Crioulês? Ou a dependência do crioulo actual à Língua matriz?

sábado, 2 de outubro de 2010

Folheando um caderno de apontamentos encontrei, num puro acaso, as linhas que se seguem resultantes de uma intervenção escutada numa reunião institucional, já há alguns meses – a quando da virulência do dengue na Praia – mas cujo conteúdo pareceu-me interessante para ilustrar o título acima enunciado. Não resisto a transcrevê-la:
«Isso ta bem obriga a que haja uma mudança na política di saúde pública. Para além disso, Praia stá em conexão muito forte cu resto do país»
Se bem repararmos, apenas três partículas (grafemas) deste pequeno excerto ficam de fora do português: di, stá, e cu. (É bom não esquecer que estas mesmas partículas são vestígios do português quinhentista, base da formação do crioulo)
Daí a minha reiteração de que a Língua cabo-verdiana ou o crioulo de Cabo Verde se encontra cada vez mais interdependente da Língua portuguesa hodierna. E isso é bem visível na oralidade dos falantes escolarizados e na dos técnicos de intervenção pública/mediática, que ao veicularem uma mensagem de cariz médico, educativo, ou outra de carácter técnico-científico se socorram do vocabulário e da construção frásica bem próximos da língua portuguesa. É também o sociolecto ouvido em certos ambientes escolarizados.
No mesmo registo, aconteceu-me numa destas manhãs, ia eu no carro às compras e de rádio ligado, “apanho” ainda bocados de uma entrevista na RNCV. O entrevistado questionado se alguém que fora nomeado para o cargo – referido pelo Jornalista – tinha o perfil adequado, responde nos termos que a seguir transcrevo:
«Na nha opinião ele tem o perfil ideal. Ele é um perfeito conhecedor da área qui el stá gere; tanto mais, que se trata di um pessoa muito capaz e cu provas dadas.» (sic) (o sublinhado é meu).
Sem muitos comentários, e creio que sem necessidade também de tradução, apenas para referir e reforçar de que é minha convicção de que a oralidade culta – chamemo-la assim – do crioulo actual, aproximou-se muito fortemente da língua portuguesa. É um dado que diariamente – ou quase isso – venho verificando aqui nas ilhas. E isso passa-se sobretudo com o segmento do crioulo que os falantes utilizam nos media nacionais.
Embora se trate de um fenómeno linguístico de há muito previsto, lembremo-nos de que Baltazar Lopes da Silva numa das suas intervenções na célebre “Mesa Redonda sobre o Homem cabo-verdiano” (Mindelo, 1956) afirmava que o crioulo, para além da sua inquestionável e crescente vitalidade, caminhava também e cada vez mais para uma espécie de “aristocratização” que ele ilustrava da seguinte forma: «…É de um interesse extremo observar como e em que compartimentos se processa esta aristocratização. Primeiramente na fonética. Não admira. Maurice Grammont notou esta tendência, ou esta maior permeabilidade da fonética a influências exteriores mais prestigiosas. Suponho que a tendência assenta na constante que leva o homem, quando desejoso, mas impossibilitado de assimilar totalmente um padrão diferente do seu, a copiar-lhe, ao menos, a forma externa. Em segundo lugar, no léxico. O crioulo dispõe hoje de um tesouro lexical de origem portuguesa que me não parece inferior, ao menos em grau sensível, ao padrão comum do vocabulário metropolitano. A aristocratização vocabular enverga ainda uma vestimenta de que o português e as outras línguas românicas fizeram largo uso: a divergência. É assim que, quando o crioulo possui no seu léxico tradicional determinado vocábulo, a influência do português exerce-se, não no sentido de essa forma desaparecer, mas no dela se aproximar o mais possível da forma correspondente portuguesa…»
Não sei se o eminente filólogo já não teria em mente a possível “décaláge” que a mais recente proposta ortográfica para a escrita do crioulo iria criar entre a sua expressão oral e a sua expressão escrita, (?) pois que Baltazar Lopes foi avisando de que não haveria necessidade de se “inventar” qualquer conjunto alfabético para a normalização escrita, uma vez que a já antiga língua (o crioulo) que ele caracterizou como sendo de origem latina/portuguesa já o possuía de séculos com uma história etimológica própria.
Num aparte gracioso, como disse um familiar meu com muito espírito: “- Convenhamos de que não havia de ser com o “K” empurrando o “C” borda fora que resolveríamos o problema!” –
Ora bem, tudo isto se conjuga com a tese que comungo de que há uma cumplicidade e uma interdependência cada vez mais acentuadas e intensivas entre o crioulo e o português de Cabo Verde, nos dias que correm. Se me perguntarem, se isso é bom (?) se isso é mau (?) talvez respondesse que a questão arregimenta em si, características positivas e características negativas. Mas que algo – uma nova reconfiguração da língua? - se desenha de forma indelével nesse “aportuguesamento” do crioulo, como também, já antes se inscrevera no “acrioulamento” do português de / e em Cabo Verde, disso não tenho dúvidas!
Paralelamente, a escolaridade em língua portuguesa deve estar muito atenta a estes fenómenos linguísticos de entrosamento, pois que não me parecem que já sejam apenas “empréstimos” de uma língua para a outra, respectivamente em posição de ascendente e de descendente.
E depois, caros leitores, a língua cabo-verdiana, na parte que tem de “rebelde, transformadora, criadora e inovadora” – sobretudo na sua oralidade – porque ainda em permanente estado de “magma”, permitam-me esta comparação, acaba ela própria, por vontade dos seus falantes e com a ajuda das ferramentas adequadas por encontrar o seu caminho.
Se pende, ou não, para um reajustamento (reaproximação) com a matriz que lhe deu origem é algo que o tempo, os interesses do falante e as vicissitudes complexas que o mundo global de hoje comporta, dirão.
Da minha parte, limito-me a apontar e…a tirar apontamentos também!