Eis quatro poemas de Joaquim Saial.
Joaquim Saial para além de ser
Historiador de Arte e da estatuária pública portuguesa e cabo-verdiana, é
igualmente ensaísta, ficcionista e poeta. E é como poeta que hoje figura aqui,
através dos poemas: “A Cidade que foi,” “A Loja,” “O Homem que escrevia para
ser lido” e “Travessia do Tejo.”
Convido os leitores a lerem os poemas
que se seguem com a convicção de que certamente apreciarão o lastro poético que
os enformam, nos simbolismos, nas transfigurações e na beleza das descrições
das gentes, das paisagens, dos ruídos e dos ecos e, das complexas singularidades
do rio, da cidade e da loja.
É muito provável que, para os
leitores que seguem este blogue, ele não careça de qualquer apresentação, uma vez
que Joaquim Saial também tem um blogue muito conhecido – «Praia de Bote».
A cidade que foi
As janelas fecharam-se uma a uma.
Não há roupa a secar ao vento,
não há vozes a discutir nas varandas.
As portas trancadas não escondem segredos,
apenas o silêncio de quem partiu.
Onde antes se vendia café moído na hora,
onde as montras guardavam histórias,
há agora vis fachadas todas iguais,
e lojas sem nome, rosto ou alma.
Lisboa desfaz-se em hotéis sem memória,
onde ninguém chega para ficar.
Os que vinham para nela viver,
dão lugar a quem chega por três noites
e parte sem saber onde esteve.
Nas ruas, há filas para entrar,
repetidas nos museus e monumentos.
Há turistas a fotografar turistas,
olhares que se perdem em espelhos.
E Lisboa, aquela que era nossa,
tornou-se mero cenário,
tornou-se vitrine,
lugar onde já não se vive,
apenas se passa.
A loja
As portas abrem-se todas as manhãs,
pontualmente, sem pressa,
como se houvesse alguém do outro lado a esperar.
Mas ninguém espera.
Nem ontem,
nem há uma semana,
nem desde aquele dia que não tem data.
O sino, pendurado no alto da ombreira,
toca com o vento,
não com a entrada de pés humanos.
E mesmo assim ele sorri.
Sempre sorri.
Na montra, o reflexo do sol brinca
com o pó que se acumula em silêncio.
Ali não há promoções,
nem letreiros a gritar urgência.
Há apenas o espaço vazio,
entre o que é e o que poderia ser.
A loja tem prateleiras,
tem um balcão gasto por esperas antigas,
tem uma luz que vacila, mas nunca se apaga.
E ele tem o hábito de acender todas as lâmpadas,
de varrer o chão com esmero,
como se limpasse um templo.
Às vezes, fala sozinho,
não por loucura,
mas por amor às palavras
que ecoam melhor entre paredes caladas.
Quem passa, estranha.
Os olhos escorregam pela vitrina
como se procurassem sentido.
Mas ali, o sentido está ausente,
ou talvez demasiado presente.
Um dia, uma criança entrou,
perguntou o que havia para vender.
Ele respondeu:
“Tudo o que não se vê.”
E a criança saiu a sorrir,
sem nada nas mãos,
mas com os bolsos cheios de mistério.
Ele não quer fechar.
Não por teimosia,
mas porque há um fio invisível
que o prende à madeira da porta,
ao cheiro a tinta antiga,
à ranhura na parede que lembra uma árvore.
Houve tempos em que teve vizinhos,
outras lojas, outras vozes.
Agora, é o último.
O bairro mudou de pele,
mas ele ficou,
como uma ruga que resiste ao tempo.
À noite, senta-se num banco pequeno,
olha para os frascos vazios,
para as caixas sem rótulo,
e ouve, com atenção,
como se as paredes tivessem algo a contar.
E contam.
Histórias sem fim,
de gestos que nunca chegaram a acontecer,
de mãos que hesitaram na maçaneta,
de promessas que ficaram presas à entrada.
Não quer fechar.
Porque a loja é mais do que um lugar,
é um fôlego entre dois silêncios,
é um abrigo para o inútil,
para o sagrado,
para o que não precisa de nome.
Dizem que é um fracasso.
Que um negócio sem vendas
é um barco sem leme.
Mas ele sabe:
há ventos que sopram só por dentro.
No inverno, a loja cheira a madeira molhada,
no verão, a tempo parado.
E em todas as estações,
há um rumor de eternidade
a repousar nos cantos.
Ele espera.
Não por clientes,
mas por um instante.
O instante em que o mundo
perceba o valor
de uma loja que não quer vender
porque já tem tudo.
E quando partir,
ninguém herdará a loja.
Ela fechará sozinha,
como uma flor cansada.
Mas até lá,
permanece aberta,
para quem tiver olhos
e não apenas desejos.
O homem que escrevia para ser lido
Veio tarde,
como a chuva no fim de Agosto,
o dom de escrever.
Não lhe veio pelos livros,
nem por mestres ilustres,
mas por uma inquietação antiga,
calada por décadas
sob a rotina.
Viveu de ofícios sem nome,
de horas sem história,
de cidades onde ninguém o esperava.
Na velhice,
quando o corpo já era casa frágil,
as palavras começaram a bater à porta.
E ele abriu.
Começou com frases breves,
escondidas em margens de jornais,
em folhetos de supermercado,
em toalhas de café.
Não falava delas a ninguém.
Não por vergonha,
mas porque sabia
que o mais precioso nasce em silêncio.
Escrevia como quem pede perdão,
como quem regressa
a um sítio que nunca soube existir.
Não queria aplausos.
Não queria que o nome
brilhasse nas montras.
Dizia:
"A fama é uma luz que cega.
Prefiro ser lido na sombra."
Os outros achavam-no estranho,
velho demais para sonhos,
esquisito como um pardal
a cantar fora da estação.
Mas ele continuava.
Escrevia sobre gente comum,
sobre a vida que passa sem legenda,
sobre amores que ficaram por dizer
e saudades que nunca tiveram nome.
Deixava os textos em paragens de autocarro,
entre os livros das bibliotecas,
na caixa de correio de estranhos.
Nunca assinava.
Não precisava.
O que importava era ser lido.
Um parágrafo que tocasse alguém,
um verso que acendesse
o lume de uma dor adormecida.
Não vendia livros.
Recusava editores.
Oferecia palavras
como quem oferece pão.
Muitos riram-se dele.
Chamaram-lhe tolo,
poeta de becos,
escritor sem proveito.
Mas um dia,
uma criança leu um dos seus contos
num banco de jardim,
e sorriu pela primeira vez em semanas.
Noutra cidade,
uma mulher encontrou um poema
dentro de um livro usado
e chorou com gratidão desconhecida.
Ele não soube disso.
Mas continuava.
Porque acreditava
que a leitura é um acto sagrado,
e que ser lido — mesmo por um só —
vale mais do que um milhão de aplausos.
Viveu com pouco.
Morreu com menos.
Mas deixou sementes
onde poucos ousam semear.
Hoje, ninguém sabe o seu nome.
Mas há frases suas
penduradas no coração de quem leu.
E isso, para ele,
sempre foi suficiente.
Travessia do Tejo
O rio estende-se, largo e paciente,
como um cristal que guarda
os reflexos das margens inquietas.
Os cacilheiros deslizam,
pintando rastos brancos na água,
carregando histórias e silêncios,
passageiros apressados,
olhares que atravessam o tempo.
No alto, as pontes abraçam o céu,
gigantes de ferro e betão,
suspensas entre partidas e regressos:
a 25 de Abril ruge com os motores,
o seu corpo vibra com o vento e o aço,
enquanto a Vasco da Gama,
serena e distante,
parece tocar o infinito.
Na margem norte, os telhados brilham,
as colinas respiram história,
o casario inclina-se sobre a água,
num sussurro que atravessa a brisa.
Navios de cruzeiro adormecem na doca,
catedrais errantes de outros oceanos,
estranhos no ventre do rio,
segredos de portos longínquos,
ali, no cais do Jardim do Tabaco.
Na margem sul, o Ginjal espraia-se,
velhas paredes espreitam o rio,
memórias desfeitas no tempo,
sons de passos que se perdem na brisa.
A Boca do Vento chama quem parte,
o elevador ergue-se sobre o azul,
um olhar sobre Lisboa,
uma promessa de regresso.
Mais adiante, Almada desperta,
ruas que sobem e descem sem pressa,
janelas que espreitam a outra margem.
No Alfeite, vasos de guerra descansam,
fundeados entre passado e futuro,
vigias silenciosas do Tejo imenso.
O Tejo, sempre o Tejo,
testemunha de travessias e retornos,
memória líquida de quem parte
e de quem fica.