Confusões textuais...

sábado, 27 de junho de 2020


De vez em quando é tão bom revisitar a escola! Reviver, agora sob forma de boas recordações, as aulas de Língua portuguesa e de Literatura que ao longo de quase quatro décadas leccionei  em Lisboa, em Bissau, no Sal e na Praia.
Um dos assuntos que abordava com os alunos das classes mais adiantadas, era a distinção de textos. Falava-lhes de textos de opinião, de crónicas, de textos noticiosos/informativos, de textos criativos, de ensaios, de teses, como formas diferenciadas de abordar um tema. Lembro-me de levar para as aulas como exemplo, o tema das Viagens tratado sob vários ângulos e contextos, a saber: crónica, texto criativo, texto publicitário, ensaio, tese…
 Era o exemplo prático apresentado, exactamente para os alunos perceberem as diferenças na descrição de viagens em que entravam nuns textos a objectividade, versus a subjectividade  em outros. Na mesma linha, a extensão textual, a análise científica versus a análise emotiva/sentimental, entre outros parâmetros distintivos de cada uma das formas de escrita, já devidamente e amplamente classificadas.
Este intróito  e todo este arrazoado foi apenas um aparte e um desabafo.
 E vêm a propósito de quê? Passo a explicar:
Aconteceu aqui há algum tempo uma pessoa amiga ter-me contado que havia escutado de um comentador num programa televisivo nacional, a propósito do Crioulo e da Língua portuguesa, comparar Artigos de Opinião, com uma Tese académica, no caso, para a obtenção de um grau académico.
O interessante é que nessa comparação ilógica – insensata e algo descabida - o Comentador queria mostrar a superioridade da posição sustentada na aludida tese, face aos Artigos de Opinião, sobre o Crioulo cabo-verdiano e a Língua Portuguesa
Custou-me sinceramente, saber que um comentador da TCV nacional, com alguma responsabilidade elocutória e opinativa, não conseguisse distinguir, diferenciar níveis de abordagens tão diferentes, que não são e nem podem ser equiparados.
Por outro lado, ao fazer-se a apologia de uma tese deve-se ter sempre em conta que é apenas a assumpção de uma visão de um problema e não a verdade absoluta e irrefutável sobre ele. …
Infelizmente, por ignorância ou má-fé, não foi o resultado da conversa televisiva, uma vez que o dito Comentador, acabou por confundir no mesmo imbróglio por ele criado, “Artigo de Opinião” com “Tese Académica”.
São duas formas de escrita e de descrição bem diferentes, em que uma, pouco ou nada tem a ver com a outra. embora versando o mesmo tema.
 Ora bem, vamos por partes, o primeiro, só obriga o seu autor. O Artigo de Opinião, como o próprio título o define só carreia a opinião do seu autor e as suas principais características enquanto produto textual, é o lugar que tem nele, a subjectividade, o seu principal atributo – o pensamento, o sentir, a forma de percepção do seu autor, na abordagem de um assunto e a circunstancialidade espacio-temporal que o envolve. Trata-se normalmente de um texto relativamente sintéctico e curto em termos de sentido e de extensão.
 A segunda, a Tese direccionada para a obtenção de um grau académico. estrutura-se e fundamenta-se em citações e em comparações de vários e de diferentes autores sobre a matéria nela descrita e que se destina primeiro como trabalho universitário com vista à sua apresentação, discussão e finalmente, eventual aprovação de um Júri abalizado e versado no assunto, uma vez avaliada a Tese em discussão final do candidato ao título académico.
 Ora bem, a Tese assim feita é, em linhas muito gerais, formatada da seguinte forma: coloca-se uma hipótese sobre um determinado assunto. Reúne-se uma panóplia assisada e bem fundamentada de teses, de teorias e de ensaios já existentes sobre a matéria em que aqui já haverá escolhas, selecções e opções do próprio autor de Tese. Torna-se quase obrigatório um manancial de citações diversas para provar o trabalho de pesquisa.
Na mesma linha, numa Tese, deve ocupar lugar distinto o aspecto científico da matéria em defesa. O autor da tese também pode lançar, por vezes, inovações e abordagens originais como mais valias para a defesa do seu trabalho final de obtenção do grau académico almejado.
Quando muito, em termos de definição de textos, uma Tese estará mais próxima, comparativamente, de um Ensaio. Mas nunca de um Artigo de Opinião.
Mas é bom que fique claro que uma Tese é para justificar uma hipótese posta ab initio. É uma visão sustentada de um determinado assunto. Não são dogmas como pretendeu o comentador E é quase sempre discutível, refutável e, por vezes, ultrapassada à luz de novas evidências, de novas teorias que conduzem a novas abordagens que, muitas vezes são do desconhecimento do próprio júri...
Desculpem-me esta explicação tão primária do assunto – e se calhar inadequada para o nível do leitor deste “Blog”. – Mas é que fiquei completamente perplexa com a comparação feita por esse comentador atrás citado que devia ter algum cuidado crítico e não argumentar-se em precipitadas e descontextualizadas comparações que o acabaram por levar a conclusões nada intelectivas.
E terá sido assim que a análise televisiva foi feita sem qualquer sentido lógico textual, acrescentou a minha fonte.
Posto isto,  não resisto a recomendar , que não se confunda e muito menos se compare um “Artigo de Opinião” – que visa fins e público bem  gerais - com uma “Tese académica” orientada para público e objectivos bem específicos.
E com esta me fico, pois de confusões textuais estão os nossos meios de comunicação  cheios...

À História o que é da História...

domingo, 21 de junho de 2020


Tenho lido ultimamente alguns artigos de opinião sobre o tema agora “em moda”, trazido pelos denominados activistas sociais que é o da remoção de estátuas de chamados esclavagistas, racistas, colonialistas e outros epítetos que, com ou sem razão, diariamente nos transmitem pela comunicação social.
Ora bem, antes de iniciar ao que aqui me traz, gostaria de fazer uma questão prévia.
Como qualquer pessoa minimamente escolarizada e humanamente formada, sei e comungo  da opinião de que há muito que a escravatura é algo “consensualmente repugnante” citando o Historiador português Rui Tavares num dos seus artigos. 
Nesse mesmo artigo, o autor, tornando mais abrangente  a questão do terrível flagelo humano do tráfico de escravos e desfazendo alguns mitos no tratamento do assunto, referiu-se à rainha Jinga de Angola e ao célebre Zumbi dos Palmares no Brasil, como possuidores em larga escala, de seres humanos escravizados. No entanto, eles são apresentados historicamente, como heróis anti-escravistas, enquanto, pelos vistos, eram apenas competidores, rivais, dos Holandeses e Portugueses no mesmo negócio. Afinal o “anti-escravismo” da rainha Jinga de Angola e do Zumbi dos Palmares do Brasil, nada tinha a ver com a defesa dos escravizados, sendo tão somente uma guerra de mercadores em que aqueles consideravam uma “concorrência desleal” dos europeus  num terreno em que eles julgavam exclusivamente seus: o mercado de escravos africanos.
Ainda na questão prévia, gostaria de assinalar um outro episódio sobre escravos, este muito mais recente, séc. XXI, passado no Níger, escutei-o recentemente no programa, «Eixo do Mal» semanalmente transmitido num dos canais da televisão portuguesa.
Tratou-se de um testemunho dado por um dos jornalistas do painel desse programa, sobre a sua experiência no Níger, um dos muitos países problemáticos da África actual. Contou ele que fez parte da delegação europeia àquele país africano que vive mergulhado em problemas vários, entre os quais, conflitos com o povo nómada tuareg, entre outros.
Ora bem, o então membro/observador da delegação europeia, explicou a propósito do escravismo, de que tanto se fala agora, que ele conheceu presencialmente, no Níger do século XXI, povoados muitos, cujas populações estão completamente à mercê, escravizadas, subjugadas por outras aldeias que as vão “arrebanhar à força, adolescentes, jovens, homens e mulheres” e levam-nos para campos e aldeias do país, sujeitando-as a trabalho escravo. E são milhões de seres humanos assim tratados.
Igualmente, o Jornalista narrou nesse mesmo programa que se tornou amigo no Níger de um escravo tuareg, de nome Ibrahim que um dia decidiu por iniciativa própria deixar de ser escravo. Estava farto e quis ganhar a dignidade humana a que tinha direito. Conseguiu um lugar na missão da Comissão Europeia e estabeleceu uma relação especial com o jornalista que desconfiou sempre das eventuais repercussões da sua ousadia.
Acabado o trabalho da missão europeia, e regressado a Portugal, ele soube que Ibrahim havia sido detido pelas autoridades nigerinas com o fim de evitar que o “mau exemplo” se propagasse.
Então, o nosso Jornalista temendo o pior, colocou, já em desespero de causa, a fotografia de Ibrahim nas redes sociais, criando um quase movimento, na esperança de que o seu gesto tivesse algum efeito de denúncia e o salvassem.  Soube mais tarde, com muita tristeza e consternação que o amigo tuareg havia sido morto.
Dito isto, e feito o desabafo, descrito no ponto prévio, vamos ao que hoje aqui me trouxe.
Tal como havia dito no início, tenho lido ultimamente alguns artigos de opinião e muita informação em jornais portugueses sobre esta matéria.
Mas para melhor enquadrar o assunto terei de voltar um pouco atrás no tempo. Em 2017, num dos números do Jornal Público do mês de Outubro daquele ano, apareceu uma notícia  e lembro-me que a li meia estupefacta. É que dizia que o Presidente do “SOS Racismo de Portugal” havia feito declarações ao jornal  sugerindo o apeamento da estátua de Padre António Vieira, por ser “esclavagista ou, tal representar.”
Dialoguei logo com os meus botões, “... De onde este foi buscar tal ideia? De certeza que nunca leu a vida e a obra deste padre jesuíta e muito menos terá lido e conhecido o conteúdo das Cartas e dos Sermões de Pe. A. Vieira. Este tipo de pedido só pode ter vindo de alguém completamente ignorante sobre quem foi este religioso e os combates que travou com a sua pena e a sua voz, em Cartas e em Sermões...”
Assim pensei eu, quando li a notícia sobre a pretensão exarada no Jornal e proferida pelo Presidente da Associação SOS Racismo de Portugal.
É que Vieira foi um defensor dos índios e dos escravos negros contra a  brutalidade e a ganância dos senhores do Brasil, no século XVII.
Logo, só por isso, o que não seria pouco, merecedor de toda a nossa admiração e respeito. Não foi por acaso que os índios Ameríndios chamavam-no: “Padre Grande” na língua deles. Língua que ele aprendeu e que falava fluentemente. 
Volto a repetir, pela defesa da vida dos Índios, valeria toda a nossa admiração. Podia até não ter sido tão acutilante na defesa da vida dos escravos negros porque a escravatura era característica da sociedade brasileira da época e corrente em  outras sociedades, americana, europeia, africana e asiática. 
Padre A. Vieira foi missionário por muitos anos no Brasil, com permanência mais prolongada no Maranhão e na Baía. 
Um dos seus mais célebres Sermões, e «Sermão de Santo António aos Peixes» o santo  protagonista do sermão, insurge-se contra a violência e a brutalidade dos grandes donos de terras, (peixe graúdo, em que se destaca o tubarão) contra (os  peixes pequenos) os seus fracos e maltratados escravos. Numa belíssima alegoria fabulária, em que o Santo critica o comportamento dos Homens, representados metaforicamente em diversas espécies de peixes.
 António Vieira era mestiço, pelo lado do pai. Este era filho de uma negra, e de um alentejano. Logo, Vieira é neto de uma negra. Aliás, basta observar os retratos de Pe. A. Vieira para se lhe notar os seus traços de mestiço. O que ao caso não acrescenta rigorosamente nada. Ele podia ser caucasiano, negro, ou asiático que o que importaria para aqui era o seu comportamento face aos maus tratos infligidos a seres humanos em posição de mais fracos.
Além do mais, para nós, acresce a admiração por  António Vieira pois ele foi um profundo e fino cultor da Língua portuguesa. Em plena época  em que imperava o estilo barroco, séc. XVII, Vieira distinguiu-se nos seus escritos, pelo  uso de uma oratória individualmente trabalhada e que o singularizou de entre os seus pares escritores da época e o alcandorou como o mais acabado exemplo de um estilo rico que elevou a Língua portuguesa, a patamares até aí desconhecidos, no tocante à estilística da Língua.
Assim o estudámos no Liceu e mais tarde o aprofundámos na Universidade.
Interessante é que para nós cabo-verdianos que também estudámos a história da Cidade Velha, a primeira capital deste Arquipélago, sempre nutrimos por este simpático sacerdote, um carinho especial, pois que foi dele o primeiro grande elogio ao cabo-verdiano, quando aqui passou uma temporada, incluído o Natal de 1653, na Cidade Velha, esperando pelo regresso ao Brasil.
É que foi da ilha de Santiago,que Vieira enviou uma carta ao rei D. João IV de Portugal, em que dizia entre outras descrições elogiosas que fez dos religiosos cabo-verdianos, o seguinte: “...Vi clérigos, negros como azeviche; tão doutos, tão zelosos,(...) capazes de fazer inveja aos melhores do Reino.”
Este elogio de Pe. A. Vieira foi repetido à exaustão, ao longo do tempo aqui nas ilhas e por muitas gerações. Citado diversas vezes em discursos públicos por políticos e outros, sempre de forma positiva. Antes e depois da independência de Cabo Verde.
Outro reparo elogioso que Pe. António Vieira nos fez nessa altura e na mesma missiva dirigida ao rei foi que o cabo-verdiano tinha “particular talento para a música,” isto é, possuía dotes para a música.
Dito isto, questiono quem sabe se não terá sido o Padre António Vieira o primeiro – pelo menos dos primeiros – a chamar atenção e a registar de forma escrita (1653) esta particularidade/vocacional artística do ilhéu cabo-verdiano para a música?
Daí, não admirar o quão chocada fiquei com o que se está passar com essa gente dita activista, contra este homem religioso que desafiou o seu tempo na defesa dos mais fracos e oprimidos com as armas que possuía e que por causa disso –  como a sua voz e a sua pena incomodavam os donos de escravos negros e que queriam fazer o mesmo aos índios – o padre foi denunciado à Inquisição, pelos senhores do Brasil, como praticante  herético e foi mandado de volta  para o reino, Portugal, como prisioneiro da Inquisição, para responder perante o Tribunal da Santa Inquisição. Ainda esteve nos cárceres dessa temível organização católica de má memória – a Inquisição. Sofreu injustamente, segundo os seus biógrafos.
 Aqueles que o defenderam, o próprio  rei D. João IV, respeitavam-no pelo seu talento, saber e práticas humanistas. Daí, o terem-no considerado inocente das acusações que sobre ele penderam, que mais não eram do que vinganças ardilosas pelos maiorais do Brasil. As cartas frequentes ao rei e aos que tinham poder em Portugal, queixando-se dos desmandos dos grandes da então Colónia portuguesa, eram provas da sua constante preocupação com a vida dos oprimidos.
A história regista que o julgamento de Pe. António Vieira foi tortuoso e de provas muito dífíceis para a sentença.
Libertado, ei-lo em Roma – diz-se que a mando do rei para que Vieira, assim escapasse à ira dos Inquisidores fanáticos – como parte da Legação portuguesa da Santa Sé.
Aí permaneceu por algum tempo e ganhou a confiança e a admiração do Papa dada a sua sapiência e a excelência de algumas homilias proferidas durante a estada na Santa Sé.
E agora, em 2020 gente ignorante, vandalizou a estátua do Padre António Vieira, erigida pela Câmara Municipal de Lisboa, fazendo pichagens com acusações injustas.
É caso para recomendar a esses ditos fanáticos de derrube de estátuas, que leiam  que hoje em dia com muita facilidade, através da “net” se consultam os documentos sobre Pe. A. Vieira, indo até à Torre do Tombo em Lisboa. Que leiam alguns Sermões. Eu recomendaria como suficiente para o início, dois, a saber: o «Sermão da Sexagésima» e o já aqui referido «Sermão de Santo António aos Peixes». De caminho, leiam também algumas das muitas Cartas dirigidas ao rei D. João IV. Tenho a certeza que no fim, já formulariam outro e diferente juízo deste Homem que foi grande – humanamente e culturalmente –   não deixando de ser um homem do seu tempo falou, escreveu e defendeu o seu semelhante, sem olhar à raça, à cor ou à camada social de pertença.
De uma coisa lhes posso garantir, sairiam das leituras feitas muito mais cultos e apetrechados para analisar e julgar Vieira no seu tempo, entre os seus contemporâneos e, se calhar o considerar muito progressista.
É que a cultura, a ilustração, ajudam e muito!
 Apraz-me para o caso, citar e partilhar o que escreveu Francisco Assis num dos seus artigos, publicados no jornal «Público»: “Quando um grupo de fanáticos precariamente alfabetizados invade e confisca o campo de debate público, passa a haver sérios motivos de preocupação.”
Já agora, acrescentaria que não é por acaso que existe nos Cursos de História em Portugal, uma cadeira denominada “História das Mentalidades”. Exactamente para prevenir e evitar que o futuro Historiador fundamente e julgue o passado com os instrumentos de análise de hoje.
 Como remate deste escrito, menciono o Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa que classificou o acto de vandalismo feito à estátua de Padre António Vieira, de forma inequívoca, sem margens para dúvidas: “...trata-se de uma grande imbecilidade”.
 Ousada e estribada numa ignorância atrevida, concluo eu.






JÁ ESTAMOS A PERDER O PORTUGUÊS, ANTES MESMO DE GANHARMOS A LÍNGUA CABOVERDIANA*

quarta-feira, 3 de junho de 2020

O texto que se segue é um comentário do Leitor José E. Cunha, reflexões feitas a propósito do texto: “Crioulo versus português”, aqui publicado em Fevereiro de 2010. Dado que não perdeu actualidade, uma vez que se trata de assunto cada vez mais candente na sociedade actual cabo-verdiana, assim publicado, ganhará maior visibilidade.
 Felicito-a por este espaço.
Começo por discordar do papel que sugere para o Crioulo/Lingua Caboverdiana, mesmo se entendo os receios que estão na base dos argumentos. Não devemos temer a paridade entre as duas línguas (nem que seja para satisfazer os mais ortodoxos, que pretendem fazer desta questão uma espécie de hooliganismo linguístico, transformados em talibans do crioulo), desde que feita no tempo certo, da forma correcta, com a tranquilidade necessária, mas sobretudo com base em experiencias no terreno (e não apenas por smell teórico), estudos mais aprofundados, e instrumentos técnicos e teóricos absolutamente necessários e indispensáveis. Precipitar esta matéria da forma como se pretende, é um erro que só gerações futuras pagarão a factura, mesmo que sinais de emergência apontem para a catástrofe linguística que se perfila já no horizonte. O seu post aponta nesse sentido, com a delicadeza e a elegância que lhe são peculiares, por isso que trago aqui este modestíssimo contributo. Há alguns meses realizou-se na Associação Caboverdeana de Lisboa (ACV) um debate sobre a questão da oficialização da Língua Caboverdiana, e aí foram ditas algumas coisas importantes para este debate, algumas delas já repetidas em outros fóruns, mas que não vejo refutadas, nem analisadas com a profundidade que se impõe, tendo em conta a pertinência do assunto em causa. Para algumas coisas mais incómodas parece que Lisboa ainda fica longe demais. O que significa também, que apesar de tanta conversa, discussão, debates (uns mais democráticos e abertos do que outros) não estamos a aprender nada, como se cada fórum não passasse de uma espécie de válvula de escape das emoções em presença, como se as posições estivessem tão extremadas que nenhuma aprendizagem seja já possível, como se ninguém tivesse nada a prender com ninguém, numa total falta de generosidade, numa irredutibilidade irracional de ‘tudo ou nada’, de ‘ou vai ou racha’, de ‘é assim ou não é nada’, como se os caboverdianos tivessem finalmente descoberto, e aberto, a sua Caixa de Pandora. Eis em 3 pontos do que então se disse na ACV:
1- O reconhecimento unânime de que o Estado de Cabo Verde, ao contrário do que está plasmado na Constituição sobre a questão da língua, nada fez até agora do que a si próprio impôs como passos necessários para a oficialização. Atentemos: não temos um Dicionário Geral da Língua Caboverdiana; não temos um Dicionário Etimológico da Língua Caboverdiana; não temos um Dicionário de Sinónimos da Língua Caboverdiana; não temos uma Enciclopédia (de natureza Etno-Antropológica) da Cultura Caboverdiana; não temos um Instituto da Língua Caboverdiana; não temos técnicos, linguistas, sociolinguistas, historiadores da língua (nacionais e/ou estrangeiros, talvez porque não interessa), a produzirem trabalhos científicos e técnicos, de carácter prático e pedagógico, sobre os diferentes instrumentos possíveis ao nosso alcance, suas vantagens e desvantagens, que não se resumam ao ALUPEC, para que possa haver uma VERDADEIRA ESCOLHA, e não ficarmos por esta envergonhada imposição de um único modelo. Esta omissão do Estado Caboverdiano, para além de grave, criou uma falsa ideia de consentimento tácito, por alguns entendida por explícita, numa determinada direcção, com os equívocos que se conhecem, e com os resultados que saltam à vista.
2- Nesse encontro foi afirmado por duas professoras universitárias presentes, o seguinte: uma jovem caboverdiana que esteve em Cabo Verde a leccionar Sociologia até 2009 numa das nossas universidades, afirmou que a principal dificuldade que sentiu junto dos alunos (a grande maioria) foi ao nível da expressão escrita. Não entendia o que lia nos trabalhos e nos testes, tantos eram os erros, de vocabulário, de expressão escrita, e de argumentação; no mesmo sentido argumentou a académica portuguesa, creio que da Universidade Clássica de Lisboa, que afirmou nunca ter encontrado alunos tão mal preparados em Português como ultimamente, a ponto de, pela primeira vez, ter chumbado alunos pelas mesmas razões apresentadas pela colega caboverdiana. Fiquei envergonhado? Não! Nem surpreendido. Ouvira já a amigos, um deles um conhecido intelectual caboverdiano, que assegurava, sem assombro, que ajudava regularmente a corrigir teses, monografias, e trabalhos de fim de curso a alunos universitários. Este estado de coisas não seria preocupante se não estivéssemos a falar de alunos de “nível” académico superior. Se estes não são sinais de alarme, o que é que são? Ou seja, a análise à qualidade do nosso ensino, em particular ao ensino da Língua Portuguesa, como diz e bem V. Exa. também é a nossa língua, é uma tarefa urgente. Se alguém pensar que este tema é lateral à questão da oficialização da Língua Caboverdiana, não é. A não ser que queiramos uma oficialização a brincar, sem tirar daí todas as consequências práticas, ou seja, avançamos para a oficialização e depois logo se verá o que acontece, logo se verá o que fazer com ela. Desenganem-se aqueles que pensam que sou contra a oficialização do caboverdiano (tema risível, já que não conheço nada mais democrático, generalizado, e ‘oficializado’ que a língua caboverdiana a todos os níveis da nossa sociedade), nem contra o ALUPEC, de que sou utilizador crítico. Sou sim contra todas as formas de dogmatismo, contra atitudes precipitadas, contra medidas mal estudadas e mal analisadas, contra o aventureirismo em matéria tão fundamental, contra o deficit de informação sobre alternativas credíveis, e contra a irresponsabilidade de gente que não estará cá no futuro para assumir as responsabilidades dos seus actos presentes.
3- O que então afirmei nesse dia na ACV em tom de síntese, e aqui reafirmo, é que há sinais preocupantes de que JÁ ESTAMOS A PERDER O PORTUGUÊS, ANTES MESMO DE GANHARMOS A LÍNGUA CABOVERDIANA. Os argumentos apresentados naquela reunião, outros aqui por si, outros ainda de forma avulsa em diversos jornais, são por demais evidentes, e concorrem para o que chamei, e chamo, de catástrofe linguística em curso, a curto prazo. A matéria desta discussão está ainda por fazer, e este é um assunto que exige, com urgência, estudos concretos no terreno (a análise às competências de alunos e professores, no domínio da Língua Portuguesa ao longo da cadeia escolar), que não fiquem pelas enganosas estatísticas quantitativas que conhecemos. O seu texto-testemunho, como membro da comunidade educativa, tem o fundamento técnico e a autoridade moral de quem sabe, e conhece, do que fala. Esta é uma realidade que a alguns preocupa sobremaneira, e que é perigoso ignorar, pelos efeitos devastadores de longo prazo, e pelo desastre intelectual e educacional que arrasta gerações. Gostaria de estar tranquilo. Mas não estou. Há demasiada cegueira e intolerância intelectual nesta questão da fixação de um alfabeto para a Língua Caboverdiana, transformada por estes dias numa ridícula feira de vaidades. Por isso reclamo que é urgente uma “autoridade” para a questão da Língua Caboverdiana, instituição que nos forneça, com distanciamento e objectividade, os instrumentos que necessitamos para o desejado salto qualitativo, e a aspirada evolução nesta matéria. um alfabeto aberto, que sirva a língua, que sirva os caboverdianos, que sirva Cabo Verde, que traduza com verdade e sirva com eficácia a cultura caboverdiana.
Melhores cumprimentos.
José E. Cunha

*Comentário ao textoCrioulo versus Português? Publicado no blogue “coral-vermelho” em 4 de Fevereiro 2010