Finalmente, já se fala do serviço militar obrigatório

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Por Adriano Miranda Lima[i]

Há alguns anos, escrevi um livro intitulado “Forças Expedicionárias a Cabo Verde durante a II Guerra Mundial”. O que mais me motivou para essa iniciativa literária foi o entusiasmo e orgulho com que os veteranos de Tomar e outras localidades se reuniam amiúde, em almoços-convívio, para recordar essa experiência militar vivida na sua já longínqua juventude. Há muito que já nenhum sobrevive. Terminei o livro com estas palavras: Invade-nos a nostalgia quando vemos desaparecer os portadores de uma memória colectiva que era evocada e celebrada com orgulho e emoção, como se nela estivesse o epicentro das suas mundividências. Quando o sentimento do dever militar cumprido ilumina o rosto de um veterano e lhe devolve momentaneamente o entusiasmo juvenil, tem de se reconhecer que o serviço militar obrigatório é uma oportunidade inigualável para o exercício mais expressivo e mais intenso da cidadania.

Os veteranos da chamada “Guerra Colonial”, ou “Guerra do Ultramar”, conforme a perspectiva política, reúnem-se anualmente em almoços-convívio, com o mesmo propósito que animava os seus antepassados que serviram o país durante a II Guerra Mundial.

Uns e outros foram jovens que cumpriram o serviço militar obrigatório. Um serviço cujo tempo médio era de cerca de 3 anos e em condições incomparáveis aos tempos de hoje, com uma remuneração pouco mais que simbólica e em condições duras e precárias. Não obstante, a maioria dos jovens encarava o cumprimento da obrigação militar com um sentimento de orgulho porque, no mínimo, evidenciava a plena afirmação das suas aptidões físicas e psicológicas. Antigamente, o acto de ir "às sortes" (inspecção militar) era como um ritual de passagem, e os mancebos apurados para a tropa eram recebidos em festa na aldeia. A passagem pelas fileiras proporcionava uma ocasião ímpar para a socialização e criação de laços de amizade e camaradagem que perduravam pela vida fora, além do inegável contributo que representava para a formação humana dos jovens a aquisição de valores cívicos e disciplinares. Ao longo de toda a minha vida militar, nunca notei que os militares detestassem o serviço militar. As cerimónias de juramento de bandeira eram um momento único de entrosamento entre a instituição militar e a sociedade civil: as famílias enchiam os quartéis, orgulhosas de verem os filhos garbosos nas suas fardas e aprumados nas formaturas e nos desfiles que se seguiam.

Poderá argumentar-se que todo esse imaginário pertence ao passado, que as sociedades evoluem e que os padrões culturais da actualidade não se compadecem com sentimentos e valores tradicionalistas. E que, por conseguinte, a compulsividade inerente ao serviço militar não é passível de retorno, de ser entendido e acolhido pacificamente pelas sociedades. Discordo, porque a alma dos povos é imutável na sua essência e na consistência dos elementos afectivos, simbólicos e místicos que a integram. A esse respeito, penso que nada mudou.

O que mudou foi o modelo de serviço militar, a partir do momento em que, nos finais dos anos 90, os líderes das juventudes partidárias do PSD e do PS, respectivamente, Pedro Passos Coelho e António José Seguro, inscreveram na agenda da sua militância a extinção do Serviço Militar Obrigatório (SMO). Fizeram passar a ideia de que essa obrigação representava um sério prejuízo para os jovens, um entrave ao seu progresso e um comprometimento do seu futuro. Mas logo ficou evidente que a problemática do serviço militar se convertera em simples instrumento de disputa eleitoral, permitindo duvidar não só da maturidade política dos seus protagonistas como da própria autenticidade da bandeira que arvoraram em suposta defesa da juventude.

Passos Coelho muito se esforçou para que o governo do seu partido, o de Cavaco Silva, avançasse com a proposta para a discussão no Parlamento da extinção do SMO, mas sem êxito.

A decisão só seria tomada no final de 1999 pelo executivo seguinte, chefiado por António Guterres, o qual, face à pressão exercida por todos os partidos, à excepção do PCP, não teve outra saída senão levar o assunto ao Parlamento, tendo o respectivo diploma sido discutido e aprovado. Contudo, foi estabelecido um período de transição de quatro anos para o diploma entrar em vigor, o que aconteceu em Setembro de 2004. Passos Coelho considerou o diploma “um logro”, por arrastar durante mais quatro anos a obrigatoriedade do serviço militar. Seja como for, o SMO foi abolido sem qualquer discussão pública entrecruzando a sociedade civil, a academia e a instituição militar. O seu fim não obedeceu a uma visão estratégica e não foi precedido de um estudo aprofundado do problema e de tudo o que o envolve; resultou em grande parte de um capricho das juventudes político-partidárias, que, expulsando os adultos da sala, foram juízes em causa própria em algo que as transcendia largamente, porque estava em causa uma delicada e complexa questão que se inscreve na centralidade da Defesa Nacional.

O problema volta agora de novo à discussão pública quando soam tambores de guerra na Europa e outras paragens do mundo. O fenómeno da guerra tem hoje a marca da omnipresença e da transversalidade. E é neste cenário que a NATO aconselha aos seus membros o reforço do orçamento da Defesa no mínimo de 2% do PIB, além de medidas reformadoras das políticas de defesa nacionais, no cerne das quais se coloca necessariamente a questão do serviço militar.

Mas o regresso da discussão da problemática do SMO se deve à constatação de que o sistema de voluntariado e contrato não resolveu nem parece capaz de resolver o problema dos recursos humanos para as Forças Armadas, a avaliar pela grave situação deficitária dos efectivos causada pela dificuldade de recrutamento de novos militares. As razões de fundo estarão directamente relacionadas com as condições remuneratórias pouco atractivas e ainda com a circunstância de o actual sistema oferecer uma solução de empregabilidade apenas transitória. Só que o problema não se cinge apenas à capacidade de criar e apetrechar estruturas de forças para responder a qualquer ameaça. Para isso, o voluntariado serve e será sempre possível aliciá-lo com um sistema remuneratório mais compatível e outros incentivos, acaso o permitam os recursos financeiros. O problema de fundo é que a extinção do SMO eliminou o importante sistema de mobilização que o país construiu e vigorou desde sempre e ao longo de muitas décadas, mercê dos “distritos de recrutamento militar” instalados no território continental e ilhas, e das “secções de mobilização” existentes em cada unidade territorial. Tudo isso desapareceu e o país ficou sem condições para proceder a uma efectiva e maciça mobilização de forças de reserva se qualquer ameaça ou emergência o exigirem. Num ápice, por amadorismo político e irreverência juvenil, destruiu-se um sistema secular que foi validado e consolidado ao longo de décadas.

Destruir é muito mais fácil do que construir ou reconstruir. Embora se constate que os políticos continuam a fugir do assunto como o diabo foge da cruz, a discussão tem de ser fomentada na sociedade civil e no seio das Forças Armadas, para a recolha dos mais diferentes contributos que permitam uma tomada de decisão em sede institucional própria, decisão a ser equacionada, como me lembrou um amigo da Armada e correspondente, em função dos parâmetros "estrutural-genético-operacional" e "adequabilidade-exequibilidade-aceitabilidade". Seja como for, nada perderemos se olharmos para os modelos de serviço militar obrigatório que foram reintroduzidos na Suécia, Dinamarca, Finlândia, Noruega, Letónia, Grécia e Áustria, entre outros. São países democráticos e socialmente avançados que encararam o problema com realismo e sem complexos existenciais, porque a necessidade o exigiu.



[i]Escreve conforme a ortografia anterior ao AO 90.

                                                                                                

Língua portuguesa: a curiosa origem da palavra “adeus”

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Quase todas as palavras da LP carregam um passado, uma história, um étimo, uma origem que vale a pena conhecer. Assim acontece com a palavra "Adeus" trazida no Artigo publicado na revista VortexMag de 9/04/2024. Com a devida vénia, e por o julgarmos com interesse para o leitor aqui o transcrevemos.

 

A língua portuguesa, rica em história e em nuances, é repleta de palavras cujas origens se entrelaçam com momentos cruciais da história e com as transformações culturais das sociedades que a falam. Uma dessas palavras, carregada de significado e repleta de curiosidades sobre a sua origem, é “adeus”.

Este termo, usado diariamente por milhões de falantes do português, encerra em si não apenas uma despedida, mas também uma janela para o passado linguístico e cultural da língua.

A palavra “adeus” é uma forma de despedida em português, usada quando alguém se afasta de outra pessoa. À primeira vista, pode parecer apenas uma simples combinação de sons, mas a sua origem remonta a uma profunda tradição religiosa e cultural.

O termo é, na verdade, uma contracção das palavras latinas “a Deo”, que se traduz literalmente por “a Deus”, sugerindo que, ao despedir-se, o falante entrega a pessoa que parte à protecção divina.

Esta expressão tem as suas raízes no Cristianismo, onde a ideia de confiar alguém à protecção de Deus era uma prática comum. Com o tempo, “a Deo” transformou-se linguisticamente em “adeus” nas línguas românicas, como o português, o espanhol (“adiós”) e o francês antigo (“adieu”), todas reflectindo variações da mesma origem e do mesmo significado intrínseco.

A evolução da palavra “adeus” reflecte também a história da própria língua portuguesa, que se originou do latim vulgar falado pelos soldados, colonos e mercadores romanos que se estabeleceram na Península Ibérica a partir do século III a.C.

Com o passar dos séculos, o latim vulgar misturou-se com as línguas locais e com as dos povos invasores, como os visigodos e os mouros, dando origem às línguas românicas, incluindo o galego-português, que mais tarde se diferenciaria no português e no galego.

A transformação de “a Deo” em “adeus” é um exemplo fascinante de como as línguas evoluem e de como as palavras se adaptam às necessidades comunicativas das sociedades, absorvendo influências culturais e religiosas.

Além do mais, a utilização de “adeus” como despedida é um lembrete da importância que a religião cristã teve na formação da cultura e da língua portuguesas. A presença da religião no quotidiano dos falantes reflectia-se na língua, incorporando termos e expressões que evocavam a fé e a espiritualidade.

No entanto, é interessante notar como, com o tempo, o significado original religioso de “adeus” tem sido, de certa forma, secularizado. Hoje, muitos falantes usam o termo simplesmente como uma forma de despedida, sem necessariamente invocar a conotação religiosa que originalmente possuía. Isso reflecte a capacidade das línguas de se adaptarem e de evoluírem, reflectindo as mudanças nas crenças e nas práticas sociais.

Em conclusão, a palavra “adeus” é muito mais do que uma simples despedida. É um elo com o passado, uma janela para a compreensão de como a língua portuguesa, e as línguas em geral, são um reflexo vivo das culturas que as falam.

Explorar a origem e a evolução das palavras como “adeus” permite-nos não apenas entender melhor a língua portuguesa, mas também apreciar a riqueza cultural e histórica que ela encerra.

In: VortexMag

9/04/2024

 

domingo, 7 de abril de 2024

 50 anos depois de Abril, uma inesperada encruzilhada

Seria de estranhar que a democracia não fosse um percurso semeado de encruzilhadas, umas mais problemáticas do que outras, ou não se tratasse de um sistema político concebido pelo homem e que, portanto, exala necessariamente a natureza dos seus ideais e a feição das suas virtudes, tal como as suas dúvidas e ambiguidades existenciais e a sua vocação conflituosa. Shakespeare foi quem melhor exprimiu o drama do homem na encruzilhada da vida, isto é, nas ocasiões em que tem de fazer escolhas decisivas. Uma das suas frases universais foi proferida pelo personagem Hamlet: "To be or not to be, that is the question". Foi quando o Príncipe da Dinamarca enfrentou o dilema de saber se devia ir à luta, como lhe havia ordenado o fantasma do seu pai, ou quedar-se inactivo.

Este intróito é para caracterizar o actual momento da vida política nacional. É certo que tem havido encruzilhadas na caminhada da democracia portuguesa desde o I Governo Constitucional, que tomou posse a 23 de Julho de 1976, com Mário Soares como primeiro-ministro. Houve encruzilhadas jubilosas, como a adesão à CEE, em 1985, assim como outras menos afortunadas, como as intervenções do FMI em 1977, em 1983 e em 2011. Porém, seria absurdo ignorar que a actual conjuntura não resultou das incidências normais da vida política, o que acontece quando a inépcia e a imprevidência sobram onde se esgotam a lucidez e a imaginação criativa. Não, se estamos agora como estamos foi simplesmente pelo arbítrio de dois cidadãos com as mais altas responsabilidades na vida da República: a Procuradora-Geral da República, por inadvertência e irresponsabilidade; o Presidente da República, por uma decisão unipessoal que caberá à História julgar em que doses se operou uma mistura letal de intencionalidade, partidarismo e imprevidência.

Sim, a dissolução da Assembleia da República colocou a democracia portuguesa numa perigosa encruzilhada quando ela está à porta de comemorar o seu cinquentenário. E, ironicamente, quando existiram todas as condições políticas para assinalar a efeméride sob os melhores auspícios. O governo que vai entrar em exercício é de uma maioria relativa tão inexpressiva que dificilmente poderá garantir a estabilidade do seu funcionamento. Mas a consequência mais grave da decisão presidencial é a extrema-direita alçapremada para o terceiro lugar das forças mais votadas, posição que transforma o Parlamento num complicado xadrez político.

E é preciso ter em atenção que o fenómeno da emergência da extrema-direita tem uma localização muito mais endógena do que à primeira vista se pode pensar. Será ilusório querer resolvê-lo com uma simples pateada ao actor principal da comédia burlesca que é o André Ventura, visto que o milhão e 300 mil de cidadãos que nele votaram caracterizam uma faixa difusa da sociedade que importa auscultar e acompanhar atentamente. Sem rebuço, direi que pertencerão à mesma estirpe dos que ovacionaram Marcelo Caetano no estádio do Alvalade em 31 de Março de 1974 e que menos de um mês volvido encheriam as ruas a vitoriar a revolução de Abril. E é uma falsidade grosseira querer identificá-los com aqueles que não “vêem os seus problemas resolvidos”, na expressão pouco fundamentada de alguns jornalistas e comentadores, dado que nenhuma democracia, nem nos países mais ricos do mundo, conseguiu até hoje resolver todos os problemas a todos os cidadãos. Haverá sempre faixas da sociedade estagnadas na sua inexpressividade, e é nesse húmus social que se infiltra e se cultiva a extrema-direita. Foi nesse húmus que o Estado Novo assentou os alicerces da sua longevidade de 40 anos, fertilizando-o e expandindo-o.

Calcula-se a enorme dificuldade que terá tido Luís Montenegro em convencer figuras prestigiadas da sociedade civil a ingressar no governo, muitas das quais lhe devem ter fechado as portas. Se não tem sido fácil em circunstâncias mais pacíficas, o que não será no actual momento político? Consta que houve quem só aceitasse o convite poucas horas antes da apresentação dos indigitados ao Presidente da República. Compreende-se a razão. Bem longe vão os tempos em que o exercício de um cargo na governação exornava honra e prestígio e suscitava o respeito dos cidadãos e a consideração pública. Deixou de ser assim a partir da altura em que a proliferação de canais televisivos e de jornais desprovidos de ética de serviço público, em conluio com

magistrados do Ministério Público inexperientes ou pouco escrupulosos, levaram ao cúmulo do exagero o seu conceito de escrutínio dos titulares dos cargos públicos. Hoje, ser-se ministro equivale a ter a vida pessoal devassada nos media ou em escutas telefónicas reiteradamente prolongadas e despropositadas. Ou ser rotulado de “ladrão” no palavreado indecoroso, indigno e abjecto de políticos populistas e demagogos, cujo crescimento eleitoral muito se deve ao excesso de mediatismo que lhes concede a comunicação social, sabe-se lá com que motivações e com que fins. Perante isto, receia-se que se chegue a uma situação em que as forças políticas apenas poderão formar governo com recurso exclusivo aos seus militantes, cuja disponibilidade e dedicação dificilmente compensarão a sua falta de experiência profissional e o escasso domínio nas diversas áreas do saber.

O país democrático aplaudiu, e muito bem, a decisão de Luís Montenegro de recusar qualquer acordo com o partido da extrema-direita. Foi-o na eleição do Presidente da Assembleia da República. E espera-se que o seja igualmente no decurso de toda a legislatura.

A situação é, portanto, nebulosa e complexa. Montenegro assumiu que não conta com a extrema-direita, o que subentende que lhe restará o apoio ou a concertação possível com as restantes forças da oposição para poder governar. Caso contrário, será curto o tempo de vida do seu governo e iremos entrar em mini-ciclos governativos que alterarão a normalidade que regeu a maior parte do tempo o nosso quadro legislativo. É aqui que o Partido Socialista terá, talvez, de fazer uma leitura atenta e criteriosa dos sinais que se lhe deparam no chão desta encruzilhada. Terá de se socorrer das artes do bom pisteiro, como fazíamos nas operações militares em África.

Com efeito, se o Partido Socialista não engolir escrúpulos partidários ou não congelar temporariamente algumas convicções programáticas a fim de facilitar o cumprimento do ciclo legislativo normal ao governo da AD, a alternativa é a queda do executivo ou o seu recurso, em última instância, ao apoio da extrema-direita. Não seria nada saudável para a nossa democracia que se estendesse o tapete ao partido que o denega e atenta contra os seus fundamentos, os seus princípios e os seus valores. Partilhar com ele a governação, ainda que por via indirecta, seria uma promiscuidade inaceitável e difícil de digerir por todos aqueles que se orgulham da democracia instaurada há 50 anos e que transformou radicalmente a vida dos portugueses.

Além disso, o Partido Socialista deverá saber que se forçar o derrube do governo que entra em funções muito dificilmente poderá contar com o retorno de uma situação de alternância que lhe seja eleitoralmente diferente e mais vantajosa do que a actual. E com a contrapartida negativa de, eventualmente, se poder alimentar ainda mais uma instabilidade que favorecerá os desígnios eleitorais da extrema-direita. Seria desastroso que a entronização de mini-ciclos legislativos pudesse abrir a porta a uma indesejável ciclotimia nacional, ameaçando seriamente a saúde da democracia.

Nota: escrevo conforme a ortografia anterior ao AO 90.

Adriano Miranda Lima

Presidente e Presidência… Incoerências ou Inconsequências?

quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

Não votei nele. Felicitei-o pela sua eleição, primeiro, directamente num encontro casual no “Nhô Eugénio” e, mais tarde, através de um artigo de opinião desejando-lhe um bom mandato, uma vez que era do interesse do País que assim fosse.

Lembro-me que, a este respeito, fui chamado a atenção por um leitor muito atento e com sólida formação política que, embora tendo apreciado o meu artigo, não concordava comigo neste aspecto, porque – dizia ele – se tratava de alguém pouco cortês e pouco elegante, acentuadamente partidário para o cargo de Presidente, que havia tratado, numas legislativas, de “burros na ladera” e “macacos na rotcha” os apoiantes do MpD, aliás, os mesmos que, fazendo jus a estes epítetos, lhe tinham dado massivamente os seus votos para a presidência.

Contudo, dada a experiência que levava dos 15 anos de governação, não obstante algumas deselegâncias e indelicadezas de permeio, sempre pensei que poderia ter tirado ilações desta sua experiência e podia proporcionar-nos uma boa presidência.

Nada disto tem acontecido. Mostrou-se, primeiro deslumbrado com a sua eleição, de todo inesperada, tomando atitudes triunfalistas, ignorando e tornando descartáveis a quase totalidade dos elementos da sua estrutura de campanha não encontrando nela ninguém que pudesse ter alguma relevância na organização da administração da presidência, e na assessoria do Presidente.

Confesso que não sei, e pouco me interessam, os critérios que o Presidente tem para o recrutamento dos seus colaboradores. Nem me preocupo com a sua legalidade, embora não desprezível de todo, que pertence ao domínio exclusivo da Justiça e constitui apenas um dos itens – importante, é certo – de avaliação política que normalmente chega com relativo atraso. Interessa-me sim, a sua pertinência, a sua oportunidade, a sua legitimidade, o seu enquadramento moral e ético que no seu todo correspondem aos parâmetros necessários a uma apreciação e julgamento políticos pelos eleitores, contribuintes e população.

O que se espera de um presidente não é apenas o estrito cumprimento da Constituição e das leis da República, mas um comportamento cívico de excelência e uma postura assente na legitimidade (para além da já referida legalidade) dos seus actos, na moral e na ética que deverão constituir referência aos restantes cidadãos. E na sua firmeza de carácter que se deverá traduzir numa coerência de actuação consentânea com a defesa dos seus valores. Isto é, não pode o Presidente defender hoje o que condenou ontem ou vice-versa.

O que verifico, ao contrário do que esperava, é uma agressividade desmedida e, por vezes, despropositada contra o Governo, configurando a busca de um certo protagonismo que, na verdade não se justifica nem se ajusta à função de um presidente da república que não governa, não dirige o País. Apenas, e não é pouco, representa a Nação.

O presidente deve ter sempre presente que não é oposição e muito menos o seu chefe. E que a natureza do regime – parlamentarismo mitigado e não semipresidencialismo, como ele diz, que parece ter sido o projecto da Constituição do PAICV – é o Governo quem tem a incumbência constitucional de dirigir o País, e não responde perante ele nem lhe deve obediência.  

A actuação pública do Presidente não pode ser a de gerar conflitos ou de os acirrar, o que não obsta que no recato do seu Gabinete não os possa debater com o PM, adverti-lo ou mesmo, quiçá, admoestá-lo. Ter sempre presente que ele não é o dono da verdade e poderão existir dados que escapam ao seu conhecimento, à sua observação.  Usando uma bem conhecida metáfora, ele tem que ser o bombeiro e não o incendiário, extinguindo o fogo e não atiçá-lo.

Acontece que o que temos assistido e de forma reiterada, conduz-nos inexoravelmente à conclusão de que o nosso Presidente faz hoje quase tudo o que condenou ou ignorou enquanto primeiro-ministro. A lista das contradições não é desprezível. Contudo, as que apresentarei a seguir parecem-me suficientemente elucidativas.

Assim, o Presidente, para mostrar que está atento ou, se calhar, para ajudar o seu partido – a oposição – faz reiteradas intervenções públicas advertindo o Governo, por exemplo, da dívida pública que ele próprio fora precisamente o campeoníssimo ao receber no início do seu mandato como PM, uma dívida pública correspondente a “58 milhões de contos (83% do PIB), e quando saiu, 15 anos depois, a Dívida Pública era de 201 milhões de contos, ou 127% do PIB (fonte: FMI, World Economic Outlook, outubro 2021)” – José Tomaz Whanon Veiga in “Expresso das Ilhas”  nº 1049 de 5 de Janeiro de 2021 tendo merecido do mesmo articulista o seguinte comentário:actual Presidente da República agravou a Dívida Pública de forma desmedida e irresponsável não só em valores absolutos como, sobretudoem percentagem do PIB (o indicador mais utilizado para avaliar o grau de endividamento público). (O negrito é meu).

Não ficam por aqui as incoerências, as irrequietudes da pessoa do nosso Presidente no desempenho de funções públicas. Contudo, não posso deixar de me referir a uma que tem estado na crista da onda e que constitui obsessão de algumas importantes personagens: A Lingua cabo-verdiana.

Depois de ter estado 15 anos – 15 anos!!! – como primeiro-ministro apresentando apenas um, e só um, gesto sobre a Língua cabo-verdiana, por sinal pouco delicado e pouco elegante para além de pouco digno e algo embaraçoso por, por um lado, provocar a saída da sala de, pelo menos, uma delegação da CPLP, por outro, obrigar as restantes delegações, as que ficaram na sala, a escutar em francês ou inglês essa sua intervenção em crioulo, – feita à boa maneira de alguns poucos  (felizmente muito poucos) líderes africanos de triste memória, – nas Nações Unidas.

Aconteceu na Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 2011 no momento em que os “holofotes” da ONU se viraram para Dilma Rousself, a Presidente do Brasil que fez o globalizante discurso de abertura em português, o que fez que acontecesse, de alguma forma, o “momentum” da língua portuguesa. Procurava-se então a afirmação da CPLP – uma comunidade de países assente na língua comum – e a promoção da Língua portuguesa para oficialização como mais uma Língua das Nações Unidas.

 Contudo, ao ser eleito presidente, numa das suas primeiras intervenções, arvorou-se logo, em activista – presidente activista!!! – afirmando triunfantemente que “estará na linha da frente na defesa do crioulo”. É caso para se perguntar, com o devido respeito, onde esteve o presidente do PAICV, hoje presidente da República, desde 1999, altura em que o MpD de Carlos Veiga reconheceu e plasmou na Constituição, o crioulo como “Língua cabo-verdiana” e concedeu-lhe algumas prerrogativas à sua utilização? Que eu saiba, absolutamente NADA MAIS foi feito em prol da Língua cabo-verdiana até o presente. Nenhuma iniciativa legislativa ou negociações – do PAICV – com a oposição de então – 15 anos – foi feita para a fazer passar. O seu activismo, como outras atitudes e comportamentos, poderia configurar algum folclorismo e gerar alguma incompreensão se, por trás não estivesse o seu projecto político e as consequentes manobras manipulatórias.

Continuando, vamos tendo, um presidente publicamente intervencionista em matérias que lhe não dizem respeito, ignorando a Constituição, que jurou defender, e a natureza do regime – parlamentar – que disfarça com uma retórica táctica designando-a dolosamente “semi-presidencialismo”.

São várias as intervenções do PR, a “assumir-se” nitidamente como chefe da oposição, numa manobra muito pouco inteligente, como se tivesse sido eleito só com os votos da oposição ou se ela, a oposição, sozinha, pudesse reelegê-lo. O desgaste do governo, quando provocado de forma pouco inteligente, é indissociável de algum efeito boomerang para quem o provoca.

Ultimamente veio à ribalta a polémica da “primeira-dama”, um processo que corre os seus trâmites e que podia ter sido evitado ou que em parte não ocorreria se, quando PM, tivesse tido a humildade de olhar um pouco para além do imediato e sem uma pedra na mão escutar uma voz abalizada que apenas reivindicou, não para ela, mas para a instituição, um estatuto regulador adequado. Através de uma espécie de “oração de sapiência” concluiu que ela estava a imiscuir nos problemas de governação (há registo) sem que para tal tivesse sido eleita. E quando o MpD recupera o assunto e o leva a Assembleia, dá, como presidente do PAICV, instruções – só assim se compreende – para “chutar para o lado” o assunto, alegando a sua ‘não prioridade’. Mais uma vez, foi publicamente “acareado” pela RTC que transmitiu as suas sábias e cordatas palavras quando repudiava o que agora reivindica. Ao alegar, à laia de justificação, que enviou para o Governo uma proposta da Presidência, sabia perfeitamente que o Governo não tem poderes para julgar as suas propostas e não disse em público em quanto onerava o orçamento da presidência. Outrossim, tem um exército de assessores ao seu serviço que lhe podiam dar pareceres, e um partido à disposição ao qual podia pedir iniciativa legislativa a esse propósito.

Não entrarei em pormenores, muito menos nos de carácter jurídico-legal, porque não só não tenho competência para o fazer, mas sobretudo porque – já atrás o referi – penso que é do domínio exclusivo dos Tribunais. Mas, como cidadão, compete-me exigir responsabilidades políticas. O processo político ainda “não transitou em julgado”. Mantém-se vivo e não deve morrer solteiro. Tem que haver assumpção de responsabilidades bem como as devidas consequências.

Em democracia, sobre os mais altos magistrados da Nação não pode pairar nenhuma nódoa nem nenhuma sombra de suspeição de ilegalidade, sobretudo quando se trata de utilização de dinheiros públicos sem que ele, o magistrado, dali não tire as devidas consequências políticas. E sobre isto nada, absolutamente nada sabemos, se não um espúrio e absurdo pedido de desculpa por uma demissão que se impunha, transformando a demitida numa espécie de bode expiatório de todo o processo.

Parece-me, posso estar enganado, que se torna evidente que só fez o que fez porque pensava estar ainda no Partido único, acima da Lei e, portanto, resolver-se-ia a posteriori se viesse a ser necessário.

E enquanto a sua imagem se degrada em contínuo, eis que inventa uma fuga para a frente, uma ideia aparentemente despropositada, utilizando, o nome e a imagem do mais acarinhado e eleito (74% dos votos) presidente que Cabo Verde já teve – Mascarenhas Monteiro – com uma homenagem alusiva ao seu 80º aniversário natalício, que levanta sérias dúvidas se o próprio Mascarenhas Monteiro se estivesse vivo a aceitaria, tal era a sua dimensão de Homem de Estado, o seu escrúpulo na utilização da coisa pública e o seu melindre, o seu excessivo cuidado na imbricação entre o público e o privado.

Uma homenagem em que uma grande parte dos convidados eram precisamente aqueles – dos quais não pode o próprio anfitrião excluir-se – que tentaram impedir por todos os meios que Mascarenhas Monteiro fosse Presidente, e que nas campanhas para as eleições presidenciais o maltrataram e o enxovalharam com actos e palavras muito pouco dignos e, por vezes, vergonhosos e soezes, cujos termos não irei aqui explicitar. Mascarenhas Monteiro merecia muito mais e melhor – não está em causa… Aliás, não homenagens restritas de Palácio, mas do povo que sempre o estimou e acarinhou.

Com efeito, a República tem as suas próprias datas – fixas umas, (13 de Janeiro, 20 de Janeiro, 5 de Julho, e, eventualmente, mais uma ou outra que a minha memória não retém); tradicionais (os centenários); e imprevistas, fora de qualquer calendário) – para homenagear publicamente os seus heróis e os seus filhos dilectos. Nunca uma data pessoal – Aniversário dos 80 anos! – fora do quadro que acabei de referir! Esta é pertença da família, dos amigos ou de instituições não estatais que lhe estão afectas.

Aliás, Aristides Pereira e Amílcar Cabral completaram os seus 80 anos em 2003 e 2004, respectivamente; eram então Presidente da República Cmdt. Pedro Pires, Presidente da Assembleia Nacional Dr. Aristides Lima e Primeiro-Ministro o actual Presidente da República – as três mais altas figuras do Estado e do PAIGC/CV – e não me lembro da mais pequena celebração a essas ocorrências, não obstante o culto de personalidade ser uma instituição do PAIGC/CV, o que clarifica a natureza e a inoportunidade da homenagem ora feita.

Ou será que, de repente, Mascarenhas Monteiro passou a ser, para o actual Presidente da República, mais importante, sublinho, mais importante, do que essas duas altíssimas personalidades da “Luta Armada” na Guiné – suporte da alegada e sempre brandida “legitimidade histórica” do PAIGC/CV em Cabo Verde?

Não, nada disto. Trata-se de um projecto político de contornos pouco ortodoxos que passa por chamar a “si” a figura e a imagem de Mascarenhas Monteiro e que começara metódica e meticulosamente a ser preparado logo a seguir ao seu falecimento. Uma homenagem em que o principal objectivo foi querer passar a imagem de cumplicidade e de afinidades políticas com o Presidente mais votado da democracia cabo-verdiana confundindo a sua delicadeza, a sua generosidade e a sua permanente disponibilidade por Cabo Verde e para os cabo-verdianos, com a intimidade política.

Mascarenhas Monteiro foi eleito na sequência de duas maiorias qualificadas do MpD – seu suporte eleitoral – enquanto os dirigentes do PAICV – todos – engendravam esquemas e faziam circular orientações (palavras de ordem) para o impedir.

São já vários os actos deste Presidente que demonstram à saciedade que a sua eleição, em última instância, poderá representar a ausência de uma verdadeira elite no País, isto é, a inexistência de um viveiro, de uma reserva, de recrutamento de homens/mulheres com estatura política e, sobretudo, com dimensão intelectual, cívica e ética para as mais altas funções do Estado.

O mandato está ao meio. Ainda vai a tempo de arrepiar caminho e mostrar que a crise com que o País se debate de ausência efectiva de uma verdadeira elite político/cultural com elevada dimensão moral e ética não passa por ele. Ou então, admitir-se que o povo que é soberano e decide, também se engana, e escolhe mal.

A.            Ferreira

 

 

Quatro escritores russos, em tempo de Páscoa

domingo, 31 de março de 2024

 Por se tratar de um texto muito, muito interessante e que com oportunidade (Páscoa) explica-nos o seu autor como quatro grandes escritores russos dos séculos XIX e XX, trataram a passagem de Cristo pela Terra e de como entenderam o mistério da paixão, da morte e da ressurreição do Homem, em pleno comunismo. Com a devida vénia ao autor e ao Jornal Observador, tomámos a liberdade de aqui o publicar.


Por: Jaime Nogueira Pinto

Mais que os filósofos e os teólogos, os grandes escritores, os grandes ficcionistas russos interpretaram e contaram o mistério de Cristo e da Paixão de Cristo.

30 mar. 2024.

Em A Ideia Russa, o historiador Nicolai Berdyaev defende que as figuras do pensamento religioso russo e da busca religiosa no século XIX não foram filósofos, mas romancistas, como Dostoievski e Leo Tolstoi.

Para o autor de As raízes e o sentido do comunismo russo e de outras obras fundamentais para o entendimento da Rússia e do comunismo, a ficção de Dostoievski é comparável, em novidade e alcance, à obra de Nietzsche ou de Kierkegaard, já que é, fundamentalmente, ao escritor de Crime e Castigo que se deve toda uma “nova antropologia”, que encara o homem como “uma criatura contraditória, trágica, altamente infeliz; e não apenas sofredora, mas amante do sofrimento”.

Condenado pelo Grande Inquisidor de Dostoievski

Mas se o sofrimento e a redenção pelo sofrimento estão presentes em toda a obra de Dostoievski, estão-no especialmente no “Grande Inquisidor”, uma parábola contada por Ivan a Aliócha nos Irmãos Karamazov. Na parábola, Cristo, o Cristo evangélico, reaparece em Sevilha, no século XVI; anda nas ruas, o povo reconhece-o, faz milagres, cura doentes, ressuscita uma menina. Entretanto – estamos na Espanha da época áurea da Inquisição – chega o Grande Inquisidor, manda prender Cristo e interroga-o. O Grande Inquisidor encara a liberdade do Homem, a que lhe permite pecar e perder-se, como um risco desnecessário, e considera Cristo um perigo para a humanidade, porque entrega a Liberdade aos homens, incapazes de a usarem com discernimento. E assim o Inquisidor volta a condenar Cristo. Para ele só pelos caminhos do Mal, do Demónio, se pode chegar à unidade dos homens: é preciso dar-lhes pão, satisfazer-lhes as necessidades básicas e, porque é “fraca, pecaminosa e ignóbil” a raça a que pertencem, controlar-lhes a consciência e a livre expressão. Jesus cala-se perante o discurso do Inquisidor. A história é ambígua; o Inquisidor parece um pessimista antropológico, que enuncia as grandes forças que movem a Terra e os homens – que não são a Liberdade, o livre arbítrio, a Verdade, a Justiça, o Amor, mas o milagre, o mistério e a autoridade. Cristo não lhe responde, permanece calado durante todo o interrogatório.

Tosltoi: “Istina”, e não “Pravda”

Leo Tolstoi não vai tão fundo como Dostoievski na ética cristã, mas é, para Nobokov, o maior dos escritores russos, um “pregador” laico que influenciou com as suas histórias largos círculos da Intelligentsia e da sociedade. Tolstoi lutava pelo aperfeiçoamento da escrita e da ficção, mas era também um moralista com uma ética de Sermão da Montanha, incutindo o complexo de culpa nas classes altas. Como insistia Nabokov, o autor de Guerra e Paz mantinha, na sua alma e na sua pena, um diálogo ou um combate entre a ética e a estética, entre o pregador e o artista, sempre à procura da Verdade absoluta, da Istina, que não significa o mesmo que Pravda, que é apenas a verdade relativa.

 

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Istina é, para Nabokov, a verdade essencial, a verdade filosófica, a Verdade com maiúscula. Pravda é a verdade correcta, a que não é mentira, uma verdade de acordo com as regras, com o direito. Foi também entre 1918 e 1991 o nome do órgão oficial do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética. Verdade mais que relativa, diríamos.

Bulgakov: O Mal absoluto visita o mal relativo

Esta procura da Verdade continuou a marcar os escritores russos que, no século XX, presenciaram a passagem da autocracia czarista (limitada a partir de 1905) ao socialismo totalitário, depois da revolução bolchevique de 1917. Um deles – e para mim um dos mais extraordinários, pela obra e pela vida – é Bulgakov.

Nascido em Kiev em 1891, Mikhail Bulgakov, licenciou-se em medicina na Escola Médica de Kiev, em 1916, e voluntariou-se como médico militar no Exército Branco, durante a guerra civil. Depois da guerra, em vez de emigrar como muitos dos vencidos, foi para Moscovo, onde iniciou uma carreira literária, publicando várias obras.

Mas é claro que, dado o seu passado e a sua crítica implícita ao regime, foi denunciado e marginalizado pela Associação Russa dos Escritores Proletários, que tutelava, censurava e congelava escritos e escritores. Na desgraça teve alguma sorte, não acabando numa cela da Lubianka ou num campo de trabalhos forçados. A sorte foi que, o seu livro A Guarda Branca, teve uma versão teatral como Os Dias dos Turbin, exibida no Teatro de Arte de Moscovo; Estaline gostou da peça e foi vê-la quinze vezes. E quando Bulgakov, sem trabalho, com os livros sem publicação, quis, em 1930, emigrar, o Czar Vermelho telefonou-lhe e convenceu-o a ficar na Rússia, dizendo-lhe que longe da pátria os escritores russos secavam, e arranjando-lhe um lugar modesto como consultor do Teatro de Arte, de onde Bulgakov tinha sido afastado por Stanislavsky. Mas a perseguição burocrática continuou e Bulgakov, que em 1932 se casou pela terceira vez, com Elena Shilovskaya, não viu mais as suas obras publicadas. Nestas obras não publicadas estava O Mestre e Margarida, que começara a escrever em 1928.

É um romance iniciático, fascinante, às vezes caótico, mas que além da história da paixão do Mestre por Margarida, narra a visita a Moscovo, à Moscovo comunista do pós-leninismo dos anos vinte, de Woland, uma personagem que encarna o Mal, talvez o próprio Demónio.

Aqui não posso deixar de me lembrar do professor Jorge Borges de Macedo, numa conversa sobre Bulgakov e O Mestre e Margarida: “O Demónio, o Mal absoluto, visita Moscovo comunista, o mal relativo. E os do mal relativo, os comunistas, não acreditam no Mal absoluto… Woland mata alguns de forma mágica, transcendente e comprometida, logo impossível para estes pequenos adeptos do materialismo científico”, dizia ele.

Assim, no início do romance, Mikhail Berlioz, um importante editor do regime, afirma categoricamente a verdade comunista: “o principal não é se Jesus era bom ou mau, mas que esse mesmo Jesus, como pessoa, nunca existiu no mundo e todas as histórias sobre ele eram mera ficção […] os cristãos criaram um Jesus, que, de facto, nunca existiu”.

Aí aparece o mágico, o professor Woland, o próprio Satã, que vai dizendo, sussurrando, também categoricamente ao editor comunista:

“Jesus existiu… não são precisos muitos pontos de vista. Ele existiu, é tudo…”

Jesus Cristo entra no romance, numa narrativa imaginada do seu julgamento por Pôncio Pilatos, a lembrar a visão do Jesus silencioso do Grande Inquisidor de Dostoievski. Mas o Jesus de Bulgakov fala, responde. É um homem simples, bom, mas ingénuo. Um optimista antropológico que acha que todos os homens são bons. Pilatos começa por acusá-lo de querer instigar o povo a destruir o Templo, mas Jesus responde: “Nunca, Hegemon…” E diz a Pilatos que o que disse era que o templo da velha fé cairia e que um novo Templo da Verdade seria construído. O Jesus de O Mestre e Margarida é humilde, simples, aparentemente longe do Filho de Deus, ou do que os homens imaginavam que podia ser o Filho de Deus. Bulgakov afasta-se em muitos pormenores da narrativa evangélica, embora haja um seguidor de Jesus, Mateus Levi, que o acompanha e toma notas e que, num diálogo com Woland, parece confirmar que ele é Ele ou que ele é também Deus. Bulgakov deixa de parte muita da narrativa evangélica para guardar o essencial. No fim, por uma série de convergências, típicas da intencionalidade caótica e consequente de Bulgakov, pode concluir-se que há um Deus; que Jesus viveu e morreu e que em sentido espiritual ainda vive e está activo no mundo; que não há pessoas essencialmente más e que todas as pessoas são boas; que os homens chegarão, eventualmente, ao Reino da Verdade e da Justiça, onde não haverá lugar para a autoridade opressora; e que apesar dos erros e pecados na vida, é sempre possível esperar a Redenção.

E neste romance exótico e admirável, a mensagem mais poderosa dada a partir de um o retrato informal e original de Cristo, é o Jesus da Paixão e da Redenção, um Jesus que acaba por perdoar e receber no seu Reino o Pôncio Pilatos que o condenou por medo.

O livro da vida de Pasternak

O último destes quatro escritores é Boris Pasternak, prémio Nobel da Literatura em 1958. Pasternak nasceu em Moscovo em 1890 numa família abastada de judeus russos, que se reclamavam descendentes do judeu português Isaac Abarbanel. Quando da revolução bolchevique na Rússia, melhor, quando da revolução democrática contra a monarquia, causada pelos desastres da Guerra, Pasternak escreveu um poema, “A revolução russa”, em que associava a revolução de Fevereiro de 1917 a um triunfo dos ideais cristãos de igualdade e fraternidade: “E o socialismo de Cristo soprou livre e fundo”.

Esta associação do cristianismo e do cristianismo dos primeiros cristãos ao marxismo, fazendo de Cristo um herói do Proletariado, tinha os seus pergaminhos em alguns autores comunistas, como Rosa Luxemburgo e Karl Kautsky. Embora o materialismo dialéctico faça parte da ortodoxia comunista, embora Marx seja claro quando nega a existência de um “mundo invisível”, não apreensível pelos cinco sentidos, e Lenine insista na ilusão criada pela religião, cúmplice dos poderes políticos estabelecidos, embora a realização do “reino fraterno e igualitário do socialismo” na terra se fizesse pela violência e pelo terror, havia uma aproximação evidente entre o marxismo e cristianismo, até porque a fraternidade, mesmo desvirtuada, pressupõe um Pai comum e a igualdade, mesmo imposta, é dificilmente justificável sem a revelação cristã. E as interpretações de alguns textos evangélicos, como o Sermão da Montanha, podiam der origem a alguma ambiguidade entre a fraternidade igualitária do cristianismo e a fraternidade da utopia marxista. Anatoli Lunatcharski, que em Outubro de 1917 foi nomeado pelo governo bolchevique como responsável pelo Comissariado do Povo para a Educação, chamou à revolução bolchevique a “nova páscoa revolucionária”. Talvez porque a maioria dos russos, sobretudo das classes populares, era religiosa, fiel à Igreja Ortodoxa.

De qualquer forma, o poema de Pasternak, que começa, na primeira parte, com “o sopro livre e fundo do socialismo de Cristo” na Revolução de Fevereiro, contrai-se abrupta e violentamente em Outubro, na segunda parte, com a trágica e mortífera chegada dos bolcheviques ao poder.

A Pasternak aconteceu o que aconteceu a Bulgakov. Nos anos 30, tornou-se suspeito aos olhos do regime e foi marginalizado; mas Estaline que, por alguma razão, gostava dos seus poemas, decidiu poupá-lo, protegendo-o dos seus esbirros.

Quando, na destalinização, Pasternak concluiu o Doutor Jivago, em 1956, o romance, por sair dos cânones soviéticos, não foi publicado na URSS e acabou por ser publicado em Itália, depois de uma intrincada odisseia. Ao tempo dizia-se que a CIA publicara simultaneamente uma edição pirata em russo.

O livro, em parte autobiográfico, está impregnado pelo cristianismo da velha Rússia e de todas as idades dos Homens, sobrevivente e resistente na ditadura do materialismo científico.

A última parte do Doutor Jivago são os poemas do protagonista, Yuri Jivago. E o último destes poemas, o final, “quando é chegado o livro da vida à página mais sagrada que contém”, chama-se, significativamente, “O Jardim de Getsémani”, ou, na tradução de David Mourão Ferreira, “O Horto de Getsémani”: a agonia de Cristo que precede a prisão e o calvário.

Ao contrário de Bulgakov, que usa criativamente os Evangelhos, Pasternak é mais ortodoxo, sobretudo aqui, no fim, na morte – na de Yuri Jivago, na sua, na nossa, na morte de Cristo. E é o próprio Cristo que fala, em fim de livro, na hora de maior sofrimento, na hora da Sua entrega ou da Sua “descida ao túmulo em tormento voluntário”, para se erguer ao terceiro dia e nos resgatar.

Santa Páscoa da Ressurreição!

In: Observador, 30/03/2024

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 



 

 

Teorema da boa governação

quinta-feira, 28 de março de 2024

 


Por Adriano Miranda Lima[i]

Entrevistado no programa “Tudo é Economia” da RTP3, no passado dia 20 de Março, o Professor Jorge Braga de Macedo afirmou que Portugal só consegue crescer e progredir com “boa governação”. O senhor de La Palice não diria de modo diferente. Como se trata de um ilustre académico e antigo ministro das Finanças, a minha expectativa foi ouvir-lhe explicar e demonstrar com que linhas seguras se rege uma “boa governação”. Não aconteceu nada disso. A expectativa era legítima porque os anos passam e não descobrimos a bala de prata para a “boa governação”. Mas logo depreendi que o Professor Braga de Macedo, estaria, subliminarmente, e tão-somente, a apontar os governos de Cavaco Silva, de que ele fez parte, como o paradigma da boa governação.

Ora, o Professor Braga de Macedo foi, efectivamente, ministro das Finanças no XII Governo Constitucional, de Cavaco Silva, no período de 1991 a 1993, tendo deixado o cargo ainda antes do meio da legislatura depois de uma inspecção do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFADAP) detectar infracções na obtenção de subsídios da União Europeia a favor de familiares seus. Não por acaso, por alturas do ano de 1995, tive conhecimento, através do director do Centro de Emprego e Formação Profissional de Tomar, de que uma das medidas imediatas do XIII Governo Constitucional, de António Guterres, que tinha acabado de suceder a Cavaco Silva, foi ordenar um rigoroso escrutínio à atribuição dos Fundos Estruturais, dado o autêntico regabofe que rodeou o respectivo processo nos governos precedentes.

Juntando as pontas para a extrapolação que vai seguir-se, revisitei um youtube de 2009 em que a procuradora Maria José Morgado, num programa televisivo, dava conta de um número considerável de processos-crime sobre fraudes na atribuição dos Fundos Estruturais ocorridas no passado e que, incompreensivelmente, acabaram arquivados por prescrição em mais de 90% dos casos. Porém, já não escapou ao crivo da justiça o caso do Banco Português de Negócios, instituição bancária que nasceu graças às facilidades e vantagens permitidas a amigos e discípulos de Cavaco Silva e que perpetrou a maior das fraudes do século XXI. Não é crível que estes casos possam ser desvalorizados na avaliação objectiva de uma governação.

Mas o conceito de boa governação dificilmente reunirá consenso em contextos plurais. Diverge de Braga Macedo o economista João Rodrigues, que, no seu livro “O neoliberalismo não é um slogan”, desmonta o mito do bom governante reformista e explica que o projeto político de Cavaco Silva, por aquilo que estruturalmente o definiu, marcaria o início do ciclo de fraco crescimento da nossa economia e a sua divergência futura com as do centro da Europa. Entre outras opções estratégicas criticáveis, releva-se o exagerado investimento público em auto-estradas, em detrimento das ferrovias, o que só por si abriria a porta ao agravamento dos nossos desequilíbrios externos. De resto, basta comparar Portugal com a Irlanda e a Finlândia, países que tinham condições semelhantes quando aderiram à União Europeia. Enquanto Portugal investiu maciçamente no betão, os seus parceiros apostaram na formação qualitativa da força de trabalho, na investigação científica, nas mais modernas tecnologias e no incentivo ao investimento estrangeiro. Podem ter hoje uma rede viária bem inferior à nossa, mas estão entre os 10 países mais competitivos do mundo. Alguém afirmou que, na melhor das hipóteses, Cavaco Silva foi um keynesiano de conveniência, um título que pode ser atribuído a Viktor Orbán, a Donald Tusk e a dezenas de outros líderes que governaram em períodos de forte absorção de fundos comunitários.

Voltando à intervenção do Professor Braga de Macedo no citado programa, surpreendeu-me que ele ao menos não tivesse reconhecido os bons resultados macro-económicos da última governação. Além de considerar mau o governo cessante, fez questão de observar que contas certas nada significam porque “todas as contas têm de bater certas”. Tomei este reparo como um subterfúgio retórico para evitar comungar com os analistas nacionais e estrangeiros que são unânimes em atestar que o governo de António Costa deixou o seguinte legado: condições económicas e financeiras favoráveis, com a economia a crescer, o emprego e salários a subir, uma folga orçamental substancial, receitas públicas a aumentar, peso da dívida pública a baixar, inflação controlada. Mas nem todos pensam assim, sobretudo jornalistas e políticos ideologicamente adversos. Mesmo os que sabem que o próximo executivo vai herdar condições sem precedentes neste século para cumprir o seu mandato, não hesitam em avaliar negativamente a governação que as propiciou. Só um confronto dialéctico poderia ajudar a desmontar esta flagrante contradição, embora se aceite que o governo em causa não tenha sido lesto no capítulo das reformas públicas, mesmo que nem sequer tenha chegado ao meio do ciclo legislativo. No fundo, é mais uma evidência de que o conceito de governação é, pela sua natureza, eivado de um subjectivismo renitente. Um subjectivismo que decorre essencialmente do enquadramento político-ideológico, pouco atreito a dirimir antagonismos, mas que tem também a ver com o relativismo de valores como ética, rigor, verdade, responsabilidade, coerência e compromisso, que estão nos antípodas da demagogia, da manipulação, da mentira e da corrupção.

Assim se vê que não é fácil eleger uma definição de boa governação que agrade a todos os sectores de opinião, uma vez que lhe está subjacente uma opção claramente política e depende de realidades endógenas como a cultura, a idiossincrasia e a história dos povos. Contudo, é indiscutível que um bom governo muito beneficia com a capacidade de liderança dos seus membros, com a sua experiência política e profissional e os seus atributos técnicos. Não deixa de pesar igualmente o grau de consciência cívica e de coesão social das populações, além de uma correcta articulação institucional entre os órgãos de soberania. De não menor importância será uma comunicação social que saiba interpretar convenientemente o seu papel no Estado de direito democrático.

Em suma, a eficácia da acção governativa dificilmente poderá consagrar-se como um fenómeno distinto das diversas pulsões do colectivo nacional. A não ser nos estados autocráticos.

Nota:



[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO 90.