– MM: Em vários domínios, em todos os domínios da vida pública, o Presidente da República intervém. A minha acção é quotidiana. Por não ser pública não [quer dizer que] deixa de existir. Existe. A intervenção é quotidiana. É só ver a minha agenda. E discuto com as pessoas… (Fim do extracto da entrevista)

A mim, – e seguramente a mais outros amigos – Mascarenhas Monteiro disse-me muitas vezes: as pessoas, por vezes, pensam que sou ou querem que eu seja oposição ao Governo. Eu não posso ser oposição ao Governo. É meu dever ajudá-lo e apoiá-lo… Não estou minimamente interessado que o Governo faça asneiras… Quem perde é Cabo Verde, somos nós todos. E o que eu quero, é o bem-estar de Cabo Verde e dos cabo-verdianos.

E então, compreendi melhor e absorvi bem porque é que o sagaz Onésimo da Silveira o considerava um aristocrata, [na política]. Não se referia à pertença a nenhuma casta, mas à elevação, à nobreza e à grandeza do seu espírito.

Este livro é um precioso documento histórico que interessa a qualquer investigador no domínio da política, da história ou da sociologia. Reflecte de certa forma, os excelentes resultados que derivam da simbiose – não cumplicidade – institucional entre os órgãos de poder de Estado.

Muito Obrigado.

Praia, 20 de Outubro de 2023

                                                                                                                        A.     Ferreira