O improviso é uma arte?! Um dom?!

domingo, 21 de setembro de 2014
Se o título interrogativo deste escrito estiver certo, o saber improvisar quando se fala em público e para o público, para além de ser uma arte, poderá ser também um dom, reservado a alguns. Infelizmente, é mesmo assim: reservado a alguns. Acrescente-se que a arte e o dom não se excluem mutuamente. Antes se associam, uma vez que a arte, não obstante exigir trabalho, traz sempre consigo uma forte componente vocacional.

O “improviso” é, por definição, «tudo aquilo que é dito ou feito sem preparação, sem ensaio prévio». Por isso, o verdadeiro improviso é aquele que surge em circunstâncias inesperadas, repentinas, que obriga o actor, o protagonista, o comunicador, a fazer intervenções impreparadas e, normalmente, sem grandes profundidades, a menos que sejam situações recorrentes em que só o contexto é circunstancial.

Daí que, em cerimónias formais e institucionais, previamente datadas, em que os oradores são conhecidos, não se espera que nenhum deles faça um verdadeiro improviso sob pena de mostrar um menor respeito pelo público-alvo. Sabemos contudo, que muitos políticos experientes, inteligentes e astutos recorrem ao “improviso” previamente ensaiado com vista a levar o público a pensar que se trata de alguém eloquente cujas palavras são sinceras porque saídas de forma espontânea e directamente do coração, da alma, sem qualquer reserva mental. Aqui o “improviso” ganha os contornos de um “marketing” político.

Sabe-se, por exemplo, e ele não é seguramente, nem de perto nem de longe, o único, que Charles De Gaulle (antigo PR da França) levava horas e horas sem conta defronte a um espelho a preparar os seus “improvisos” em que todos os seus gestos e palavras, designadamente o tom, eram meticulosamente estudados.

Por isso, atenção! O “improviso” não é para todos os oradores. Requer informação, conhecimento e capacidade (dom) de comunicação quando é autêntico, e muita memória e muita arte de representação quando é teatralizado. Em qualquer dos casos deve ter, sobretudo, substância, ir ao encontro do fundamental.

Mandam a prudência, o senso-comum e a consideração que merecem as pessoas que se previna sempre, com o clássico “papelinho” bem escrito ou, no mínimo, com os tópicos, para não cometer “gaffes” e honrar e prezar devidamente a audição (a capacidade de escuta) de cada um.

A palavra escrita disse (não era preciso ser ele a dizê-lo…) um nobel da literatura «tem possibilidades de calar mais fundo na análise dos problemas, de chegar mais longe na descrição da realidade social, política e moral e, numa palavra, de dizer a verdade».

Afinal, todo este arrazoado, vem a propósito de ouvir com alguma frequência, altos responsáveis políticos e figuras públicas destas ilhas falarem − atabalhoadamente (perdoem-me a franqueza) e muitas vezes com pouco nexo − de improviso para os seus concidadãos e em presença de estrangeiros, o que constitui não só uma temeridade, como também, por vezes, deixa subentender, por um lado, a impressão de uma inadmissível negligência, por outro, desconsideração e falta de respeito por aquele que o escuta.

Mas o que verdadeiramente preocupa é que parece estar a configurar-se algum modismo. E se a moda pega!...

A este propósito, recordamos o constrangimento, ou mesmo vergonha, usando as suas palavras, por que passou alguém amigo, ao ter de escutar, perante um público da mais alta literacia, porque de professores e de reitores universitários (alguns convidados estrangeiros) se tratavam, na apresentação, pública, há já alguns anitos, da então novel Universidade de Cabo Verde, em que um altíssimo dirigente do país, resolveu falar de improviso no discurso que encerrava a cerimónia desse acto público. Sem dom de orador, sem papel e sem preparação prévia, o discurso foi um autêntico fiasco − atabalhoado, desorganizado e sem substância. Enfim, terá sido mesmo constrangedor, ainda segundo a nossa fonte, para quem o escutou, deixando a todos, ou quase todos, os seus concidadãos presentes no acto, envergonhados pela má prestação.

Um político com a experiência que então esse tinha, devia ter tido mais cuidado, ser mais avisado, por maior que fosse a sua presunção. Evitaria dessa forma o que acabou por ser uma vexatória exposição.

Na realidade, o que conta é o conteúdo, a organização mental, a comunicação. O modo como é veiculado – de improviso ou escrito − por si só, não valoriza mas pode diminuir e comprometer.

Nestes casos convém ter sempre presente a velha máxima: “Mais vale prevenir do que remediar!” E não esquecer que «o seguro morreu de velho!...»

Declarações de Amor - Entre o Português e o Crioulo

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Eis uma história de amor acontecido num baile. Vamos directamente ao diálogo entre dois apaixonados que dançam num baile na cidade da Praia, no século XIX:
“ (…)
-Sente-se muito fatigada, minha senhora? – Perguntou ele um pouco perturbado.
- Nhor não – respondeu ela suspirando.
- Mas… V. Ex.ª parece estar um pouco incomodada. Se não fosse por me julgar importuno, pedir-lhe-ia um favor.
- É cusé?
- De me dizer o que sente.
- É câ nada, é só coraçon qui estan fadigado…
- Quer que lhe dê um remédio magnífico para esta fadiga que diz ter no coração?
- Paquê? A nhó é ca dotor.
- Bem sei que não sou médico, mas pode ser que os meus conselhos tenham o privilégio de curar a V. Ex.ª do mal de que talvez esteja sofrendo…
- Bé! Nhó ca capaz…
Porque é que não sou capaz?
-Pamode nada – Disse ela sorrindo.
- V. Ex.ª é caprichosa… continuou ele torcendo o bigode – Sei que sofre e sem razão por que sabe que a amo.
- Ami?
- Sim, a si minha senhora.
- Ami mé tambe gosta di nhô.
- Também gosta de mim? Não creio!
- Bi! Câ nhu fla si…si ca sim, m’tâ graba di nhó!
- Então jure.
- Pa alma di nha pai quis ta dibaxo de sete mon de tera…
- Oh! Sou feliz, dancemos minha senhora.

Neste comenos rompe a orquestra com uma polka, os dois jovens namorados desapareceram no meio do turbilhão. (…)” Fim de transcrição.

Maria Adelaide das Neves
Almanaque de Lembranças (1854-1932)

O leitor reparou certamente que este texto antigo conseguiu partilhar o afecto,a paixão, nas duas falas do cabo-verdiano: o português e o crioulo sem qualquer hesitação. Um diálogo de apaixonados. Um momento amoroso muito bem captado. Tanto uma língua, com a outra, a portuguesa e a cabo-verdiana foram muito eficazes para a finalidade pretendida entre os enamorados.
O conto de Adelaide Maria das Neves de 1889, (do qual tomei a liberdade de modernizar ligeiramente a escrita para facilitar a leitura) sugeriu-me este escrito, pois tenho escutado ditos “non sense,” como por exemplo, dizer-se que só o crioulo (com exclusividade) é que é língua que transmite afectos e sentimentos em Cabo Verde. Falso.
Cada um que fale por si e que seja menos absolutista. É o mínimo que se pede a gente com responsabilidade, naquilo que diz em público.
É que alguns tiram isso da “boca para fora” (relevem-me este prosaísmo) assumindo um ar de verdade absoluta que se tornam quase dogmáticos.
Até parece que o circuito linguístico cabo-verdiano só começou a partir deles.
Isto é muito mais complexo, e muito mais remoto do que julgam, meus senhores! Depende da literacia e da classe social a que pertence o falante cabo-verdiano quando faz a sua declaração de amor.
Conheço muitos casos de gente que me é próxima e trata-se de cabo-verdianos de quatro costados – como sói dizer-se – cuja declaração de amor foi feita em língua portuguesa. E os afectos em família são profundamente reiterados em português,por a língua portuguesa ser também, a língua doméstica, de casa.
E que me dirão estes iluminados sobre as particularidades das duas línguas de Cabo Verde, a portuguesa e a cabo-verdiana, sobre as cartas e bilhetes de amor de outrora que circulavam com enorme frequência, do amado para a amada e vice-versa? Eram escritas em português e eram um meio de comunicação, o mais difundido e utilizado entre nós, para o tempo de namoro.
Portanto, solicita-se encarecidamente a quem vá à comunicação social “botar faladura” sobre este tipo de assunto que o faça, lembrando que deve usar as conclusivas sob formato relativo. Deve ter sempre presente e recordar sim, os casos que lhe são próximos, o seu meio ambiente social e não generalizar abusivamente, tornando no todo absoluto, aquilo que é bastante relativo.
Ah! Deve também ligar sempre o seu “desconfiómetro” que é um instrumento muito útil para estes actos elocutórios e assim evitar que o desconhecimento – que prega muitas partidas! - que é muito atrevido e temerário, em “bocas incautas,” venha ao de cima. Nós outros agradecemos!


Sobre a Apresentação de um livro

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

A propósito da recente apresentação do livro de Daniel dos Santos, «Amílcar Cabral – Um Outro Olhar» recebemos de alguém muito amigo e não menos crítico, uma apreciação que achámos muito interessante e oportuna para ser aqui publicada.
O que chamou a nossa atenção, no texto que se segue é a maneira como o autor do comentário “classifica” o tipo de “Apresentante” e a “responsabilidade” que lhe atribui.
Leia e repare como pode ser também fina, subtil e algo irónico, a percepção do ouvinte, do participante numa apresentação pública de um livro.

“Caríssimo Armindo
(…)
Bom, quanto à apresentação do livro.
Da minha modesta experiência como participante nestes eventos – mantenho um certo culto por apresentações de livros que me interessem – costumo distinguir 3 modelos de intervenção dos apresentantes (claro que há mais):
1. Aquilo a que eu chamo os apresentantes "mestres de cerimónia" – muitas vezes não leram o livro, tendo-lhe dado, quando muito, uma vista de olhos. Fazem da apresentação um mero evento pouco menos do que social. Conheço alguns – e aí não me apanham;
2. O apresentante interessado em mostrar que leu atentamente o livro e, não obstante, com avisada distância e passividade, resumindo ali, sublinhando acolá, considera que cumpriu o mandato – a partir daí o leitor que faça pela vida.
3. O apresentante envolvido que leu e sobretudo sentiu a "história" do livro, que, para também envolver os ouvintes, nela não receia assumir mais ou menos protagonismo e mesmo riscos, ora fazendo o papel de advogado de deus, ora o de advogado do diabo, sublinhando e até apimentando as partes mais controvertidas e polémicas e mesmo, porventura, lançando ali e acolá dúvidas sobre certos aspectos (factuais ou outros) ou conclusões do autor. Na apresentação de um livro gosto de sentir que os ouvintes ficam como que a "salivar" pelo seu recheio, fruto de uma intervenção apelativa, controversa, desalinhada do seguidismo, não pacífica, provocatória, até. A tua apresentação de um livro como o que te coube – até pela figura (quando se trata de uma "vaca sagrada", sans offense, é sempre mais problemático) e a sua circunstância que aborda – constitui uma excelente manifestação deste modelo, de que gosto particularmente. Parabéns por isso.”




Cuidado com as traduções literais...!

quarta-feira, 10 de setembro de 2014
Esta vai para a minha querida amiga Dulce Irene crioulista estudiosa e investigadora séria e quem a entenderá melhor…
Há coisas que só se podem contar a partir da chamada terceira idade, a idade da sabedoria, da calmaria, e de outras “sagesses” que esta fase de vida traz aos seus portadores.
Pois bem, a historieta que me proponho contar passou-se aqui há alguns anitos…
Estava eu num aeroporto internacional, à espera da chegada de um familiar. Tudo acontecido. Recepção feita, eis que me preparo para regressar ao carro, quando oiço alguém gritar por mim, da seguinte maneira: “Ondina! Nha cretcheu!” Tradução literal para nós falantes do Crioulo: “Ondina! Meu amor”!
Mas aqui e entre nós, “cretcheu” significa o amor que une os namorados, o casal, “Nha cretcheu” significa também a especificação da amada ou do amado escolhido e pertencido. Logo, com um contexto e significado reservado ao par/casal, de todo conhecido e identificado, por nós falantes das variantes do Crioulo das ilhas de Cabo Verde.
Pois bem, saio do carro parto em direcção a essa voz, que reconheci vinda de um amigo e colega de profissão, também professor, a quem já não via há largos anos. Cumprimentámo-nos efusivamente, como é natural, entre pessoas amigas e que há muito não se viam.
Eis que volto ao carro, encontro a minha cara-metade com uma expressão facial, a revelar contrariedade e que sentado ao volante e ainda antes de arrancar me interpela claramente enciumado (pareceu-me…): “ouve lá, este teu amigo, chama-te de “nha cretcheu>?” Onde é que ele arranjou esta intimidade?”...

Abreviando, com esse chamamento, o meu amigo (que é anglófono) quis mostrar-me que tinha aprendido, ou estaria a aprender o crioulo de Cabo Verde
Conversa troca conversa, a minha cara-metade, já mais racional, como costuma ser, chegou à conclusão de que o crioulo do professor do meu colega é que seria eventualmente o culpado pelo equívoco do “nha cretcheu” alargado a todos os contextos amigos. Afinal, ele podia ter dito também em crioulo: “Ondina, nha querida! (minha querida, my dear) Porque neste caso até se subentendia “querida amiga”. Agora “nha cretcheu”!!??
Enfim, perante este equívoco, “sofrido na pele”, como sói dizer-se, fica o alerta e o aviso aos que ensinam crioulo aos não falantes da Língua cabo-verdiana. Existe a expressão em crioulo “nha querida”, que pode ser empregada em contextos de fala entre amigos. Agora, “nha cretcheu” é que é somente e exclusivamente, tratamento de namorados.
Vamos lá fazer esta destrinça…não vá o Diabo tecê-las! …

P. S. Este post sciptum é dirigido ao leitor não falante do Crioulo da Cabo Verde. A palavra “Cretcheu” (comum a todas as variantes do crioulo das ilhas) resultou da aglutinação de: “cre”= querer e “tcheu”= Muito (cheio, pleno). A tradução em contexto, será a de amar, de gostar muito,de querer bem e de bem querer.

Como podem ser diferentes as perspectivas históricas...

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Serve o texto que se segue para demonstrar de como se percepcionam, dependendo da cultura e da história, heróis versus bandidos e/ou piratas malfeitores.
No último Verão, a minha filha mais a família, marido e filhos visitaram Londres. Eis que de entre visitas interessantes feitas a monumentos magníficos daquela grande cidade europeia, entraram na Abadia de Westminster, onde se encontram sarcófagos de grandes heróis ingleses.
Durante a visita, a atenção da minha primogénita ateve-se no túmulo do nosso muito conhecido e tristemente célebre, Francis Drake. Faz um alto para os filhos e explicou-lhes sucinta e assertivamente: “Este aqui, pode ser herói para os ingleses, mas para nós é um bandido, pirata, que saqueou e destruiu no século XVII a Cidade da Ribeira Grande, hoje conhecida por Cidade Velha na ilha de Santiago, por sinal considerada a primeira cidade construída pelos portugueses, o mesmo que dizer, europeus, e, obviamente, pelos africanos em terras tropicais. Mas mais, continuou a explicar a minha filha: nas ilhas, por onde ele passava, Francis Drake e os seus homens pilhavam, matavam, saqueavam e violavam mulheres. Era assim o “modus operandi” deste inglês, glorificado na terra dele e elevado à categoria honorífica de “Sir” porque grande parte do seu saque era entregue à coroa britânica que desta forma o incitava a continuar os seus actos de barbárie e de banditismo …”
Em traços gerais e historicamente, assim esclareceu a mãe aos filhos, o porquê que, para ela, o sepultado na Abadia de Westminster e na óptica dela, nunca poderia ser classificado de herói!

Interessante é que dias depois, estando eu a ler uma revista que trazia uma longa separata sobre a história das guerras entre espanhóis e portugueses para a restauração da independência portuguesa (1640), compreendi que a expressão popular “amigos de Peniche,” sinónimo de falsos amigos, tinha por detrás a “assinatura” de Francis Drake. Supostamente, o papel dos aliados ingleses – numa guerra que se estendeu até 1668 – era ajudar os portugueses a saírem da ocupação espanhola. Mas tanto destruíram e saquearam, sob comando do terrível Drake, que merecidamente levaram o epíteto de “amigos de Peniche”, nome da localidade onde se situa o porto de onde desembarcara F. Drake. Li ainda nesse mesmo documento, que a cidade de Faro no Algarve, por exemplo, foi completamente pilhada e destruída por Francis Drake e os seus homens, sempre abençoados pela Rainha inglesa…
Enfim, tudo isto para dizer que podem ser muito relativos, diferentes e até opostos a percepção e o entendimento de herói e de bandido. Infelizmente, os interesses falam mais alto do que valores…
Francis Drake é nisso um caso paradigmático.

Apresentação do livro "Amílcar Cabral - Um Outro Olhar" de Daniel dos Santos

sábado, 6 de setembro de 2014
Nótula Explicativa

Após uma pausa longa, eis-nos de volta ao “Coral Vermelho”… já sentia a falta do contacto, sempre querido, com o leitor e destes pequenos exercícios de escrita que mal não fazem…pelo contrário! Animam a mente.

Pois bem, para reiniciar, aqui vai um texto de autoria de A. Ferreira e que serviu de apresentação pública, no dia 5 de Setembro corrente, na Biblioteca Nacional, na cidade da Praia, do livro: «Amílcar Cabral – Um Outro Olhar» (Chiado editora, 2014) de Daniel dos Santos, politólogo e professor universitário.

O interessante é que este texto de apresentação, que a seguir se publica, acabou por ser de certa forma, não só um ponto de vista de um leitor, como também se constituiu numa espécie de ensaio, sobre o conteúdo da obra de Daniel Santos.
Daí querermos partilhá-lo com o leitor.

Apresentação:

Amílcar Cabral – Um Outro Olhar.

Amílcar Cabral - Um Outro Olhar” é um ensaio sério, honesto, que tem na figura de Amílcar Cabral um eixo condutor. O título sugere, uma certa biografia. Mas não uma biografia do género "Longa Marcha para a Liberdade" de Nelson Mandela nem “A Face Oculta de Kennedy” de Seymour Hersch. Cito estes dois grandes estadistas e estas duas extraordinárias biografias porque estão uma nos antípodas da outra. A primeira é epopeica e panegírica descrevendo um percurso honroso e dignificante enquanto a segunda é escabrosa e indecorosa narrando os subterrâneos da vida de um político e do seu clã – vergonhosa, imoral e pouco digna.

A obra de Daniel Santos não é uma coisa e também não é outra. Não glorifica nem denigre. Não é isento – não gosto desta palavra porque ela, a palavra, é desprovida de conteúdo, não tem substância, nem é real. Despiria o autor do seu saber, da sua formação, do seu pensar, do seu cunho pessoal. É objectiva, seria a expressão certa para a classificar.

Mas diria mais! Diria que “Amílcar Cabral – Um outro Olhar” é denso, é substantivo, é real, por isso potencialmente polémico. É também equilibrado, porque rigoroso e profusamente documentado.

Escrito numa linguagem simples sem ser simplista, escorreita, desprovida de qualquer gongorismo ou sociolecto, Daniel dos Santos convida o leitor despretensiosamente a uma permanente reflexão. Na verdade faz uma TAC (Tomografia Axial Computadorizada) centralizada na figura de Amílcar Cabral (AC) em que escalpeliza um homem, um partido e um tempo. Fundamenta-se na vida multifacetada de uma das maiores figuras de África do seu tempo – Amílcar Cabral – para descrever o homem, o político, o diplomata, o chefe militar, bem como social, cultural e historicamente esse tempo – o das independências das colónias portuguesas de África.

O autor divide a sua obra em três partes. O nome que dá a cada uma e as razões que estão na base desta sua organização são explicadas e descritas nas 1ª páginas. Em contrapartida separa a vida do “biografado” em cinco fases cronologicamente estabelecidas, a saber: Conformista; Contestatário; Revoltado; Nacionalista e Revolucionário desfazendo desta forma a ideia de que Cabral “nascera” político, ao mesmo tempo que deixa intuir que ele se tornara político por efeito das circunstâncias e da sua sensibilidade porque na verdade o que ele sonhava, era ser um poeta de mérito e um reconhecido engenheiro, segundo confessaria.

Para descrever estas fases, o autor percorre a vida de Amílcar Cabral desde o nascimento em Bafatá, Guiné-Bissau em 1924 passando pelo seu assassínio em Conacry em 1973, indo para além da sua morte com a proclamação da independência da Guiné-Bissau e até quando, diz ele, um grupo declarando-se herdeiro do seu legado político e reivindicando a legitimidade histórica da sua luta, instala em Cabo Verde, (cito-o): “… um modelo de Estado da mesma igualha que o de Oliveira Salazar.” E explica (continuo a citar): “As semelhanças são enormes: ambos se baseavam no partido único, no chefe, na polícia política, na estatização da economia, na ideologia, no monopólio das forças armadas e dos meios de comunicação social.” (Fim de citação).

Nada escapou ao olhar atento do investigador político e do antigo jornalista. Do país ele aborda com clareza e com rigor científico o seu achamento, o seu povoamento, a sua colonização, o seu “colonialismo”, cruzando e confrontando inteligente e assertivamente teorias, doutrinas e conceitos − jurídicos, sociológicos, históricos, culturais − concluindo convergentemente com Cabral de que Cabo Verde era uma colónia sui generis porque “tecnicamente sem colonização e sem colonialismo”. Cabral diria para culminar uma intervenção a este propósito: ”Os tugas adoptaram outra política: [Em Cabo Verde] todos são cidadãos.” Isto tudo para enquadrar e distinguir, diferenciar, as razões da luta em Cabo Verde e na Guiné.

Ao percorrer a vida de Cabral, Santos não esquece, antes, realça o facto de AC não obstante ser filho de um homem culto e professor só ter feito a 4ª classe aos 13 anos, na Escola Central da Praia. Aqui abro um parêntese para um comentário pessoal, extra-livro, e fazer o ingrato papel de advogado do diabo: Juvenal Cabral, pai de Amílcar, teve cerca de 3 dezenas de filhos – 18 com as suas 3 principais mulheres – o que seguramente não lhe dava tempo para cuidar deles todos. Isto deve ter marcado profundamente o menino e depois jovem, e mesmo o homem, Amílcar Cabral, o que o leva a manifestar (poesia e cartas) uma permanente protecção e um exacerbado carinho pela mãe e a condenar com uma violência inaudita, até com alguma deselegância e falta de tacto diplomático, a poligamia, quando diz: “Que está de facto, profundamente convencido de que é indigno para a espécie humana um homem ter várias mulheres.”

Ofendia desta forma, pela linguagem que utilizou e não pela condenação da poligamia, o povo do País que o acolheu, o mundo muçulmano e a cultura generalizada de África. Cabral viajava com dois nomes falsos (ambos com passaportes de países muçulmanos, um de Marrocos em nome de Mohamed Benali, outro da Guiné-Conacry em nome de Ousman Keita). Não me vou alargar sobre este facto. Fecho o parêntese.

Pois bem, AC lá fez o Liceu com distinção – 17 valores – no Gil Eanes de S. Vicente para onde se deslocara com os seus três irmãos e a mãe que teve que trabalhar duramente – ganhava 50 centavos por hora na fábrica de conserva de peixe, quando havia peixe – para manter a família monoparental uma vez que o pai durante todo o tempo – 7 anos – absolutamente nada enviara.

Depois de um ano a trabalhar na Praia, segue para cursar agronomia. Daniel dos Santos aproveita com muita oportunidade o tempo em que Cabral se encontra em Lisboa para descrever com suficiente minúcia o ambiente estudantil dos oriundos das então colónias bem como a sua relação com a Casa dos Estudantes do Império – CEI – que dava os seus primeiros passos.

Cabral chegou a Lisboa em 1945 – com 21 anos – pouco mais de um ano depois da criação da CEI. Também fim da 2ª Grande Guerra, que, como se sabe, traria alterações significativas na situação das colónias; ano da criação da ONU. E já agora, acrescente-se – e não é despiciendo – auge da repressão salazarista.

E foi seguindo o seu percurso, as suas relações com a “CEI” e com os principais protagonistas do ambiente estudantil africano do qual Daniel faz uma bem articulada exposição da evolução da “Casa” como espaço criado pelo Estado Novo (Ministro do Ultramar Vieira Machado e Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa Prof. Marcello Caetano – autor dos estatutos da CEI) para integrar e controlar os estudantes ultramarinos – dispersos em inúmeras associações – evolução, dizíamos, primeiro para um centro de consciencialização da cultura africana, isto é, como disse Tomás Medeiros como um local de “busca da re-africanização da identidade e das raízes” ou como avançou Frantz Fanon «quebrar a máscara branca» uma vez que o antilhano considerava que o colonialismo é um processo de alienação que inferioriza o colonizado porque faz dele cópia, em termos culturais, do colonizador e, posteriormente, de politização das consciências.

Assim dito, parece que tudo começou com a CEI. Não, nada disto. E Daniel dos Santos expõe-no com clareza e oportunidade. Vai mais atrás, insere na sua análise toda, e não é pouca, actividade africanista que se dá com a queda da monarquia e o advento da república.

Refere-se ao surgimento de uma actividade político-jornalística intensa e muito abrangente, com a criação de várias associações e organizações que lutam pela igualdade de negros, mestiços e brancos, por uma “Uma África para os Africanos”, aproveitando-se do pan-africanismo de Garvey e Du Bois e dos protagonistas dessas actividades em Portugal e colónias, salientando o papel dos cabo-verdianos Augusto Vera Cruz e dos irmãos Luis e Martinho Nobre de Mello.

A passagem de AC pela CEI não foi relevante. Por um lado porque a princípio AC estava muito mais focado nos seus estudos do que em qualquer outra coisa. E a sua aparição na Casa, diz-nos Daniel dos Santos, só se dá em 1949, quase no fim do curso, pelas mãos de Marcelino dos Santos e depois da chegada de Mário de Andrade (1948). A CEI, nessa altura, segundo Mário de Andrade [apenas] se preocupava com problemas que estivessem ligados à geografia, à linguística e à história da colonização. E parafraseando o autor que cita Óscar Oramas: “Amílcar não tinha formação nem preparação teórico-ideológica para rejeitar os valores e a cultura portuguesa”. (Fim de citação).

O surgimento (na clandestinidade) em 1951, do Centro dos Estudos Africanos (CEA), na Rua Actor Vale, 37, em Lisboa, veio dar seguimento ao trabalho cultural iniciado na “Casa” e que não podia continuar porque ela era dominada pelos filhos dos ricos colonos, sobretudo angolanos, que, obviamente, não deixavam espaço para essas actividades. O CEA era dominado pelo santomense Francisco José Tenreiro que era de entre todos, de longe o mais bem preparado, com obras já publicadas. É este o período em que Daniel dos Santos classifica AC de “contestatário”.

E para terminar esta fase da vida de Amílcar que o autor descreve e analisa de forma exaustiva, não posso deixar de referir, muito rapidamente, como começou, segundo Daniel Santos: Amílcar considerou-se sempre GUINEENSE durante toda a guerra para a independência. E os senhores perguntar-me-ão: E não era guineense? Claro que era! Mas só foi estudar porque o reitor do Liceu de Gil Eanes, Dr. Luis Terry, lhe concedeu (discricionariamente) uma pequena bolsa de 350$00 mensais que era manifestamente pouco. Chegado a Lisboa, a CEI que tinha na sua direcção Humberto Duarte Fonseca, um cabo-verdiano e a chefiar a sua Secção de Cabo Verde, obviamente, outro cabo-verdiano, Aguinaldo Veiga abriu concurso para uma bolsa para os naturais de Cabo Verde a que Amílcar Cabral concorreu e ficou em primeiro lugar. Era uma bolsa de 450$00 que iria acumular com a de 350$00 do Liceu. Humberto Fonseca ainda faria várias diligências junto do Instituto Superior da Agronomia e do Ministério da Educação para que lhe fosse concedida isenção de propinas que não era compatível com a condição de bolseiro, conta-nos Daniel dos Santos. E foi, graças ao empurrão destes dois cabo-verdianos, e ao seu fechar de olhos à sua naturalidade que ele ganhou condições para fazer o curso tendo depois escolhido a Guiné para começar a trabalhar. Aliás, ele nunca trabalhou em Cabo Verde depois de formado.

Antes de partir, ainda no ano em que se formou, 1952, com 15 valores, publicaria o “Apontamentos Sobre a Poesia Cabo-verdiana” no Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação onde estabelece um paralelo entre os Claridosos e os predecessores. Dizia que o advento dos Claridosos tinha tirado a poesia cabo-verdiana dos céus e tinha-a colocado na terra: “Cabo Verde já não era o Jardim Hesperitano mas um país real, de gente com problemas” e, continuo a citar: «onde as árvores morrem de sede, os homens de fome, a esperança nunca morre» … «e o mar a estrada da libertação e da saudade». (Fim de citação)

É ainda nesse ano de 1952 que Mário de Andrade e Francisco Tenreiro publicam “Os Cadernos da poesia Negra de Expressão Portuguesa” que para alguns constitui um marco na afirmação da personalidade africana em terras portuguesas. Foi altura, diz-nos Santos, em que Cabral descobre o Pan-Africanismo de Du Bois e Washington e o Movimento Negritude de Senghor, Césaire, Anta-Diop e outros.

Na Guiné, Cabral desenvolve um extraordinário trabalho técnico merecendo a apreciação do Governo da Guiné do qual teve sempre boas referências. Mesmo depois de tentar fundar uma Associação, espante-se (!) em que exclui cabo-verdianos e europeus. Longe devia estar a ideia da unidade!...
É claro que os estatutos não passaram apesar da simpatia que o Governador Mello e Alvim, um homem de ideias liberais, tinha por ele. Mais: Mello e Alvim tê-lo-ia repreendido e dado conselhos de que Cabral mais tarde agradeceria e dos quais nunca mais se esqueceria.

Cabral deixa a Guiné em 1955, evacuado com paludismo e não expulso como se tenta fazer passar, di-lo e prova-o Daniel dos Santos. Durante o tempo que esteve na Guiné teve oportunidade de assistir a espancamentos, torturas, maus tratos de indefesos «indígenas». Numa palavra: De viver e testemunhar a violência do colonialismo. É a fase de revoltado, segundo Daniel dos Santos, que a explica com pormenores.

Até 1959, esclarece-nos Daniel dos Santos, «a folha de Amílcar Cabral na PIDE estava completamente limpa».

Da Guiné salta para Angola para onde fora trabalhar num projecto ligado ao mapeamento de solos. Ali ele tem contactos com activistas e nacionalistas angolanos, mais politizados (numa fase mais madura) e mais bem preparados. Toma consciência da luta que é necessário travar, merecendo de acordo com a entrevista concedida por Tomás Medeiros a Daniel dos Santos o seguinte comentário (cito): [AC] «só começa a falar de independência quando foi a Angola trabalhar em Cassiquel. E Mário de Andrade fez-lhe ver que a «vida não é só solo, é mais qualquer coisa.» E acrescenta Tomás Medeiros: «perdeu as ilusões do solo e passou a perceber que o problema estava na organização e no combate.»

Isto, e explicações mais acabadas que encontramos ao longo do livro desfazem o mito, engendrado e alimentado no seio do PAIGC de que AC esteve na fundação do MPLA. AC nada tem a ver com a criação do MPLA. Ele, AC, politizou-se em Angola, com angolanos e não o inverso como o demonstra Daniel dos Santos. É o período em que o classifica de nacionalista.

Quando se dá a revolta dos estivadores do cais de Pidgiguiti em 1959, Cabral estava em Angola, de regresso para Portugal tendo tomado conhecimento da ocorrência pelos jornais. Visita a Guiné passado um mês, em Setembro, não lhe faltando informações sobre os acontecimentos, uma vez que o seu amigo Aristides Pereira por onde passavam as mais secretas e confidenciais informações era, sempre de acordo com Daniel dos Santos, o homem de confiança do Governador e do Inspector da PIDE.

Pidgiguiti é mais uma das falácias do PAIGC que durante anos o reivindicou como obra sua, sem nada, absolutamente nada ter a ver com ele. Até porque, como se verá ao longo da obra, PAIGC nem sequer existia.

Em Janeiro de 1960, Cabral viaja para Tunes integrado no MAC (Movimento Anticolonial) fundado em 1957 por um grupo de militantes de luta anticolonial – o 1º compromisso político de AC – para assistir ao II Congresso Pan-africano realizado para os movimentos africanos organizados. Não foram admitidos uma vez que o MAC era uma organização de cidadãos de várias colónias – Viriato da Cruz e Lúcio Lara de Angola, Amílcar Cabral da Guiné, Hugo de Menezes de S. Tomé – e não uma associação de organizações nacionais, como se exigia. Foram obrigados por esse motivo a “inventar” o MPLA e o PAI para poderem participar, aliás indo ao encontro dos desejos e das recomendações de Viriato da Cruz. Ao contrário, Holden Roberto era integrado e já conhecido através da UPA, uma organização nacional angolana que ele presidia. Daniel dos Santos fala então da transformação do MAC para FRAIN (Frente Revolucionária Africana Para Independência Nacional das Colónias Portuguesas) depois para CONCP (Conferência das Organização Nacionalistas das Colónias Portuguesas) e explica com pormenores como foram “criados” e não “fundados” os dois partidos – MPLA e PAI.

Quanto ao PAI ele descreve com toda a minúcia a fabricação da data de 19 de Setembro de 1956 como data da fundação do PAIGC. Apenas para levantar o véu e não tirar-vos o prazer da leitura, direi que, dos chamados fundadores – nomes que variam conforme a fonte – não há duas declarações coincidentes. Apenas dois exemplos de dois alegados fundadores: Aristides Pereira disse que Cabral achou, no acto da fundação, que não era preciso assinar nenhum papel de compromisso. O seu cunhado Fernando Fortes, ao contrário, não só disse que assinou um documento, como também disse que falou com Cabral sobre a sua militância no MLG. Acontece, porém, que em 1956, pretensa data da fundação do PAI, o MLG não existia. O MLG só foi fundado em 1958. Como podia ser?

Depois da Conferência de Tunes – um marco importantíssimo não só na vida de Cabral como na luta das colónias – em que ele assinara com o pseudónimo de Abel Djassi, um compromisso, não havia mais condições de Cabral regressar a Portugal onde tinha deixado a família e teve que abandonar a clandestinidade e lançar-se na luta.

Chegou a Conacry em Maio de 1960. Já existiam no terreno muitos partidos (MLG, MLGC e UPGB entre outros) pelo que teve de lutar duramente – nem sempre com elegância e elevação (troca de panfletos e de insultos, conspirações, intrigas) com os partidos concorrentes – para que o seu PAI, que acabara de sair de Tunes – sem expressão, sem quadros e sem estruturas – fosse reconhecido como única força representando Guiné e Cabo Verde.

Em 1963, o PAI já PAIGC dá o seu primeiro tiro. É o início da Luta Armada. E os problemas no seio do PAIGC ganham outra natureza. É a fase de Cabral revolucionário. Tinha sido nomeado Secretário-Geral do PAIGC fora do quadro estatutário por uma Conferência de Quadros em Dakar. A partir daí alterou os estatutos como quis, sem nunca convocar um único congresso e foi-se assenhoreando do Partido.

Em 1964, com a “Conferência de Quadros de Cassacá” mais tarde tornado Congresso, do qual se saíra muito bem, mas deixando atrás “um rasto de um número indeterminado de condenações e fuzilamentos de combatentes e de militantes”.

Reforçou os seus poderes e assumiu-se como senhor absoluto do PAIGC. Passou, desde então, a coleccionar inimigos e adversários internos, todos movidos por um único interesse: o de o eliminar.

E à medida que a luta se ia desenvolvendo mais poderes chamava a si. Tornou-se, diz-no-lo Daniel dos Santos, primeiro, uma espécie de semi-deus em que, cito Maurice Duverger citado pelo autor: “toda palavra que sai da sua boca constitui a verdade; toda a vontade que dele emana é a lei do partido”, e depois em próprio deus que decidia da vida e morte dos militantes e em que até os casamentos careceriam da sua autorização.

Diz um documento do PAIGC, reproduzido no livro, que ele estava acima do Partido e podia por este facto aprovar ou reprovar qualquer decisão tomada por qualquer órgão do Partido inclusive da sua própria Comissão Permanente. Passava a todos, sem excepção, uma certidão de incapacidade e de incompetência.

De tudo isto e do que adiante virá nos dá conta o livro.

Ao mesmo tempo que crescia o seu autoritarismo, o seu absolutismo alegadamente iluminado, engrossavam as fileiras internas dos que o queriam eliminar. Bastas vezes foi posta em causa a sua liderança inclusive pelo seu próprio irmão Luis Cabral, como poderão ver na obra.

Apresento uma lista dos atentados, conspirações, intrigas, intentonas mais importantes de entre os que Daniel dos Santos elenca no seu livro:

• Revolta de Boé (Junho de 1967); - todos fuzilados. As causas residem, alegadamente, na protecção que AC dava aos cabo-verdianos. Nino estaria envolvido mas recusou-se a comparecer ao julgamento para que foi convocado.
• Novembro de 1967, um atentado perto de Ziguinchor
• Em Dezembro de 1967 são os mandingas que se manifestam devido ao número de baixas que sofriam…
• Em Janeiro de 1969 um grupo de balantas em Boé recusa-se a combater exigindo a presença de Cabral.
• Um outro movimento de revolta surge chefiado por Mário Gomes, Braima Sissé e Sena Camará.
• A 3 de Maio de 1968, 150 mandingas chefiados Injai Bá da região de Oio traçaram um plano de deserção para o exército português. A deserção era punida com fuzilamento.
• A 30 de Dezembro de 1968, os mandingas e os manjacos juntam-se e criam a Junta Militar dos Patriotas da Guiné-Bissau com vista a transformar o PAIGC em PAIG. Propunha-se eliminar AC e os seus homens de confiança que, para eles, só vivem roubando o partido. A Junta era dirigida por Mamadu N’Daie, Mamandim Iafa e Bobo Keita, todos Comandantes supremos.
• Em Fevereiro de 1969 atentado contra Osvaldo Vieira desta vez, (supostamente) à ordem de AC que estava convencido de que Osvaldo Vieira e Lourenço Gomes pretendiam derrubá-lo da Chefia do PAIGC.
• A 31 de Março de 1969 um militante de nome Jonjon é surpreendido pelo próprio AC no seu Gabinete com uma granada no bolso para o eliminar como mais tarde confessaria. Foi fuzilado com os seus cúmplices.
• Em Outubro de 1969, Malam Sanhá, Seco Baio e outros guineenses reuniram-se em Simbeli com o propósito de urdir um atentado para eliminar AC quando este para lá se deslocasse;
• Um outro plano para eliminar AC é conhecido em 1969;
• Em 1972, um ano antes da morte de AC também um conluio (Cabi de etnia balanta e Caetano). Tratava-se de uma cilada que consistia em minar a estrada por onde AC iria passar.
• Carta do Nino Vieira a Rafael Barbosa que foi interceptada e os seus efeitos: Conselho de Guerra para Nino demitido de todas as suas funções e 40 militantes presos para averiguações.

Perante esta enumeração (elencagem), que peca por defeito, hoje, podia-se perfeitamente ter pedido emprestado a G. Garcia Marquez o título de um dos seus mais famosos livros: “Crónica de Uma Morte Anunciada”, morte esta que viria a acontecer a 20 de Janeiro de 1973.

O que intriga, e Daniel é absolutamente claro quando o insinua, é que perante os factos e o historial, ainda permaneça em certas pessoas a fixação de que os autores morais do bárbaro assassínio tenham sido apenas a PIDE e o Gen. Spínola quando não faltavam agentes e motivos internos. Ou é comodismo, preguiça de pensar ou é ignorância sobre o que se passava no interior do PAIGC, o que seria natural dada a situação de guerra e natureza estalinista do Partido. Ou então seria mais uma fabricação do real como veremos adiante.

Para chegar ao assassínio de Cabral, Daniel percorre a luta e o Partido de lés-a-lés: a sua génese, o seu desenvolvimento, os seus sucessos, os seus fracassos, as suas estratégias e tácticas, as suas falácias, os seus momentos de elevação mas também de indignidade.

Nada, absolutamente nada, escapa ao olhar de lince, perspicaz, cuidadoso e abrangente do político e politólogo, olhar este que se projecta para além da vida do criador do PAI.

Desde a maneira autocrática, despótica e absolutista como Cabral conduziu o seu Partido, até à criação de um poderoso e bem organizado exército passando pelas intrigas, conspirações, choques, oposições de que atrás falámos.

Daniel dos Santos confronta ainda, com subtileza, a presença de cabo-verdianos na luta armada, segundo ele, de 30 a 40, com a dos cubanos que chega a atingir os 500 no ano de 1967, bem como os mortos em combate – 2 da parte dos cabo-verdianos e 17 da parte dos cubanos.

(A srª Ministra das Finanças que se cuide!…Se os cubanos reivindicarem também terem lutado na Guiné por Cabo Verde não haverá erário que aguente…).

Daniel faz também uma oportuna e bem articulada incursão pela História comum de Cabo Verde e Guiné abordando a questão da “fraternidade” entre os dois povos deixando ao leitor a incumbência de concluir que, se os dois povos são irmãos, então são os bíblicos Caim e Abel – os irmãos desavindos, uma vez que se trata de uma relação histórica, como ele próprio observa, entre “dominador e dominado”. Daí se poder inferir que a dogmatização da unidade Guiné - Cabo Verde, maquinada e sustentada por Amílcar Cabral ou é um desafio à História que foi sempre adversa a essa solução ou não passou de um instrumento habilmente urdido para a consecução da luta para a independência da Guiné-Bissau.

A questão identitária não foi também esquecida. Sem entrar em grandes pormenores, direi que Daniel dos Santos assume uma posição que considero salomónica, de equilíbrio: Não temos que nos re-africanizarmos nem de nos re-europizarmos. Somos cabo-verdianos, fruto do encontro dos dois continentes e respectivas culturas.

Lembrando o grande poeta, ensaísta e jurista Gabriel Mariano: Não temos que procurar as raízes, “nós somos as nossas raízes!

Retomando o conteúdo da obra é importante salientar que o livro de Daniel dos Santos é construído como se de um puzzle se tratasse. Um puzzle cujas peças se encaixam de múltiplas maneiras. Tantas, quantas as conclusões a que cada leitor poderá chegar. Um puzzle em que cada peça que se coloca é um mito que se desfaz na nodulosa edificação construída no aconchego de um conceito marxista-leninista de ideologia que Daniel dos Santos tão arguta e inteligentemente repescou de Mário de Andrade e que consiste na “fabricação do real para fazer passar uma verdade” que se deseja ou que convém. É isto, diz-nos Daniel dos Santos, cito: “que serve para explicar, por completo, a apropriação, umas vezes, a falsificação, noutras, de muitos acontecimentos que marcaram a evolução de alguns processos políticos nas antigas colónias portuguesas." (fim de citação).

É neste quadro que situaremos a falácia da data de criação do PAIGC; a apropriação da greve dos estivadores de Pidgiguiti; a mentira do controlo dos dois terços do território; o embuste do recenseamento da população da chamada zona libertada; a apropriação da autoria da queda do helicóptero onde viajavam deputados portugueses quando a causa tinha sido unicamente meteorológica; a teatralização (publicidade enganosa) da audiência pública do Papa Paulo VI tornada privada; a exultação em Conacry dos irmãos Cabral pelo bárbaro assassínio dos três majores portugueses; a proclamação da independência da Guiné-Bissau pretensamente (há fortes dúvidas do local) em Boé; e a alegada legitimidade histórica transferida para Cabo Verde por um grupo de cabo-verdianos que lutaram para a independência da Guiné-Bissau entre muitos outros assuntos cirurgicamente inseridos.

Daniel dos Santos é lógico, sem ser silogístico no sentido aristotélico do termo. No geral evitou conclusões. Diria que é socrático quanto à metodologia de exposição; mais propriamente maiêutico pois fornece dados e convida o leitor a tirar as suas próprias ilações. Daí que as minhas não são unívocas. Um outro leitor aportará seguramente a outras inferências. Contudo há sempre algumas que se consideram (ou parecem ser) consensuais, não unânimes. E são a estas, sem quaisquer pretensões de estar certo, que me vou rapidamente referir:

> Amílcar Cabral viveu apenas 10 anos em Cabo Verde – dos 11 aos 21 – anos que, como é lógico, poderiam ter (e terão) sido de algum enriquecimento intelectual e social mas dadas as limitações e as circunstâncias que se viviam é de pouco ou nula relevância social – apenas um ou outro exercício literário. É esta a fase que Daniel classifica de conformismo;

> Surge [AC] em Cabo Verde, para o povo cabo-verdiano, (não para a elite informada) trazido pelo “25 d’Abril” e pelas mãos de um punhado de homens e mulheres que tinha todo o interesse em endeusá-lo e mitificá-lo para se legitimar como herdeiros do seu alegado “extraordinário” legado histórico colocando-o directa, mas sobretudo convenientemente, no “Panteão” por uma unanimidade imposta e sem um debate sério sobre ele, que promovesse, no mínimo, um consenso; (estatisticamente, a unanimidade é quase sempre uma imposição enquanto o consenso é uma construção).

> Consenso de que ele não gozava como líder – é bom que se diga – entre os dirigentes guineenses como a obra de Daniel dos Santos revela; e do qual, pelos vistos, só se redimiu com a morte, que o resgatou. Basta ver a quantidade de responsáveis guineenses implicados no seu assassínio.

> Que a luta desenvolvida na Guiné-Bissau, utilizando as justificações e os discursos de Cabral, tinha muito mais um cunho, um cariz, anticolonialista, de mera luta pelo poder, do que nacionalista – defesa de um ideal, de valores.
> Amílcar Cabral não teria lugar no Cabo Verde de hoje. A concepção monolítica que ele tinha de poder, da sociedade e da política são absolutamente incompatíveis com a democracia (sem adjectivos), com os valores e as actuais aspirações do povo cabo-verdiano;

• O livro de Daniel dos Santos reclama de nós uma profunda reflexão sobre a verdadeira contribuição desse homem – Amílcar Cabral – no processo político cabo-verdiano;

• É também um convite a um debate sério sobre o mérito ou demérito do seu lugar no “Panteão” e sobre a “fundação” de uma nação que há mais de 450 anos existe e que como tal, como nação, fez a 1ª reivindicação dos seus direitos cívicos em meados do seculo XVI no longínquo reinado de D. João III.

• É (o livro) um desafio à mitificação, ao culto da personalidade, idiossincrático dos regimes totalitários e ditatoriais de que guardamos evidentes resquícios e produzimos primárias e grotescas manifestações;

• É ainda (o livro) um forte apelo a uma discussão urgente, há mais de 40 anos adiada. Não apenas das teorias ou do pensamento de Cabral mas do seu efectivo papel na independência do País.

Parabéns, pois, a Daniel dos Santos pela ousadia de “UM OUTRO OLHAR” sobre Amílcar Cabral, um olhar que desacomoda, um olhar através deste importante, interessante e, desde já, incontornável documento para o conhecimento da História de Cabo Verde. Uma contribuição que acaba de preencher uma boa parte de uma grande lacuna que teimosamente se tem conservado e que nem o advento da liberdade e da democracia, onde não há temas tabus, nem personalidades ou figuras inquestionáveis, conseguiu colmatar.

É este o livro de Daniel Santos que tenho o privilégio e a honra, e também o prazer, de vos apresentar – uma tarefa difícil dada a sua extensão (quase 600 páginas) e densidade – cuja leitura, a todos, recomendo vivamente.