Língua Portuguesa: qual é a origem da palavra “saudade”?

sábado, 27 de maio de 2023
Porque a palavra "Saudade," é considerada justamente uma das mais belas palavras da Língua portuguesa, de sempre;
encontre aqui - caro Leitor -  um pouco da sua história etimológica num texto  transcrito da edição de VxMag. de 26/05/2023


A palavra “saudade” é uma das mais difíceis de traduzir para outras línguas. Ela exprime um sentimento complexo e profundo, que mistura amor, falta, distância, memória e esperança. Quem nunca sentiu saudade de alguém que ama, de um lugar que visitou, de um tempo que passou ou de algo que ainda não aconteceu?

A palavra saudade é uma das mais bonitas e especiais da língua portuguesa. Mas qual é a sua origem?

A origem latina da palavra “saudade”

A hipótese mais aceite pelos estudiosos é que a palavra “saudade” vem do latim “solitatem”, que significa solidão. Esta palavra passou pelo galego-português, a língua falada na Península Ibérica entre os séculos IX e XIV, como “soidade”. Depois, sob influência de palavras como “saúde” e “saudar”, ela evoluiu para “saudade”.

Essa origem latina explica o sentido de vazio e de ausência que a saudade carrega. Quem sente saudade está só, sem a presença da pessoa ou da coisa que deseja. Mas a saudade também tem um lado positivo, pois revela o valor e a importância do que se perdeu ou se espera.

A possível influência árabe na palavra “saudade”

Outra possibilidade é que a palavra “saudade” tenha origem árabe, de palavras como “saudah” ou “suwayda”, que significam “humor negro, melancolia”. Essas palavras estariam relacionadas com a teoria dos quatro humores, segundo a qual o equilíbrio entre eles determinava o estado físico e emocional das pessoas.

A influência árabe na língua portuguesa é inegável, pois os muçulmanos dominaram grande parte da Península Ibérica durante quase oito séculos (711-1492). Muitas palavras de origem árabe entraram no nosso vocabulário, especialmente nas áreas da ciência, da arte, da agricultura e da culinária.

No entanto, essa hipótese árabe para a origem da palavra “saudade” não é muito convincente, pois não há evidências históricas ou filológicas que a sustentem. Além disso, o sentido de melancolia não abrange toda a riqueza e a complexidade da saudade.

A consolidação literária da palavra “saudade”

Seja qual for a sua origem etimológica, a verdade é que a palavra “saudade” se consolidou na língua portuguesa graças à literatura. Os poetas e os escritores foram os principais responsáveis por explorar e difundir esse sentimento tão nosso.

A saudade está presente em obras fundamentais da nossa cultura, como os cantares de amigo da poesia trovadoresca medieval, as cartas de amor de Pedro e Inês de Castro no século XIV, os versos nostálgicos de Camões no século XVI, as elegias sentimentais de Bocage no século XVIII, as confissões românticas de Almeida Garrett no século XIX, as reflexões existenciais de Fernando Pessoa no século XX e as crónicas intimistas de Miguel Torga no século XXI.

A saudade também é um tema recorrente na música popular portuguesa, especialmente no fado, considerado o género musical nacional por excelência. O fado expressa a alma portuguesa, marcada pela saudade do passado glorioso, pela angústia do presente incerto e pela esperança do futuro melhor.

A singularidade cultural da palavra “saudade”

A palavra “saudade” é um dos símbolos da cultura lusófona. Ela representa uma forma única de sentir e de viver o mundo. Revela uma identidade colectiva que se construiu ao longo dos séculos através da história, da geografia, da religião e da arte.

Não há uma tradução exacta para esta palavra noutras línguas. Algumas tentativas são: nostalgia (inglês), añoranza (espanhol), manque (francês), Sehnsucht (alemão), dor (romeno), скучать (russo), 想念 (chinês), 懐かしい (japonês). Mas nenhuma delas consegue captar toda a essência e a profundidade da saudade.

Por isso, muitos estrangeiros acabam por adoptar esta palavra quando aprendem português ou quando visitam os países lusófonos. Eles reconhecem que a saudade é algo especial e intransferível. Percebem que a saudade é uma marca distintiva da nossa língua e da nossa cultura.

In: VortexMag.

26/05/2023

 

 

 

 

 


sábado, 13 de maio de 2023

 

Comentário de Adriano Miranda Lima à publicação seguinte

“Descolonização da Língua portuguesa?” de Ondina Ferreira

Por ter achado oportuno e interessante o comentário, acima mencionado; por considerar que merece ter maior visibilidade e melhor leitura dos que visitam o “Blog”, com a devida vénia ao autor,  publico-o sob este formato.

 

 

Dra. Ondina Ferreira, prezada Amiga, também fui assaltado pelas mesmas dúvidas quando ouvi a escritora Paulina Chiziane afirmar a necessidade de “descolonizar” e limpar” a nossa língua, que é de todos e de ninguém em particular. Como não tive oportunidade de ler o texto integral da sua intervenção, as minhas dúvidas mantiveram-se e nem mesmo com a tentativa de compreensão da Dra. Ondina Ferreira elas se desfizeram.

Claro que libertá-la de anglicismos e galicismos não é o que está em causa. Se é um facto que desde tempos remotos alguns vocábulos franceses e ingleses se foram convertendo em palavras portuguesas adaptadas para vincular o mesmo significado, e não são tão poucas como isso, o que hoje tendencialmente se verifica é algo exagerado e abusivo e sem que se justifique. E também algo diferente porque se usa na conversação em português o termo ou a expressão em inglês puro e genuíno Neste caso, “descolonizar” e “limpar” tem de ser uma preocupação, mas antes disso importará que o utente da língua não crie conspurcações desnecessárias.

Mas a minha dúvida é se algumas das palavras citadas pela escritora laureada devem ser objecto de qualquer acção de limpeza ou processo de descolonização. Por exemplo, “matriarcado e patriarcado”, uma vez que o seu significado é do âmbito da sociologia e da antropologia, conectando-se com a fenomenologia histórica, não vinculando exclusivamente os povos africanos e, por isso, não podendo ser-lhes atribuída uma interpretação pejorativa que suscite racismo.

“Palhota” não passa de uma habitação rural contruída com recursos naturais à mão (palha e canas). Em Cabo Verde e em certas regiões do interior de Portugal utiliza-se pedra, o meio abundante na natureza. A diferença entre uma palhota e um casebre de pedra é apenas no material da construção, não na sua indigência básica. Só com intenção marcadamente pejorativa se pode ver na palavra palhota uma ideia de racismo. O facto de um régulo me receber em 1972 na sua palhota numa aldeia de Moçambique (era maior e melhor que as outras) não lhe retirava dignidade aos meus olhos e menos ainda aos olhos do próprio. Esse régulo nutria uma simpatia particular pela minha pessoa.

Por fim, a palavra caatinga ou catinga. Usa-se no Brasil desde os primórdios da colonização do seu território e significa um terreno árido com vegetação característica. Mas passou, de facto, a ser usado, não sei desde quando e onde, certamente nos territórios africanos, de forma pejorativa e em alusão ao cheiro típico exalado por africanos. É evidente que tanto brancos como pretos podem exalar cheiro típico por falta de higiene, mas sei que havia a crença de que os africanos exalavam um cheiro próprio ou por falta de higiene ou por uma questão hormonal. Dizia-se em Angola, como eu bem sei, “catinga de preto”, pelo que, aqui sim, há toda a razão em eliminar dos dicionários esse significado da palavra deixando incólume o outro, o verdadeiro. É indigno e urge a limpeza.

Portanto, fico com dúvidas sobre as verdadeiras palavras que, no critério da senhora Chiziane, justificam acção depurativa. Outras certamente haverá que poderão requerer “limpeza”, mas no meu entendimento não poderá ser por qualquer rasoira saneadora. Porque se virmos bem não seremos apenas nós, os africanos ou de origem africana, a assumir esse encargo, mas sim todos os falantes da língua, independentemente da sua geografia e cultura. Como os linguistas sabem melhor do que eu, as transformações numa língua não se operam por deliberações administrativas, mas sim pelo contínuo e prolongado desuso de palavras no léxico da comunicação entre as pessoas.

Para concluir, porque já fui longe demais, não quero deixar de considerar que a escritora não tinha qualquer necessidade de começar a sua intervenção com estas palavras: “Sou negra, e depois?” “sou africana, e depois?”. Sim, e depois, Paulina Chiziane? Qual a razão por que formulou essas duas interrogações? Compete-lhe mais a ela responder do que o júri que lhe atribuiu o prémio ou os milhões de lusófonos que assistiram à cerimónia. E que até devem ter ficado, como eu fiquei, encantados com a beleza da senhora e com a dignidade do seu porte e apresentação.

Como tenho Moçambique no meu coração, mais do que Angola, por onde andei primeiro, não me esqueço de uma cena ternurenta proporcionada por um soldado moçambicano natural de Inhambane que era meu subordinado. Ele fazia parte de um grupo de 50 praças que reforçavam a minha companhia. Estudou numa missão protestante e falava e escrevia o português como qualquer metropolitano escolarizado. Ora, no dia 10 de Junho de 1972, já lá vão 51 anos, ele, que ajudava na escolarização dos meninos da aldeia local, decidiu organizar um pequeno espectáculo teatral com a classe escolar. O tema foi “Camões e o amor”. Eu e os meus graduados fomos assistir e aplaudimos. Comove-me ainda esta recordação.

As minhas felicitações, Dra. Ondina Ferreira, pelo seu importante texto e pelo que representa de luta empenhada pela valorização do português e pela sua real promoção como língua materna e instrumento de comunicação entre os falantes da nossa terra.

Adriano Lima

Descolonização da Língua portuguesa?

sexta-feira, 12 de maio de 2023

 

Tenho lido nos últimos dias alguns textos de articulistas e de alguns especialistas da Língua portuguesa, os quais, aproveitando-se da “deixa” proferida pela escritora moçambicana, Paulina Chiziane, e que o título deste escrito alude, pedirem igualmente uma “limpeza” da nossa Língua que está de tal maneira pejada de vocábulos ingleses ou corruptela deles, que qualquer dia corremos o risco de a ter descaracterizada…

Ora bem, a este respeito concordo com o apelo lançado por esses articulistas que discorrem sobre a Língua comum, pois já é aflitivo e mesmo insuportável ouvir-se a cada passo, comunicadores de Língua portuguesa, sobre determinado assunto, “encherem” literalmente o seu discurso − quer oral, quer escrito − com palavras inglesas quando existem rigorosamente as mesmas em português.

Qual é a necessidade disso? Será um querer exibir o seu domínio de inglês? Ou também demonstrar que já se internacionalizou nas lides da tecnologia, da ciência ou mesmo das Letras?

Uma coisa é saber a Língua de comunicação internacional, isto é, o inglês, diria imprescindível hodiernamente, mas coisa outra e bem diferente, é carregar e afrontar a Língua portuguesa com palavras inglesas desnecessárias.

De facto, razão têm aqueles que pedem a “descolonização” da Língua portuguesa de termos em inglês.

Entrando agora no pedido directo da nossa laureada com o Prémio Camões 2022, confesso que a não havia entendido, quando, no seu discurso, no acto da entrega do honroso galardão, pediu a “descolonização da Língua portuguesa”.

Descolonização? Como? (pensei eu…) A língua portuguesa, (LP), é hoje pertença dos falantes de Angola que a adaptaram à terra, a transformaram de forma distinta e a fizeram sua, como Língua nacional, oficial e Língua materna de mais de 50% da sua população actual.

É também pertença do Brasil que a reconfigurou e a absorveu de tal monta, que uma significativa faixa da sua população julgava − ou ainda julga − que o português só se falava no Brasil e que a Língua portuguesa tinha lá nascido. Nem a história da viagem da LP conheciam. Digo conheciam, porque actualmente com a globalização e a numerosa emigração de brasileiros de todas as condições sociais (quase um milhão) para Portugal, já tiveram ocasião de verificar de onde partiu a matriz da Língua que eles cantam, falam e escrevem.

É pertença do cabo-verdiano que a fez sua Língua oficial e veicular do Ensino. O português de Cabo Verde deu origem a uma brilhante literatura (romance, contos, noveletas e poesia) com o pioneiro Movimento Claridade e particularmente reflectido nas obras de Baltazar Lopes da Silva, Jorge Barbosa, Manuel Lopes, António Aurélio Gonçalves, Pedro Corsino de Azevedo, entre outros. E mais, a LP reconhece como seu descendente quase directo, nestas ilhas atlânticas da Macaronésia, o crioulo cabo-verdiano, hoje, Língua cabo-verdiana.

A LP é igualmente pertença dos falantes guineenses; dos falantes moçambicanos, como por  exemplo, a escritora Paulina Chiziane que a usa e bem nos seus livros e na sua fala; dos falantes são-tomenses, enfim, dos falantes das comunidades de LP, espalhadas por diversas partes do mundo.

A LP é pertença dos falantes portugueses que a fundaram sob base latina e com farta contribuição grega, arábe, celta, entre os muitos substractos de línguas outras que a constituíram. Citando, a propósito, o Prof. Doutor. Adriano  Moreira : " A Língua portuguesa não é nossa, também é nossa"

Tudo isto reflecte a variedade, a riqueza e a vitalidade da nossa Língua comum, cuja diversidade vem merecendo o escrupuloso respeito de todos.

Portanto, a descolonização proviria de onde? De qual desses países, todos independentes há quase meio século? Ou seria do Brasil que já leva dois séculos como país?

Confesso que não entendi o pedido. O erro, ou o não entendimento, podiam – ou podem − estar do meu lado, admiti.

Mas mais, hoje, em pleno século XXI, com todas as teorias linguísticas que alteraram profundamente, os conceitos de pertença de uma Língua viva e geograficamente dispersa e diversa, como é o caso da Língua portuguesa, fará sentido tal pedido?

Mas vejamos: com o advento do 25 de Abril e a consequente independência das colónias africanas portuguesas, deixou de existir um “Centro” – leia-se Metrópole – irradiador de directivas sobre a LP, passando cada um dos países de Língua portuguesa a poder intervir de forma que achar conveniente sobre a questão linguística.

Aqui chegados, atrevo-me a perguntar qual é, actualmente, o “Centro irradiador” da nossa Língua comum para fazer circular orientações?  Brasília? Lisboa? Luanda? Maputo? Ou alguma das outras capitais de que se compõe a CPLP?

Nenhuma delas. Creio ser esta a resposta mais adequada.

O que significa então, na hora actual, “descolonizar” a Língua portuguesa?

Será que a Escritora se referia – ao fazer tal pedido – ao caso específico do seu país, Moçambique?

O que se passa com a Língua portuguesa naquele País do Índico? As notícias que nos chegam é que a LP vem aumentando de falantes de forma continuada e sustentada, sobretudo nas gerações de moçambicanos com menos de 50 anos. Logo está pujante.

Continuei – e lamento dizê-lo – sem perceber e sem conseguir descodificar o pedido da insigne Escritora a quem aproveito para felicitar por tão importante prémio recebido.

Mais, mais tarde, lido na integra e com atenção o discurso é que percebi a especificidade do pedido da escritora, pois que as grandes parangonas dos jornais só diziam que Paulina Chiziane tinha pedido: “a descolonização da Língua portuguesa” e, afinal, verifiquei que o que a escritora moçambicana solicitou foi a erradicação ou quiçá alteração, dos Dicionários de português de conceitos, como: “Matriarcado”, “Patriarcado” “Catinga” e “Palhota” por conterem definições ofensivas ou inapropriadas para a actualidade em que vivemos.

Surpreendida pela intervenção e movida pela curiosidade uma vez que tinha uma percepção diferente dado que estava convencida de que tais observações já não tinham razão de ser fui imediatamente consultar os dicionários que não sendo muito actuais poderiam ainda conter as incomodidades apresentadas. Assim encontrei:

Caatinga, catinga = cheiro intenso e desagradável a suor.

Matriarcado = Conceito de organização social em que a mulher possui papel central, é chefe de família, e exerce autoridade preponderante e a transmissão patrimonial segue a via materna.

Patriarcado = Princípio social, político, económico…assente na descendência e sucessão por via masculina como o fundamento básico da organização de uma sociedade.

Palhota = (de palha+ sufixo - ota) Cabana coberta de palha ou de colmo. Habitação características de algumas comunidades indígenas africanas.

In: Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea – Academia das Ciências de Lisboa e Fundação Calouste Gulbenkian. Editora Verbo, I e II volumes, 2001.

Procurando noutro dicionário, apenas para confirmação, este de autor brasileiro embora o meu tenha sido editado em Portugal, encontrei para as mesmas palavras o seguintes significados:

Matriarcado (1899) = regime social em que a autoridade é exercida por mulheres. (…)

Patriarcado = (…) Forma de organização social em que a descendência reconhecida é patrilinear.

Palhota = casa rústica.

Caatinga ou catinga = mau cheiro. Odor desagradável ou nauseante.

In: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa – Círculo dos Leitores. Lisboa, 2002.

Logo, deduzo que seja ela quem deva actualizar os seus dicionários de português uma vez que, – presumo – que o pedido dela já esteja satisfeito nos dicionários da Língua Portuguesa, publicados há mais de vinte anos

Em boa verdade, os dicionários mais modernos, já contêm definições, sem preconceitos, mais científicos e que seguem os ditames dos tempos, dos modos e do entendimento de culturas distintas.

Reitero que os dicionários actuais, a que tenho tido acesso, vêm fazendo um esforço louvável de “decantação” da sua sinonímia. Creio que, sobretudo, a partir da última década do século XX. Mas atenção, refiro-me aos dicionários da Língua portuguesa, publicados em Portugal, pois que são os que utilizo.  

De qualquer forma já é mais do que tempo para que nos nossos países independentes – há perto de cinco décadas – as respectivas Editoras publicarem os seus próprios dicionários, ao invés, de criticar o alheio.

 

 

quarta-feira, 10 de maio de 2023

 

In English please: a língua inglesa e a internacionalização do Ensino Superior

 

 Por: JOÃO DUARTE FONSECA

 Professor Universitário

 

E era toda a Terra de uma mesma língua e de uma mesma fala. Genesis, 1:1

Quando em 1714 a França e a Áustria assinaram o acordo que pôs fim à Guerra da Sucessão Espanhola, Luís XIV impôs que o documento fosse escrito em Francês, contrariando a prática até então habitual de usar o Latim nos tratados internacionais. Simbolicamente, a nação que à data era a mais poderosa da Europa reclamava para o seu idioma o prestígio até então adstrito ao império que moldara a construção da Europa muitos séculos atrás, e com tal eficácia o fez que o Francês iria ser unanimemente aceite como a língua da diplomacia desde então até meados do século 20.

 Porém, o desfecho da Segunda Guerra transferiu para o outro lado do Atlântico o domínio das questões globais, e o estatuto de Língua Franca – ou seja, de idioma transnacional usado para superar as barreiras linguísticas entre os povos – foi então inequivocamente capturado pelo Inglês.

Nos dias que correm é difícil encontrar uma instância internacional onde o Francês seja adoptado como língua de referência (o Tribunal Europeu, com sede no Luxemburgo, é talvez o único exemplo relevante). Do Latim é ainda mais difícil encontrar os traços: se bem que seja ainda, com o italiano, uma das duas línguas oficiais do Vaticano, em 2014 o Papa Francisco decretou que o Latim deixaria de ser a língua oficial do Sínodo dos Bispos.

Serve esta brevíssima resenha para ilustrar como o papel transnacional de uma língua reflecte em cada etapa histórica o sucesso – ou o declínio – das ambições imperiais da nação de origem. Ao contrário do que se possa pensar, a actual hegemonia da língua inglesa é meramente circunstancial: reflecte o domínio geopolítico dos Estados Unidos no Pós-Guerra, e não qualquer superioridade ou vantagem específica do idioma. Neste contexto em que língua e geopolítica se misturam, compreendem-se os receios frequentemente manifestados no Sul Global quanto à actual adopção do Inglês como língua franca. Devemos recear que a “imposição” de uma língua estrangeira a um povo seja uma nova forma de colonização? E em que medida a linguagem que usamos condiciona a forma como entendemos o mundo que nos rodeia, comprometendo a autonomia cultural dos povos?

Numa primeira análise, podemos traçar um paralelo com o papel do dólar na economia globalizada desde o acordo de Bretton Woods em 1944: com cerca de 60% do total das reservas cambiais à escala global, o dólar tem permitido aos Estados Unidos a imposição de uma ordem geopolítica, para crescente desconforto de economias emergentes como os BRICS, cujas dívidas soberanas oscilam ao sabor das taxas de juro decretadas pela Reserva Federal. Mas será o paralelismo entre a moeda e a língua – trocando “saúde da economia” por “pujança da cultura” – adequado? A acreditar nos antropólogos estadunidenses E. Sapir e B. Whorf, que conduziram as suas investigações entre as duas guerras do século 20, sim.

Segundo a teoria da relatividade linguística por eles desenvolvida, que atingiu grande popularidade entre os especialistas durante várias décadas, a percepção é condicionada pelo pensamento que por sua vez é condicionado pelo léxico e pela gramática, resultando que povos com línguas diferentes são necessariamente levados a construir diferentes representações da realidade. Nesta perspectiva, a adopção de uma língua única para o intercâmbio de ideias, renunciando a todas as outras, seria um cataclismo cognitivo de dimensões globais. Mas acontece que a relatividade linguística tão em voga durante grande parte do século 20 não iria resistir enclausurado num silo a reclamar a língua como bandeira identitária.

No presente, a adopção do Inglês como Língua Franca da Academia é o passaporte exigido para participar na vertiginosa viagem rumo às sociedades do conhecimento. No caso de Cabo Verde, essa opção abre também as portas ao recrutamento internacional de estudantes, algo reconhecido actualmente como um ingrediente essencial da sustentabilidade financeira das instituições de ensino superior. Aceitando esta premissa, urge pôr em prática um programa de capacitação dos docentes universitários e investigadores de Cabo Verde para a utilização da língua inglesa como ferramenta de trabalho.

O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, que há cerca de um século trouxe a linguística para o domínio da antropologia, afirmou que “os limites da minha língua são os limites do meu mundo”. Nesta óptica, acrescentar um idioma à proficiência dos Cabo-Verdianos nada retira, e só pode alargar a sua mundividência: o Crioulo para os afectos e a cultura, o Português para a partilha no universo da lusofonia, o Inglês para acertar o passo com o que de mais avançado se faz à escala global em matéria de Ciência, Tecnologia e Inovação. In English please: a língua inglesa e a internacionalização do Ensino Superior ao apertado escrutínio, tanto conceptual como empírico, a que foi sujeita. Investigações no âmbito do desenvolvimento cognitivo infantil revelaram que o pensamento se desenvolve antes da fala, colocando em causa a premissa básica da teoria.

 Por outro lado, as repetições dos trabalhos de campo na base da teoria expuseram sérias falhas metodológicas. E actualmente predomina a noção de que a cultura de um povo condiciona a sua língua, e não o inverso. A hierarquia das línguas sempre reconheceu as diferenças entre línguas nacionais – ligadas a um território –, línguas supercentrais, usadas em múltiplos territórios, e línguas hipercentrais, que ligam entre si os povos independentemente do território. São exemplos da primeira categoria o Italiano, o Sueco ou o Crioulo de Cabo Verde. No segundo grupo estão o Espanhol, o Árabe, o Português ou o Francês. Actualmente, só uma língua preenche os requisitos da terceira categoria: o Inglês.

A esta luz, a adopção pragmática de uma língua alheia para a partilha internacional de conhecimento afigura-se uma forma inteligente de não perder o comboio cada vez mais globalizado do desenvolvimento, sem a qual se corre o risco de ficar romanticamente enclausurado num silo a reclamar a língua como bandeira identitária. No presente, a adopção do Inglês como Língua Franca da Academia é o passaporte exigido para participar na vertiginosa viagem rumo às sociedades do conhecimento. No caso de Cabo Verde, essa opção abre também as portas ao recrutamento internacional de estudantes, algo reconhecido actualmente como um ingrediente essencial da sustentabilidade financeira das instituições de ensino superior.

Aceitando esta premissa, urge pôr em prática um programa de capacitação dos docentes universitários e investigadores de Cabo Verde para a utilização da língua inglesa como ferramenta de trabalho. O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, que há cerca de um século trouxe a linguística para o domínio da antropologia, afirmou que “os limites da minha língua são os limites do meu mundo”. Nesta óptica, acrescentar um idioma à proficiência dos cabo-verdianos nada retira, e só pode alargar a sua mundividência: o Crioulo para os afectos e a cultura, o Português para a partilha no universo da lusofonia, o Inglês para acertar o passo com o que de mais avançado se faz à escala global em matéria de Ciência, Tecnologia e Inovação.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

 

…Escrito por um professor?

Hoje é dia Mundial da Língua Portuguesa, 5 de Maio, dia de festa e de alegria pela vitalidade e pela expansão de nossa bela Língua!

Parafraseando o célebre poeta português, António Ferreira, (séc. XV) Viva! Cresça! E Floresça a bela Língua portuguesa!

 Creio não errar ao dizer que estes são também, os desejos sinceros dos seus falantes.

Normalmente, assinalo o dia 5 de Maio, o Dia da Língua Portuguesa com textos que quase roçam a uma verdadeira declaração de amor à minha Língua.

Mas, (há sempre um “mas” para estragar a festa)…

 Desta vez, para mostrar o outro lado, isto é, os estragos que vêm acontecendo no ensino/aprendizagem da Língua veicular do Ensino e Oficial de Cabo Verde; decidi publicar o escrito que a seguir transcrevo e que me provocou espanto, tristeza e revolta pela má qualidade do ensino que se está a verificar aqui nas ilhas.

Não se assuste caro leitor, (embora o caso não seja para menos…) o bilhete que a seguir se transcreve é de autoria de um professor de uma escola pública cabo-verdiana.

Sr. Inginhero (quereria dizer: Engenheiro??) Eis como ele escreveu o próprio título académico que dá nome ao seu endereço electrónico.

A dias, axo terça feira vi a senhora, mas tava a treinar e cuidar do meu filho e também a senhora tava a falar com outra senhora, não quis interromper, queria saber quando poço levar o dinheiro da renda.  (transcrição sic.)

 O remetente desta mensagem é professor formado, creio eu, pela Universidade de Cabo Verde UNI-CV (?)

Atente-se na quantidade de erros cometidos em apenas 3 (três) linhas!!!

 Visto que não devo pactuar com os erros crassos cometidos neste pequeno escrito e muito menos dar maus exemplos, a partir do meu “Blog”; terei de o reescrever de forma legível.

O autor deste pedaço de prosa altamente perturbadora, teria tão simplesmente, de tê-la redigida assim:

“Há dias, acho que foi na terça-feira, vi a senhora, mas eu estava a treinar e a cuidar do meu filho e também a senhora estava a falar com outra senhora, não quis interromper. Queria saber quando é que eu posso levar o dinheiro da renda.”

Podem julgar que se trata de uma brincadeira. O que seria também, de muito mau gosto. Mas não, não é uma brincadeira. Infelizmente é verdadeira a mensagem acima transcrita. O remetente é um professor de uma escola pública de Cabo Verde. De bradar aos céus!  O escrito é recente. Veio-me parar às mãos porque o destinatário não quis acreditar que quem o escrevera fosse professor de uma escola local, então enviou-mo com nota de espanto!...dizendo apenas: “Sem comentários.”

Lanço daqui um pedido de socorro, um SOS aos Directores das Escolas, ao serviço inspectivo do Ministério da Educação, para verificarem o estado lastimoso em que se encontra a Escola pública nacional com docentes de tal qualidade!

Pobres dos alunos que o têm como professor!! Como estarão eles a escrever a Língua veicular do ensino, com tal docente?

Gostaria e pedia encarecidamente, que a Inspecção escolar, verificasse e trabalhasse com este e com outros casos semelhantes que devem estar a ocorrer diariamente nas nossas escolas.

Termino, tal como comecei: Viva 5 de Maio! Viva a Língua Portuguesa!

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Creio tratar-se de um assunto com actualidade, este que vem vazado no Artigo de Nuno Pacheco, a quem, com a devida vénia, peço permissão para aqui o publicar.

Oportunamente divulgado, isto é, na véspera de mais uma celebração do Dia Mundial da Língua Portuguesa, 5 de Maio.

As questões apresentadas no texto, tal como ao autor, também vêm preocupando os falantes da Língua portuguesa, que dela cuidam e a prezam sempre. Por saber que os Leitores do Coral-Vermelho estão incluídos entre os tais falantes aqui referidos, transcreve-se a seguir o referido texto.

 

A língua, a ortografia, voluntarismos e bajulações

Por: Nuno Pacheco – Jornalista

Amanhã, 5 de Maio, celebra-se mais um Dia Mundial da Língua Portuguesa e nem vale a pena sublinhar o que aí vem de euforias, quanto a “oportunidades” e “internacionalizações”, como se a língua portuguesa não fosse já uma língua internacional “desde pelo menos o fim da Idade Média […], sem problemas de difusão ou promoção independentemente da forma como se escreva”, como acertadamente escreveu António Emiliano em 2008. Mas enfim, os políticos têm de se entreter com alguma coisa — só é pena que a língua se inclua nessa “cobiçada” lista. Este ano, nos festejos anunciados, há uma novidade: a sua celebração em Olivença, em aliança entre o município local, espanhol (o Ayuntamiento de Olivenza) e a UCCLA, nela participando escritores, professores, o alcaide de Olivença e o presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Dado o velho diferendo ali existente em matéria de soberania, trata-se de um oásis amistoso e digno de nota. Abre, claro, com uma “receção” aos participantes, que seria “recepção” se fosse no Brasil ou “recepción” caso ocorresse em Madrid. Malhas que o nosso acordismo tece. Por falar em acordismo, quase a coincidir com mais um Dia da Língua foi divulgado um apelo ao Presidente da República para que “seja reconhecido e revertido o gravíssimo erro cometido e por via do qual o Estado Português adoptou o Acordo Ortográfico, anulando-o”. Com um total de 169 subscritores (continuando, segundo os promotores, a recolha de mais assinaturas, que serão enviadas igualmente para o Palácio de Belém), tal apelo vem somar-se a iniciativas com idêntico fim, sob a forma de manifestos, abaixo-assinados ou iniciativas legislativas, às quais a classe política tem reagido, na sua grande maioria, com desinteresse ou mesmo desprezo. O que não deve desmotivar quem nelas se empenha, pelo contrário; desistir, aqui, não será nunca o lema. Daí que tal apelo mereça também boa nota, face ao aviltamento ortográfico reinante. A propósito da língua portuguesa, uma das discussões recorrentes é a do abuso do inglês. Um interessante artigo assinado por Carl Eric Johnson (“Porque é tão difícil dominar a língua portuguesa?”, PÚBLICO, 21 de Abril) atribuía “a dificuldade de muitas pessoas em dominarem o básico da língua portuguesa”, não só a complicações gramaticais e fonéticas, mas ao facto de haver uma “abundância de portugueses que falam bem inglês” e à “prevalência de informação apresentada em inglês”. Muitos encontros entre portugueses e estrangeiros, escreve Carl, “iniciam-se com o português a falar inglês, sem dar ao visitante a oportunidade de provar a sua capacidade de falar na língua da terra”. Se é duvidoso que haja assim tantos portugueses a falar bem inglês (sublinhe-se o “bem”), já parece pacífico que o português, por desejo de mostrar simpatia ou simples voluntarismo, tenda a exprimir-se em qualquer língua que não a sua, até numa mistura macarrónica de várias, quando tem um estrangeiro pela frente. Pior do que isso, bem pior, é o abuso de termos ingleses nas mais diversas áreas, que leva a anúncios públicos com frases como “Net talks”, “Apoia a tua crew” ou “Boosted odds para a tua laife” (assim mesmo, com “ai”), além da verdadeira praga que são as brands, o background, os shares, as views, os likes, os smarts, os gamings e toda a panóplia de pretenso novo-riquismo linguístico que não é mais do que pobreza lexical disfarçada. Mas disto já se encarregou (e bem) o escritor Alexandre Borges no artigo “Erradicar o Português: ponto de situação” (Observador, 2021). Por fim, uma frase delirante, dita pelo primeiro-ministro português, António Costa, perante empresários brasileiros num encontro onde participou Lula da Silva: “O que temos mesmo pena é de não falarmos com o vosso sotaque.” Não se imagina tal frase dita por um brasileiro a um português. Ou um nortenho a um alentejano, um beirão a um algarvio, um inglês a um americano, um escocês a um londrino — e vice-versa, em todos os casos. Porque é mesmo pela diversidade de sotaques que se torna interessante o nosso intercâmbio linguístico, não por um qualquer aplainamento ou acto bajulatório disfarçado de admiração. Foi esse erro, o de se achar que havia uma “língua portuguesa” igual para todos, quando já era saudavelmente diferente consoante as geografias, que conduziu ao desastre do Acordo Ortográfico de 1990, uma peça demonstrativa do pior que poderíamos juntar: a ambição política, a servidão académica e o desvario de um punhado de crentes que se julgaram “iluminados” para tal façanha. Se, por hipótese, alguém se virasse para um amigo e dissesse qualquer coisa como “o que tenho pena é de não usar um fato como o teu”, viam nisso sinal de amizade? Ou razão para desconfiar?

In: Público de 4/05/2023.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ler ou não ler! Eis uma questão sobre a qual é importante reflectir

quarta-feira, 3 de maio de 2023

 Com a devida vénia à autora, tomámos a liberdade de aqui publicar o texto da Professora e escritora, Ana Cristina Silva - "Ler ou não ler! Eis uma questão sobre a qual é importante reflectir." Publicado no Diário de Notícias de 27 de Abril de 2023.    

Afinal, trata-se de um  assunto sempre com interesse, sempre actual e que nos interpela...

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Há meses, os jornais portugueses fizeram manchetes sobre a ausência de hábitos de leitura dos portugueses. Um estudo encomendado pela Fundação Gulbenkian demonstrava que apenas 39% da população tinha lido pelo menos um livro e 27% destes eram pequenos leitores com um máximo de 5 livros lidos num ano. O eco da dramática manchete estendeu-se durante uma semana pelos ouvidos dos leitores de jornais e, depois, como é habitual nestas coisas, foi-se esbatendo sendo substituído pela sonoridade de um outro escândalo igualmente veemente. O estudo revela que muitos dos não leitores têm ambientes de literacia familiar relativamente pobres -- na linha do que algumas investigações feitas pela Prof.ª. Lourdes Mata do ISPA têm demonstrado. Curiosamente apresenta ainda um outro dado digno de registo: apenas 12 % dos leitores com habilitações de nível superior lêem por prazer, o que significa que, para estes, a leitura de ficção e de poesia não faz parte do seu cardápio habitual de leitura.

A relevância da leitura de romances e poesia tem sido objecto, em anos, recentes de diversas investigações no domínio da psicologia com estudos que abordam o seu efeito ao nível do bem-estar emocional, com estudos que avaliam o impacto da ficção e da poesia como recurso de terapias, com estudos que avaliam o impacto da literatura infantil no desenvolvimento de competências emocionais, verbais e cognitivas em crianças, etc. Em diversos países são proporcionados aos alunos de psicologia, de medicina, de sociologia, etc. cadeiras opcionais de escrita criativa e poesia, não com o objectivo de criar grandes analistas literários, mas como uma estratégia para promover nos alunos o contacto com as suas emoções e as dos outros. É de assinalar, por exemplo, que uma das faculdades de medicina do Porto tem uma cadeira opcional de Poesia ministrada por um médico que é igualmente um poeta de renome, tendo sido aliás o último Prémio Pessoa. O Prémio Nobel da Literatura Elias Canetti afirmou que "Não temos conhecimento daquilo que sentimos, sendo necessário que o vejamos nos outros para o reconhecermos" e a literatura pode ser um dos meios possíveis para despoletar esse tipo de autoconhecimento.

A narrativa e a ficção são elementos que fazem parte da natureza humana e isso é um dado que a psicologia tem repetidamente demonstrado. Por exemplo o desenvolvimento socio emocional das crianças está associado de perto à capacidade de aprenderem a narrar-se; a memória individual em relação ao passado tem frequentemente componentes ficcionais. A narrativa e a metáfora são recurso e asas para a terapia. No entanto, a literatura vai mais fundo na arte da narrativa procurando ir além do efémero, desvendando com as suas histórias individuais a dor que faz parte de todo e qualquer ser humano. Como refere Joyce Carol Oates, os escritores esforçam-se por, a partir do que lhe é próximo e da sua voz individual, chegar à voz comum, criando dessa maneira uma inesperada intimidade com os leitores. E a criatividade literária busca tantas vezes o processo alquímico de transformar sofrimento em beleza.

A literatura pelos recursos linguísticos e narrativos que mobiliza e que fazem parte do processo de criar uma obra de arte permite que a dimensão emocional e cognitiva seja simultaneamente tocada no decurso da leitura e desse modo, poderá conduzir o leitor a entrar em contacto de uma forma mais profunda com as suas emoções e as dos outros. «Aprendi com a Primavera a deixar-me cortar e a voltar sempre em inteira» diz

Cecília Meireles num dos seus poemas, estendendo deste modo a mão ao processo de renovação tão necessário num processo terapêutico. Joan Didion escreve no seu célebre romance, «O ano do pensamento do pensamento mágico»: "O sofrimento do luto é assim: um longo corredor que não é possível passar a correr", tacteando com esta imagem o coração de muitos leitores em processo de luto. Pretendo com estes exemplos, e poderia ir buscar muitos mais, demonstrar como a literatura é capaz de tocar a duas mãos nas emoções e cognições; e com este, texto apelar aos futuros psicólogos, futuros docentes, futuros biólogos - e provavelmente a muitos dos seus professores - para lerem boa literatura pois o nosso ramo de negócio, como se diz nos tempos atuais, é a alma humana e para qual precisamos de abrir todos os horizontes possíveis.

In: Diário de Notícias, 27/04/2023.

 Ana Cristina Silva  -Professora do Ispa - Instituto Universitário e escritora.