A Mulher e a Educação

quarta-feira, 13 de março de 2024

 


Por que estamos no mês de Março que se convencionou ser o mês da Mulher, gostaria de lembrar às adolescentes e às jovens mulheres cabo-verdianas que um dos melhores caminhos para se atingir a plenitude dos direitos que nos estão consignados, é exactamente o caminho que se trilha através da educação, da escolarização plena e da literacia.

Felizmente, aqui nas nossas ilhas, as meninas de uma forma geral, não sofrem qualquer tipo de impedimento em frequentar escola. A escola pública em Cabo Verde esteve sempre aberta tanto aos rapazes como às raparigas.

Sim, nós nunca estivemos - felizmente - nesse patamar de condicionar a frequência escolar feminina . O impedimento, e que existia no antigamente, era o de não haver escola pública em todas as regiões do Arquipélago. A partir do momento em que as escolas se multiplicaram para todos os cantos do país, imediatamente o número de raparigas superou (ou não fossem elas, 52% da população do país) largamente, o dos rapazes, frequentando a mesma escola.

Recordo-me, quando na vida activa, e na Educação, quando participávamos em reuniões internacionais, com países africanos, as nossas estatísticas relativas, concernentes à frequência escolar total, (rapazes e raparigas no sistema escolar obrigatório) eram sempre e de longe - nas devidas proporções - superiores aos dos restantes países desta costa africana, sobretudo, daqueles cuja religião, usos e costumes, constituem verdadeiros empecilhos à educação formal da mulher.

Daí que, e continuando, exorto as nossas adolescentes e jovens a não pararem a meio do caminho por causa de uma acidental e indesejável gravidez precoce, que não se deixem ficar para trás, que se apliquem mais, para assim alcançarem uma mais completa escolarização.

Que tenham brio e que lutem para atingirem uma boa realização pessoal e social na vida. São estes os meus votos, neste mês de Março, para a mulher adolescente e jovem cabo-verdiana, do século XXI.

Tem sido dito de modo reiterado, que uma das melhores formas de se chegar à igualdade e ao gozo pleno dos nossos direitos é através da educação das mulheres, nesta ocasião, e saindo de Cabo Verde, expresso a minha grande admiração à activista - activista verdadeira e com letras maiúsculas - a Nobel da Paz, paquistanesa, a jovem Malala Yousefzai, que enfrentou e foi ferida pelas balas dos temíveis Talibans, por ter defendido, perante o mundo, a educação das raparigas do seu país.

Para terminar este escrito, aproveitava a oportunidade e mencionava as notícias e as estatísticas que nos dão conta, da submissão, da violência a que estão ainda sujeitas no século XXI as mulheres negras, convém frisar que isso se passa nos países delas, nas cidades e nas aldeias africanas e perpetrados pelo homem africano que as subjugam e as maltratam como se fossem objecto, pertença dele e em nome de valores que nos são estranhos.

Portanto, todo esse sofrimento e violência de que tanto se fala sobre “milhões” de mulheres negras, serão da responsabilidade da sua respectiva contraparte masculina africana, das sociedades em que estão inseridas e delas também.

Logo, será indo aos países africanos, à sua organização social, ao tipo de religião predominante e aos respectivos governos, para se colocar como deve ser o problema da desigualdade feminina que vigora – infelizmente, com notável grandeza - em quase todo o Continente africano.

Cabo Verde, África? Convenhamos!...

sábado, 9 de março de 2024

 


De há uns tempos a esta parte, vem-se assistindo a uma vaga de “africanistas” que, por algum desconhecimento, distracção, ou, quiçá, interesses de natureza ideológica, têm reivindicado a pertença de Cabo Verde ao continente africano. Parece confundirem a opção geopolítica do Estado cabo-verdiano com a geologia, a geomorfologia, a geografia, a geoquímica, a geofísica e a oceanografia do arquipélago e do litoral do continente que lhe está mais próximo que caracterizam e definem as suas afinidades. Na verdade, todas as geociências que acabamos de elencar apresentam dados convincentes de que Cabo Verde não é África nem Europa.

Cabo Verde inclui-se, geograficamente, no grupo de ilhas – arquipélagos – que se estende entre os paralelos 15º e 40º Norte em frente ao continente africano que se denomina “Atlântida” ou “Macaronésia”. Desse grupo fazem parte os arquipélagos da Madeira, Selvagens, Canárias e Açores; e o mais próximo, de entre estes arquipélagos, do continente africano é o das “Canárias” que se situa a menos de escassos 100 Km da costa africana enquanto Cabo Verde entre 450 a 600 Km. 

Para melhor enquadramento geográfico de Cabo Verde não nos parece despiciendo referir que a plataforma continental – “continuação” submarina ou “parte submersa” do continente que envolve a África tem uma extensão média de apenas 25 Km e uma profundidade que, normalmente, não deve ultrapassar os 200 metros. A completar este raciocínio de individualização física do arquipélago em relação ao continente que lhe está mais próximo, será importante referir as batimétricas que circundam o arquipélago cabo-verdiano onde vamos encontrar profundidades da ordem dos 3500 metros, que constituem barreiras significativas de separação entre o arquipélago e o continente, barreiras estas que não podem ser consideradas apenas de natureza topográfica.

Dizer que Cabo Verde é, geograficamente, África, significa, rigorosamente, dizer que Açores, Madeira e Canárias são também África, uma vez que “são bem estreitas as afinidades biogeográficas” (Geógrafo e Investigador Francisco Tenreiro) entre eles.

Outra confusão que igualmente decorre dos “africanistas”, esta, parece-nos, de natureza estritamente ideológica, é a generalização, a nosso ver, abusiva, da inclusão de Cabo Verde no processo geral do colonialismo africano.

Antes de mais, não é subestimável, o ponto de partida. Primeiro, da ocupação do território; depois, do exercício efectivo do colonialismo europeu que se situa, com algum rigor histórico, a partir da Conferência de Berlim em 1885 – bem depois da instalação (1866) do Seminário-Liceu em S. Nicolau! – e não na data dos “descobrimentos dos caminhos marítimos” do século XV.

A maior parte dos estudiosos da colonização admite que ela só pode existir se houver população autóctone.

É consabido que Cabo Verde não era habitado aquando da chegada dos portugueses, et pour cause, são os seus primeiros habitantes. Era o que se designa na linguagem jurídica res nullius, o que leva alguns autores, designadamente António de Sousa em “Colonização Moderna e Descolonização” a defender que não se podia falar, com propriedade, de colonização, mas sim de povoamento, uma vez que à data dos descobrimentos, não tinham os territórios [da Macronésia] «nenhum povo autóctone nem nenhuma cultura indígena». Esta concepção, embora seja maioritariamente defendida, não é unânime dado que a questão de quem detém o poder, – político e económico – poderá ser fracturante na definição de colonização, admitem uns poucos. Não está em causa, neste momento, a abordagem deste contexto, que é deveras complexo e de configuração polémica.

O que acontece, é quase todos os estudiosos, os pensadores, deste assunto serem defensores de que toda a colonização implica, numa sequência directa: o descobrimento, a conquista, a ocupação e o povoamento.  Em Cabo Verde isto não aconteceu.

O que é pacífico, no nosso Arquipélago, é que tanto o branco europeu como o negro africano eram, à partida, “estrangeiros”, o que leva Amílcar Cabral, – o grande mentor dos africanistas cabo-verdianos – sem se ater aos problemas procedimentais e sociais envolvendo as relações dos ocupantes do território, a sentenciar em “Evolução e Perspectivas da Luta. Seminário de Quadros do PAIGC,” ao sintetizar a questão nos termos que a seguir transcrevemos:

Se pensarmos bem, se estudarmos bem o problema, vemos que os cabo-verdianos não são de Cabo Verde. [Como é?...] Se recuarmos muito (…) até 1600, por exemplo, 1500 e tal, 1400, vemos que Cabo Verde não tinha ninguém. Podia ser, por exemplo, que os suecos, nas suas viagens marítimas, se tivessem fixado lá. Hoje, Cabo Verde seria uma terra com gente de origem sueca. Aconteceu, porém, que os portugueses chegaram lá primeiro, mas não ocuparam tudo eles mesmos. Arranjaram escravos de África, principalmente, da Guiné e puseram lá esses escravos. Hoje, são esses os cabo-verdianos, descendentes de escravos africanos e de portugueses, os quais têm todo o direito à sua terra. Porque eles é que a fizeram com o suor do seu trabalho, embora sob a dominação dos tugas(O negrito é nosso)

Não está em causa o processo de miscigenação, ou de aculturação, que é quase sempre doloroso, e que não é nenhuma criação dos portugueses ou de qualquer outro povo, pois a “colonização é tão velha como a existência de agrupamentos humanos organizados” sendo-lhe inerente a natureza quase sempre conflitual. Mas a verdade nua e crua, no caso de Cabo Verde, é a miscigenação, os chamados «filhos da terra» que nascem do cruzamento e da aculturação mútua dos povoadores. Como dizem os anglo-saxónicos, o que interessa é, de facto, “the bottom-line”, os resultados finais.

Tendo em conta o processo de povoamento de Cabo Verde, muito diferente do das outras colónias, o “colonialismo” em Cabo Verde não era, nem podia ser igual ao das colónias continentais. Nestas, o processo foi conflituoso, turbulento, tormentoso, porque a ocupação foi feita pela força das armas, porque existia um povo que foi submetido e que resistia, enquanto em Cabo Verde a ocupação foi pacífica pelas razões óbvias, o que não significa que não tenham existido, posteriormente, episódicos focos de conflitos, quase sempre de carácter muito localizado e circunscrito, muitas vezes de natureza socio-laboral e, outras vezes, até, estritamente socio-económico, quase sempre no domínio agrário. É natural e compreensível, que em determinadas circunstâncias se tente hiperbolizar esses acontecimentos conferindo-lhes desmedida dimensão histórica. É isto, com outras envolvências, que se depreende do pensamento de Amílcar Cabral expresso na obra já citada, que a seguir transcrevemos:

«Mas temos que entender bem porque é que a situação era diferente em Cabo Verde. É porque Cabo Verde não foi uma terra conquistada como a Guiné, ou como Angola e Moçambique. Nestas colónias, os tugas tiveram que criar, imediatamente, uma situação para garantir que aqueles nativos contra os quais fizeram a guerra nunca mais se levantariam e dividiram o povo em indígenas e assimilados. Em Cabo Verde, não era preciso, as pessoas não eram de lá, não tinham vida organizada nas ilhas. Fizeram dela a sua terra, reproduziram-se, até dar a população de Cabo Verde. Os tugas adoptaram, portanto, uma outra política: todos são cidadãos». (O negrito é nosso)

Atente-se bem às conclusões de Amílcar Cabral e tenha-se algum cuidado na abordagem generalista do colonialismo português, – sem nunca esquecer a sua natureza abjecta e deplorável – designadamente e sobretudo, na aplicação do abominável “Acto Colonial” e da execrável lei do “Indigenato”.

Não é, por acaso que uma plêiade de distintos sociólogos e académicos que estudam a problemática da colonização nos diz que “aquele arquipélago [Cabo Verde] era, científica e tecnicamente, uma colónia sem colonização e sem colonialismo.”

Impõe-se, pois, uma outra abordagem, mais atenta, científica e demorada!...

A.   Ferreira

 

 

 

 

 

 

Made in Cabo Verde

quinta-feira, 7 de março de 2024

 Por José Pedro de Barros Duarte Fonseca*

Muito se tem falado de propriedade intelectual nos últimos tempos, para variar um pouco do futebol. Temos desenvolvido muito a proteção dos direitos de autor nas áreas musical, da literatura e do artesanato, mas muita coisa está por fazer na área das patentes e marcas.

As razões do falatório não são as mais felizes, pois trata-se da suspeita de plágio de um logotipo estrangeiro e possível apropriação inadequada do mesmo. Custa-me muito a crer que um assunto desta importância não tenha passado pelo crivo do Instituto da Qualidade, pelouro da área da propriedade intelectual em Cabo Verde. Este órgão do Ministério da Indústria e Energia tem de fazer uma busca internacional a esta marca nova antes de a aprovar.

Eles são, no fundo, os verdadeiros responsáveis se deixaram passar tal falha e por deixarem que se lance o logo sem que se tenha feito um pré-registo da marca. Portanto não nos podemos antecipar a qualquer pronunciamento deles e, acima de tudo, não nos podemos substituir aos tribunais especializados em litígios sobre marcas, patentes e modelos de utilidade e sair na praça pública a ditar sentenças sobre tão delicada matéria. Temos de ter todas as variáveis em jogo na mão antes de culpar seja quem for, nomeadamente se a outra marca ainda está protegida, se o dono a terá licenciado ou se se encontra no domínio público.

Haja mais tranquilidade e seriedade no culpabilizar seja quem for. Uma coisa é levantar a suspeita outra é substituirmo-nos aos tribunais. Quero defender o rigor e a isenção intelectual que vem faltando em algumas das publicações nas redes sociais.

Há duas grandes diferenças em termos de litígios de propriedade intelectual em patentes ou marcas. Nas patentes copia-se uma tecnologia ou processo, fabrica-se e tira-se vantagem económica dessa ação. Os tribunais estão cheios de processos litigiosos de propriedade intelectual, o mais icónico e estudado é o caso da Pepsi vs. Coca Cola, que acabam em chorudas indeminizações.

Eu próprio (e Cabo Verde) já fui vítima de roubo de uma patente de captação de energias das ondas do mar exposta na EXPO 98 em Lisboa. Este projeto foi desenvolvido no INIT na Praia nos anos 80 e 90, teve prémios internacionais em exposições de tecnologia na Suíça e Bélgica. Mais tarde foi roubado e desenvolvido pelos ingleses, belgas e brasileiros. E não há coincidências pois a empresa que aparece no Brasil a dizer-se promotora foi a Tractebel que tinha um representante no INIT, onde desenvolvemos a patente. Ninguém veio dizer nada em defesa dos interesses de Cabo Verde.

Isto é que acontece com as patentes em que os países desenvolvidos se apropriam dos frutos da inovação de países mais fracos e tiram proveito da sua propriedade intelectual. Esses países menos desenvolvidos também têm culpas pois não valorizam os esforços dos cientistas e intelectuais e eles acabam a sua vida na pobreza e com pensões de miséria. Mas sempre foi assim na história e aconteceu com grandes cientistas como Tesla ou Roberto Duarte Silva, entre muitos.

Hoje a Universidade Técnica do Atlântico está a criar condições para a implementação de uma cátedra dedicada ao vasto trabalho científico de Humberto Duarte Fonseca. Estas ações levam à atração dos jovens para a ciência e novas tecnologias e estimulam a inovação e criatividade.

Vejam o caso das energias renováveis onde os cientistas que registaram patentes e tiveram prémios e distinções internacionais logo a seguir á independência, como Humberto Duarte Fonseca, Ruy Spencer dos Santos ou eu próprio, não ocuparam lugares de dirigentes na Electra ou Cermi, nem no Instituto de Qualidade. Outros se vão aproveitar do trabalho pioneiro e de desbravamento de terrenos virgens.

O que nos vale é que a história se encarrega de repor a verdade e mais tarde ou mais cedo, anos depois da morte desses cientistas, aparecem praças, ruas e escolas com os seus nomes, enquanto que dos “diretores” ninguém se lembrará. No entanto esses lugares continuam a ser para os “boys” ou como se dizia no tempo do partido único, para os melhores filhos da terra, seja lá isso o que for.

Voltando ao tema de início desta comunicação, nas marcas basta que se use a forma de um logo, uma imagem ou uma palavra parecida existente numa marca e chama-se a isso prática decetiva ou concorrência desleal, com intuito de retirar vantagem económica dessa ação.

Quando o tribunal exige reparações elas são, em geral, financeiras. Por exemplo se eu criar uma marca toblertwo estou a fazer concorrência desleal ao toblerone e cabe a ele reclamar em tribunal. Casos interessantes de uso indevido de marcas, já que estamos a falar do chocolate toblerone é o uso de uma imagem das montanhas Matterhorn, que foi substituída pela linha de uma montanha mais comum, para não violar as regras estabelecidas pela Suíça sobre o uso de iconografia, depois de o proprietário da marca decidir transferir parte da produção do chocolate para fora do país.

De acordo com uma lei de 2017, o “Swissness Act”, só é permitido usar símbolos nacionais — como por exemplo a cruz branca sobre fundo vermelho — ou a designação made in Switzerland em produtos alimentares quando os ingredientes são exclusivamente, ou na sua maior parte, suíços (com algumas exceções quando não existem no país, caso do cacau, por exemplo). Ora, metade da produção da Toblerone vai passar para a Eslováquia — onde é feito outro chocolate, o Milka — como anunciou a empresa em junho do ano passado, e a “roupagem” do chocolate vai mesmo ter de mudar.

Em Cabo Verde temos o Monte Cara como símbolo nacional.

Sejamos francos e vamos ver que não é o mesmo com uma marca de turismo que copia o logo de uma lavandaria. Nem sequer são ramos concorrenciais. Talvez a lavandaria até se torne mais conhecida por isso. 

É indiscutível uma semelhança gritante entre os dois logos e tem de ser investigado em nome da honestidade intelectual, mas convenhamos que nas redes sociais o que se tem visto são conclusões precipitadas e um julgamento em praça pública com base em suposições quando o assunto é muito mais sério e complexo.

Para fechar gostaria de dizer que temos de falar bem dos nossos e valorizar estes novos tempos em que grandes médicos caboverdeanos brilham nos EUA, jovens investigadores descendentes de caboverdeanos criam empresas em start-ups que são vendidas à Google e cientistas e investigadores descendentes brilham na Europa e África. É aí que nos temos de focar e o governo tem a sua responsabilidade em acarinhar esses cientistas, atribuir nacionalidade e reconhecimento, para estimular outros jovens, senão vamos sair sempre a perder pois seremos roubados e os nossos projetos desenvolvidos em laboratórios e empresas estrangeiros. Ficamos só com a fama e nas medalhas e aclamações de futebolistas.

Para ilustrar este fenómeno queria aqui referir um grande projeto de Humberto Fonseca, o balizador tangencial Dina-Kate, abreviatura dos nomes dos seus pais, Leopoldina e Torquato. Esta tecnologia teve muitos e distintos prémios e menções honrosas internacionais. Trata-se de um sistema automático de navegação espacial, aérea, marítima ou terrestre que se baseia na traçagem de linhas virtuais no espaço que são descodificadas por um leitor, com base no efeito de Doppler. Assim um avião aterra em pleno nevoeiro ou bruma seca, um submarino se desvia de minas ou duas naves acoplam no espaço ou aterra na Lua.

Logo a seguir à apresentação do projeto os ingleses andaram atrás de Humberto Fonseca, foram insistentemente a Angola solicitar que ele cedesse a patente pois os aeroportos de Londres têm um problema frequente de nevoeiro. Humberto Fonseca não vendeu e argumentava que o seu invento era para Cabo Verde pois aqui também temos problemas de bruma seca. 

Acontece que o poder de quem tem a rainha de Inglaterra por trás era tal que a empresa inglesa Plessey Automatics, que mudou de nome tempos depois, acabou mesmo por, misteriosamente, conseguir o projeto e desenvolveu aquilo que hoje chamamos ILS. Um dia, ainda Humberto Fonseca era vivo, mas já bastante doente, apareceu na televisão a notícia que o aeroporto de Heathrow em Londres acabara de inaugurar um novo sistema de navegação aérea designado por KATE II, que tornava segura a aterragem com visibilidade deficiente.  Muito desplante.

Ironia do destino que tal tecnologia foi criada por um caboverdiano do Mindelo e que a ilha ande a mendigar pela instalação do sistema. Nos anos a seguir á independência Manuel Duarte ainda tentou levar uma ação ao tribunal de Haia, reivindicando a nossa autoria, mas em vão. Mascarenhas Monteiro atribuí-lhe a medalha de 1ª classe do Vulcão, a título póstumo.

O facto é que só os países em cujos cidadãos registaram, desenvolveram e foram premiados por frutos de propriedade intelectual endógena são admitidos na Organização Mundial do Comércio, como aconteceu com Cabo Verde nos anos 90, por sinal no mesmo dia que a China. Isto só mostra que os países não se medem aos palmos, mas sim pela capacidade intelectual dos seus cidadãos.

Em conclusão temos de admitir que nos temos destacado em inovação e criatividade no futebol, nas artes, na música e literatura, o que é ótimo para o desenvolvimento integral do cabo-verdiano. Também obtivemos, da independência até agora, grandes vitórias na educação, bem como no desenvolvimento de privilegiadas e sólidas relações internacionais que nos permitem ter uma economia avançada e um turismo florescente.

Resta-nos agora trabalhar a área da propriedade industrial. Falo com a autoridade de quem foi pioneiro na construção de modelos reduzidos e de ter feito os primeiros ensaios de laboratório de tecnologias de energia “made in Cabo Verde”. Não passei à fase de construção e teste de protótipos porque o país ainda não estava preparado. O facto dessas patentes já terem caído no domínio público passados 15 anos do seu registo, não quer dizer que não as possamos desenvolver, apesar de perdermos a exclusividade.

Se quisermos associar-nos a uma empresa africana ou chinesa e desenvolver o nosso projeto de energia das ondas do mar, por exemplo, temos todo o direito, sem sermos acusados de plagio. Em alguns casos a evolução dos materiais e tecnologias faz com que o produto seja ainda melhor que o original. O centro de gravidade dos próximos passos até sermos donos das nossas tecnologias serão as indústrias e as universidades.

Na universidade temos de mudar a mentalidade e deixar de as ver como locais onde se ganha bem dando 10 horas de aulas por semana. Há que fazer da universidade verdadeiros centros de inovação e investigação científica. Recentemente foi criada a Fundação para a Ciência e Tecnologia em Cabo Verde, grande iniciativa do governo nesse sentido. Assim chegaremos ao objetivo de pensar as tecnologias, construir modelos, ensaiá-los, construir protótipos, testá-los e introduzi-los no mercado. Essas novas tecnologias feitas em Cabo Verde devem, dentro do possível servir objetivos estratégicos nacionais como a energia, pescas e ambiente.

Se já alcançámos a categoria de país de desenvolvimento médio graças às nossas conquistas na educação, a chave para o desenvolvimento pleno reside na ciência e tecnologia. As ferramentas estão aí.

Mãos á obra

* Professor da UTA,  Ph.D. em Eng. Mecânica IST- Lisboa 2004. Pós-graduação (Patent attorney) em patentes, modelos industriais, marcas, concorrência desleal, contratos de licença de fabricação e transferência de tecnologia.  Uni. de Direito de Concord, EUA 1992.

 

Cabo Verde e São Tomé e Príncipe: Esquema de uma Evolução Conjunta & Acerca dos Arquipélagos Crioulo

domingo, 3 de março de 2024

                                 Breve Nota de Apresentação

 

«A doutrina segundo a qual o contacto das culturas negras com as europeias provoca o aparecimento de uma civilização nova baseia-se na ideia de que toda a civilização vive de empréstimos. E, daí, infere-se que a colonização, pondo em contacto duas civilizações diferentes, levará a civilização indígena a tomar elementos culturais à civilização do colonizador e que resultará desse casamento uma civilização nova, uma civilização mestiça. O erro de tal doutrina está em que ela repousa sobre a ilusão de que a colonização é um contacto de culturas como qualquer outro contacto e que nela todos os empréstimos se equivalem. A verdade é outra: o empréstimo só é válido quando ele é reequilibrado por um estado interior que o solicite e que em definitivo o integre no sujeito, o qual sujeito, assimilando esse elemento emprestado, o torna seu»

Aimé Césaire – Citado por Gabriel Mariano in “Do Funco ao Sobrado ou o Mundo que o Mulato Criou”


O artigo/ensaio que a seguir se “divulga”, retirado de “Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação” de autoria do insigne investigador Francisco Tenreiro é uma excelente introdução para o leitor interessado no conhecimento da génese, evolução e consolidação das sociedades cabo-verdiana e são-tomense desde os seus achamentos e povoamentos.

O autor começa por situar geograficamente Cabo Verde no seu espaço – oceânico – a que designa por, (transcrevemos) “grupo das Ilhas Atlântidas, [também conhecidas por Macaronésia] uma vez que com os arquipélagos dos Açores, Madeira, Selvagens e Canárias apresenta afinidades biogeográficas estreitas para logo a seguir afirmar: “Cabo Verde, limite meridional das Atlântidas, fronteiro a África, apresenta assim mais traços de semelhança com a Europa e os restantes arquipélagos do que propriamente com aquele continente [África]. (O negrito é nosso)

Francisco Tenreiro não fica por aqui na caracterização do arquipélago. Vai mais longe ao afirmar: “No arranjo dos campos, nas culturas minuciosas susceptíveis de serem cultivadas sempre que chova, no tipo de habitação e na pulverização da propriedade, vinca-se bem a expansão de um «estilo mediterrânico» que ali, no decorrer dos séculos, acabou por enraizar. (O negrito é nosso). Contudo, deixa bem claro que este estilo é um denominador comum do plano da ocupação das Ilhas Atlântidas dos inícios da expansão portuguesa e que se estendeu ao Brasil, Goa e, obviamente, a S. Tomé e Príncipe, mas com muito pouco sucesso.

Sobre S. Tomé e Príncipe diz que dado o tipo climático de carácter equatorial – vegetação densa e cursos de água permanentes – só “através de traços culturais poderão ser aparentados às ilhas Atlântidas”.

Com este pressuposto da ocupação dos dois arquipélagos em estudo que, mau grado essas ocupações terem sido feitas com uma diferença de mais de 20 anos, respeitaram a um mesmo plano de povoamento e fixação e tiveram efeitos muito semelhantes durante alguns anos. Este paralelismo da evolução das sociedades dos dois arquipélagos que se manteve até o primeiro quartel do século XIX sofre uma descontinuidade em que S. Tomé muda de paradigma de desenvolvimento dando lugar a um outro tipo de sociedade, enquanto Cabo Verde continua o seu caminho. O ponto de “divergência” ou de afastamento, é explicado com muita clareza, com uma argumentação simples, mas rigorosa e bem fundamentada. O momento histórico que separa a evolução paralela e idêntica das duas sociedades situa-o, o autor do ensaio – Dr. Francisco Tenreiro  – em 1820,  aparecimento em S. Tomé da cultura do café e 1822 da do cacau, sem contudo deixar de explicitar que “desde a segunda metade do século XVII que S. Tomé e Cabo Verde entrariam em declínio” isto é, quando o nordeste brasileiro se lançou na plantação da cana do açúcar e o algodão da ilha do Fogo, se mostrou, por si só, insuficiente para sustar a queda da economia do Arquipélago.

Para superar a longa crise que desde século XVII assolava os dois arquipélagos, S. Tomé que tinha condições climáticas excelentes para o cultivo do café e do cacau introduz a cultura destes dois produtos altamente rendosos, mas exigentes de uma mão de obra intensiva mudando deste modo a sua estrutura agrária para grandes plantações – exploração do tipo capitalista – e a sua estrutura social com “novos colonos” com outra mentalidade e outra postura e a vinda de um novo surto de escravos, mais tarde, “serviçais”. É o ponto de viragem – estagnação do processo da miscigenação, isto é, cessação da interpenetração social, de quando “as relações entre a sanzala e o sobrado dos brancos eram então mais aconchegadas” – em S. Tomé dando lugar, de acordo com o autor, a “uma sociedade «plural» vários grupos com vida cultural própria, cujos padrões dificilmente transbordam de um grupo para outro; para um lado os nativos ou crioulos (também chamados «filhos da terra»), descendentes das velhas famílias anteriores ao advento do surto capitalista; para outro, serviçais, população flutuante que de Angola, Moçambique e até de Cabo Verde ali vão trabalhar por período limitado de anos; e ainda o grupo europeu, pouco numeroso, constituído por indivíduos que ou ocupam os altos postos da burocracia ou dirigem ou possuem grandes propriedades.” E mais adiante, perante esta estrutura social, o autor diz-nos, de forma peremptória: “Estamos sim, em face de uma estrutura social complexa, de classes raciais,…”

A mestiçagem considerada por Francisco Tenreiro como resultante de um dos pontos do “Plano da ocupação e fixação das Ilhas” cedo teve início por aquilo que ele designou de “tolerância rácica” e que, ainda segundo ele, “se traduziu num processo acelerado de mestiçagem;”. Na verdade, não só se verificou a tolerância rácica como houve, no caso de Cabo Verde, orientações precisas da sua incentivação quando “são os próprios Reis que recomendam, a fim de as ilhas se povoarem, que os homens brancos e sem família «tomem de suas escravas uma»".

A abordagem do processo de desenvolvimento e mestiçagem das ilhas do Oceano Atlântico é retomada, ainda nesta brochura, como um certo complemento do ensaio que vimos apresentando com um texto do mesmo autor intituladoAcerca dos Arquipélagos Crioulos”, com uma abrangência que pretende cobrir as principais ilhas do Atlântico. Compara a população de cada uma das ilhas, a geografia e o tipo de ocupação e desenvolvimento de uma forma mais física do que cultural sem, de todo, abdicar desta particularidade. E é o próprio autor que nos alerta para a natureza da abordagem quando diz:Repare-se, porém, que se está em presença da generalização «fisionómica» que despreza os processos aculturativos a que as populações arribaram nas diferentes ilhas.”  

Acerca de S. Tomé e Cabo Verde volta a concluir: “Seja como for, o arquipélago de Cabo Verde e as ilhas de São Tomé e Príncipe são «familiares» graças a um passado de colonização que, por comum, levou à constituição de uma sociedade crioula peculiar.”

Essa “sociedade crioula” mestiçagem merece-nos uma referência, se não mais profunda, pelo menos um pouco mais clara – génese e desenvolvimento – uma vez que se trata de um tema que vem sendo objecto de alguma atenção alargada, e que, de certa forma, bole com a nossa identidade, a nossa cabo-verdianidade, merecendo, deste modo, particular cuidado a sua evolução e estabilização.

Encimamos esta nossa apresentação com uma “tese” de Aimé Césaire sobre o tema, apresentado no ensaio «Culture et Colonisation» no “Primeiro Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros” em Paris (Sorbonne) em 1956. Trata-se de uma formulação generalista que não teve em consideração as particularidades de cada território e que, sendo tomada à letra significa, do ponto de vista de Gabriel Mariano que, “a colonização falhou como possível instrumento de criação em África de uma cultura mestiça” uma vez que é o próprio A. Césaire a concluir que “a colonização tem provocado não uma harmonização, mas antes uma justaposição de culturas”.

Segundo Nietzsche, «cultura é, antes de mais nada, a unidade do estilo artístico em todas as manifestações vitais de um povo». E de acordo com G. Mariano, ela é sempre uma expressão unitária e homogénea de elementos [heterogéneos] que se harmonizam e se revelam depois sem conflitos e sem desajustamentos na sua dinâmica mais íntima. Mas o fundamental, ainda segundo G. Mariano, é que esses elementos heterogéneos sejam «sentidos interiormente como uma unidade».

Debruçando com alguma atenção sobre a tese de A. Césaire verificamos que ela tem subjacente uma cultura nativa ou indígena preexistente que resistirá à do colono criando mecanismos de rejeição. É uma tese que de certa forma está impregnada de uma certa ideologia.

Não é, nos seus fundamentos, seguramente, o caso de Cabo Verde em que o colono e o colonizado se encontram, culturalmente, numa posição equivalente. Tanto mais, tendo em conta que os negros felupes, jalofos, balantas, papeis e bijagós entre outros não constituem, à partida, uma ‘comunidade cultural’, mas sim, apenas, rácica. E é isto que leva G. Mariano a afirmar que “em Cabo Verde “o processo aculturativo desabrochou no florescimento de expressões novas de cultura, mestiças «desde as suas origens mais remota»; que no arquipélago puderam o negro e o mulato apropriar-se de elementos de civilização europeia e senti-los como seus próprios, interiorizando-os e despojando-os das suas particularidades contingentes ou meramente específicas do europeu.” (o negrito é nosso) A este respeito, Alberto Carvalho no seu prefácio à obra “Cultura Caboverdeana – ensaios” de Gabriel Mariano, corroborando F. Tenreiro quando este afirma que “a forma ampla como se planeia o povoamento, cedo se desencadeia a mestiçagem, e com a troca de sangues a troca também de padrões culturais”, acrescenta:Enquanto prosseguia a miscigenação sanguínea que gerava o crioulo biológico, em crescimento progressivo e em continuado acesso à posse de bens materiais, negros e brancos todos se iam transformando em crioulos culturais. (O negrito é nosso) Por isso, G. Mariano – ainda de acordo com A. Carvalho – pôde afirmar que “o mestiço protagonizou em Cabo Verde o papel dinamizador que, nas Áfricas, pertenceu ao português e, no Brasil, ao reinol. Isto, na esteira do que F. Tenreiro já havia concluído neste seu ensaio: Porém, em nenhuma outra parcela do território português ultramarino, o homem, fruto de um caldeamento de raças e instituições, soube encontrar o «seu caminho» como em Cabo Verde.”

 Parece-nos pertinente, registar que este “caminho” não foi resultado de uma planificação, ou de actos de governação, mas de condicionalismos e circunstâncias várias, de onde se destacam, a escassez de condições agrícolas – terra e regime de chuvas – que terá desencorajado a emigração intensiva de colonos europeus bem como a instalação do sistema de monocultura com a introdução de grandes plantações exigindo mão de obra intensiva; forte mestiçagem devida à falta de mulheres brancas, a que se junta a moral sexual do português; o isolamento e a reduzida dimensão “quase familiar” das ilhas; e, para culminar, “um certo abandono administrativo a que as ilhas foram votadas durante algum tempo”. A tudo isto se deve juntar de acordo com o investigador/sociólogo João Lopes, “as secas e os ataques dos piratas, levando brancos, negros e mulatos, a embalar fraternalmente a trouxa e a procurar refúgio no interior das ilhas.” facilitando deste modo o desenvolvimento da chamada “democracia étnica e social”. (O negrito é nosso)

Mas a miscigenação e a ascensão social do negro e do mulato não foram feitas em todas as ilhas com a mesma velocidade. Em S. Tiago onde prevalecia o “latifúndio” e consequentemente o morgadio e o engenho, a mestiçagem era a mais reduzida do Arquipélago, mais precisamente, chegou a ser a única ilha onde a percentagem de mestiços não era maioritária. Em todas as outras ilhas, designadamente as de Barlavento, o mestiço era maioritário e praticava-se o minifúndio – pequenas propriedades, do tipo hortas e jardins – e o mestiço já era maioritário e as relações entre o dono da propriedade e os serviçais eram muito estreitas assumindo, por vezes, configuração “familiar”.  As propriedades eram tão pequenas que se dizia – Investigador João Lopes numa feliz imagem – que mal se podia. “abrir os braços para não atingir o vizinho.” Deve-se aqui ter em conta a “mobilidade vertical” fruto da democracia social e étnica que permite ou faculta um certo trânsito de indivíduos ou famílias na escala hierárquica social, o que faz com que qualquer indivíduo durante a sua vida possa pertencer a diversas classes (escalões) sociais independentemente da cor da sua pele ou das circunstâncias do seu nascimento.

Segundo Baltazar Lopes da Silva “esta mobilidade vertical tirou em Cabo Verde qualquer sentido ou conceito de raça. Assim a “gente branca” tão corriqueira no arquipélago, não significa gente etnicamente branca, mas sim gente que ocupa bons lugares na escala social.”

É oportuno aqui salientar que a verdadeira ascensão do negro e do mestiço fez-se pela via da actividade mercantil, económica, que se acentuava à medida que se tornava cada vez mais difícil a sustentação do regime de  “escravaria”. E, com a ascensão económica adveio a aristocratização intelectual, que se tornou num elemento muito importante da sociedade que se consolidava e se estabilizava no Arquipélago.

Sobre a aristocratização intelectual, seria bom aqui fazer referência ao papel da igreja no ensino e na educação das crianças antes do aparecimento da Escola pública e do Seminário-Liceu em 1866. A este propósito – aristocratização intelectual – temos as célebres observações já conhecidas do padre António Vieira numa carta dirigida ao padre António Fernandes, confessor do Príncipe D. Teodósio, em 1652, aquando da sua estadia em Cabo Verde – 20 a 26 de Dezembro de 1652 – mais precisamente, na então Vila da Ribeira Grande que dizia:

Há aqui clérigos e cónegos tão negros como azeviche, mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer inveja aos que lá vemos nas nossas catedrais.” (o negrito é nosso)

Esta observação é deveras importante porque já no séc. XVII – muito antes da abolição da escravatura – a aristocratização intelectual já se afirmava não só no conhecimento como também na música, como bem se referiu o padre António Vieira que também se aludiu ao Arquipélago como terreno propício à aceitação e interiorização do cristianismo através das palavras nessa já citada carta que a seguir transcrevemos:

e todas elas [Ilhas] estão em extrema necessidade espiritual; porque não há religiosos de nenhuma religião que as cultivem, e os párocos são mui poucos e mui pouco zelosos, sendo o natural da gente o mais disposto que há, entre todas as nações das novas conquistas (*), para se imprimir neles tudo o que lhes ensinarem.  São todos pretos, mas somente neste acidente se distinguem dos Europeus.  Têm grande juízo e habilidade, e toda a política que cabe em gente sem fé e sem muitas riquezas, que vem a ser o que ensina a natureza. (O negrito é nosso). Assim crescia a nação cabo-verdiana mestiça de matriz cultural preponderantemente europeu, rumo a consolidação e estabilização.

Desta forma, quando, nos anos 50 do século passado a elite africana das colónias portuguesas vivendo em Portugal toma a consciência que desconhece a sua terra de origem, a língua dos seus ascendentes, a história e a cultura dos mesmos, lança-se à procura das suas fontes, das suas raízes, da sua identidade perdida algures no cruzamento da história que os liga aos colonizadores fazendo apelo ao que chamam reafricanização dos espíritos. A reafricanização dos espíritos outra coisa não era do que quebrar a “máscara branca”, expressão utilizada por F. Fannon para simbolizar a “alienação” provocada pelo colonialismo.

Não obstante algumas dúvidas levantadas quanto à posição de Cabo Verde sobre o assunto, parece-nos que só por solidariedade ou por calculismos ideológicos poderá constituir-se num dilema para os cabo-verdianos.

E este dilema, a nosso ver, foi resolvido com simplicidade e pragmatismo por Baltazar Lopes da Silva (Prefácio para “A Aventura Crioula” de Manuel Ferreira – Lisboa – Plátano,1985) da maneira que assim transcrevemos:

“Tenho por mim que, de forma expressa ou de maneira latente, se tem geralmente posto o “problema” de Cabo Verde (quando nele se pensa) em termos erradamente dilemáticos: há que optar, para a “definição” do “problema” por um de dois termos irredutíveis: Europa ou África.

Sim, porque nos dizem, a nós das ilhas:

Se vocês “não são de África”, o que é que são?  Europa?

Ou, inversamente, mas creio que muito mais raramente:

Se “não são Europa”, o que são?  África?

Claro que a mesa assim posta não deixa liberdade nenhuma ao conviva, que possivelmente se retrairá de anunciar a única verdade etnológica:

Nem uma coisa, nem outra, somos cabo-verdianos.

Na verdade, o cabo-verdiano nunca andou à procura das suas raízes. Elas eram evidentes: Fruto da aculturação e do renascimento de novas expressões de cultura, mestiça “desde a sua origem mais remota”, que o negro e o mulato se apropriaram da civilização europeia adaptando-as ao despojá-las das suas especificidades e particularidades europeias, interiorizando-as, passando deste modo a senti-las como suas pertenças. Não tinha saudades nem das grandes florestas africanas que nunca conheceu nem dos grandes monumentos e centros urbanos que também ignorava. Parafraseando G. Mariano, tinha a sua língua falada por todos; o seu folclore poético, musical e novelístico; a sua culinária; os seus motivos de recreio; o seu folclore das advinhas, dos provérbios; os seus festejos populares; as suas superstições, hábitos, esquemas de comportamento.

E quando as elites africanas das colónias portuguesas lançaram mão, na esteira de Aimé Césaire, Leopold Senghor e Cheik Anta Diop de afirmação de uma literatura própria através do movimento literário “Negritude”, em 1952, com o lançamento de «Os Cadernos da Poesia Negra de Expressão Portuguesa»” por Francisco Tenreiro e Mário de Andrade, já Cabo Verde «tinha fincado os pés na terra» com o lançamento – 1936 – do “Movimento Claridade” autonomizando, “nacionalizando”, a sua literatura – romance, poesia, contos, ensaio – tratando os problemas específicos de Cabo Verde não à procura das suas raízes mas, sincronizando e sintonizando com esses problemas.

Não temos, pois, de procurar as nossas raízes nem em África nem na Europa porque “Nós Somos as Nossas Raízes”.

A leitura dos Ensaios de Francisco Tenreiro é bastante elucidativa a este propósito e, por isso, parece-nos oportuna a sua divulgação.

A. Ferreira

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Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe:

esquema de uma evolução conjunta

Pelo Dr. Francisco Tenreiro

É costume ao estudar-se o arquipélago considerá-lo dentro do grupo das Ilhas Atlântidas, uma vez que que com os arquipélagos dos Açores, Madeira, Selvagens e Canárias apresenta afinidades biogeográficas estreitas1. De facto, apesar das diferenças climáticas que distinguem e dão feição particular a cada arquipélago, por todos eles é possível encontrar plantas comuns ao Mediterrâneo ou à Europa oceânica que lhes imprimem tonalidade semelhante. Cabo Verde limite meridional das Atlântidas, fronteiro a África, apresenta assim mais traços de semelhança com a Europa e os restantes arquipélagos do que propriamente com aquele continente [África]. De África recebeu Cabo Verde algumas plantas do Sul do Saará e da floresta tropical; e, em certo período do ano, também de lá vem o bafo do harmatan, que instala a aridez pelas vertentes das Ilhas já de si escalvadas. É isso, talvez, que leva o turista a julgar-se em terra tipicamente africana; isso e o tom geral, negro das suas populações. Será preciso descer ao fundo dos vales que as ilhas escondem, para que ressalte a pátina euro-atlântica que os olhos se acostumaram a notar nos arquipélagos situados mais a norte. Até mesmo as populações podem surpreender o observador desprevenido. Se a tonalidade de pele é escura, as relações que os homens mantêm com a terra fazem lembrar aquelas outras que os camponeses de Mediterrâneo estabeleceram com o solo que cultivam.

No arranjo dos campos, nas culturas minuciosas susceptíveis de serem cultivadas sempre que chova, no tipo de habitação e na pulverização da propriedade, vinca-se bem a expansão de um «estilo mediterrânico» que ali, no decorrer dos séculos, acabou por enraizar. É claro que este estilo à escala mediterrânica tem alicerces no início da expansão portuguesa. É um denominador comum de todas as ilhas Atlântidas, donde como que transbordou para algumas regiões do Brasil e para Goa, fundamentalmente.

Nas ilhas de S. Tomé e Príncipe a ocupação seguiu ritmo idêntico que só em época recente seria substituído por outro, que hoje confere a estas ilhas características originais que as individualizam. Com tipo climático e regime de chuvas quase equatorial, estas ilhas de vegetação densa e de cursos de água que nunca secam, só através dos traços culturais poderão ser aparentados às ilhas Atlântidas. Só no ritmo cultural inicial, ligado à expressão portuguesa, se podem encontrar os elementos de semelhança que importa considerar.

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A ocupação destes dois territórios faz-se com a diferença de vinte e cinco anos.2 Porém, o plano que preside ao povoamento apresenta bases comuns e que se podem sintetizar em alguns pontos: – plano de colonização que visava ao povoamento e fixação, o mais rápido possível, de moradores nas ilhas a que logo se seguiu a introdução de escravos negros; tolerância rácica que se traduziu num processo acelerado de mestiçagem; oscilação económica entre a tendência para um mercantilismo baseado em culturas rendosas e a do desenvolvimento de uma agricultura minuciosa e de subsistência à escala portuguesa; transplantação para os trópicos de sistema de trabalhar a terra e de arranjar os campos segundo os padrões portugueses; tentativa subsequente de introdução de plantas alimentares do Mediterrâneo; introdução de plantas alimentares oriundas de outras regiões do globo que permitiram o desenvolvimento de populações numerosas3; adaptação às condições do ambiente de um tipo de habitação extra-tropical (casa quadrangular); cultivo de plantas comerciais que desenvolveram ciclos económicos que se resolveram em soluções sociológicas idênticas por toda a parte – na Madeira e nos Açores, em Cabo Verde e em S. Tomé, como também no nordeste do Brasil.

Em algumas das recomendações entregues aos primeiros donatários e nas muitas mercês que os primeiros moradores recebem dos Reis de Portugal, estamos em presença de uma vontade esclarecida, norteada pela ideia de colonizar dentro das normas culturais tradicionais metropolitanas. O surto inicial do processo da colonização é do tipo «dirigido», se bem que acientífico por desconhecimento das realidades da natureza daquelas paragens. É assim que se tenta na Ilha de S. Tomé a aclimatação do trigo e da vinha, de árvores como a oliveira, o pessegueiro, e a amendoeira que embora crescendo nunca chegavam a dar fruto; também para Santiago se leva a maioria das plantas do Mediterrâneo, que dadas as condições de clima, mais favorável, chegam a frutificar. Na Ilha do Fogo, por exemplo, é possível encontrar hoje várias árvores de fruto, como a figueira, a alfarrobeira, a macieira, o marmeleiro e a romanzeira; e ainda várias hortaliças e plantas aromáticas de Portugal.4

Facto de maior transcendência social foi a introdução das culturas da cana-de-açúcar e do algodão. Aquela, traço comum a S. Tomé e a Cabo Verde, de origem exótica e que os árabes teriam possivelmente cultivado já no sul de Espanha, e que daqui ou da Sicília foi trazida para Portugal, chegou a cultivar-se no século XIV no Algarve e nos campos do Mondego. Por vontade do Infante Dom Henrique foi levada para a Madeira e daí terá irradiado para os Açores, Cabo Verde e S. Tomé. «Mestres» de açúcar madeirenses vêm estabelecer-se em Cabo Verde, onde a cana foi levada para S. Tiago, e em S. Tomé. Das margens dos ribeiros de maior caudal, não longe dos trapiches e dos alambiques, se evolaria o cheiro pesado do melaço. Tanto a cana do açúcar como o algodão, plantado especialmente na Ilha do Fogo5, exigiam uma mão de obra numerosa; por causa delas tomaria incremento a fixação de escravos.

Levados para todos os arquipélagos, deles não há hoje mais do que ténues vestígios nas ilhas da Madeira e nos Açores, ao contrário do que acontece em Cabo Verde e em S. Tomé. É esta forte cor africana, que se liga a um processo económico e sociológico, um dos elos que mais estreita estes dois arquipélagos.

Para Cabo Verde vão os negros das regiões da Guiné, felupes, jalofos, balantas, papeis, e bijagós e para S. Tomé gente do Benin, do Congo, Gabão e Angola, pontos costeiros que lhes ficavam mais próximo. Dada a escassez de moradores e a forma ampla como se planeia o povoamento, cedo se desencadeia a mestiçagem, e com a troca de sangues a troca também de padrões culturais. Por vezes até são os próprios Reis que recomendam, a fim de as ilhas se povoarem, que os homens brancos e sem família «tomem de suas escravas uma»6 A população crioula desenvolve-se assim; as mulheres negras adoçam as arestas de uma desigualdade de condições sociais, entre brancos e negros, e de um regime retintamente de escravidão se passa a um regime de servidão.7 O servo se bem que limitado, pode já participar como parte consciente, isto é, como colono, da evolução económica das ilhas. Em Cabo Verde e em S. Tomé os grupos desgarrados de africanos aceitam o catolicismo e criarão um linguajar, fluente e rico, que perdurará até os nossos dias – fenómenos complexos de «aculturação» que, no primeiro caso traduzem uma «aceitação» e no segundo como que um tipo especial de «sincretismo»8.

Nesta nova situação irá o africano estimular, ou mesmo fomentar a policultura, por oposição à tendência monocultural do açúcar e do algodão; serão eles os iniciadores nas ilhas daquelas poucas culturas de plantas africanas que hoje por lá se encontram: o milho zaburro, o fundo, o inhame e possivelmente o feijão congo e a mancarra9

As relações entre a sanzala e o sobrado dos brancos era então mais aconchegada do que é hoje a estabelecida entre a sanzala dos serviçais e a casa da administração das roças de S. Tomé.

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A história sociológica dos dois arquipélagos, embora levemente desfasada, apresenta aspectos e vicissitudes idênticas até meados do século XIX. Desde a segunda metade do século XVII que S. Tomé e Cabo Verde entrariam em declínio. A prosperidade do açúcar que ajudou a criação da sociedade crioula entrou no seu ocaso logo que o nordeste brasileiro se lançou à plantação da cana. Só por si o algodão, que da Ilha do Fogo se chegou a exportar para as Canárias, e os rudimentos episódicos da urzela10 e do sal, não foram suficientes para obstar a decadência. O mesmo não se poderá dizer do tráfico da escravatura que se continuou até meados do século XIX.

As questões de ordem particular a cada arquipélago são elementos, que embora de considerar, não são relevantes perante dois factos fundamentais: a dominação dos Felipes e o desvio dos interesses portugueses para o Brasil, com o sacrifício de todas as possessões portuguesas em África. Em contrapartida, estabelecer-se-iam relações entre os arquipélagos e aquela outra Ilha Grande, na expressão curiosa, diria mesmo sociológica, de Ribeiro Couto. De S. Tomé emigram os primeiros proprietários de canaviais, que levam consigo os alambiques e até as telhas dos engenhos. Mais tarde, as relações estreitar-se-iam e todas as famílias ilustres de S. Tomé se orgulhariam de ter filho preto ou mulato ordenado padre na Baía. Em Cabo Verde, território que já devia ao Brasil a planta base da alimentação das suas populações o milho maiz –, fenómenos semelhantes se passariam.

Entretanto, abandonadas sobre si próprias, as populações vivem quer assediadas pela pirataria desenfreada do século XVII, quer enrodilhadas em lutas internas de mando, numa anarquia de que se têm relatos muito circunstanciados se bem que enfadonhos.

Seja como for, é dessa sociedade anárquica de há pouco mais de cem anos que a pouco e pouco emerge a estrutura social de Cabo Verde de nossos dias. Sociedade que na maioria dos seus traços evidencia ainda o surto colonizador português dos séculos XV e XVI. Pela leitura de três belas páginas de H. Teixeira de Sousa publicadas na Revista Claridade, poderá verificar-se que o processo de estabilização ainda não terminou11. Porém, em nenhuma outra parcela do território português ultramarino, o homem, fruto de um caldeamento de raças e instituições, soube encontrar o «seu caminho» como em Cabo Verde. Basta para tanto só pensar no movimento literário da Claridade, nos poetas, contistas e romancistas de mérito que nos deu já… Nem mesmo as fomes grandes, que desde o século XVIII e por todo o século XIX assolaram as ilhas, conseguiram quebrantar o homem crioulo, roubando-lhe as energias para adaptação ao meio áspero das suas ilhas.

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Em S. Tomé, a resolução deste longo período de crise tomaria outro rumo, dependente da introdução das culturas do café (1820) e do cacau (1822).

Descobertas as condições climáticas excelentes para aquelas culturas, novo surto de colonos portugueses chega às ilhas do Golfo da Guiné: a mentalidade destes homens é agora outra e opõe-se à dos homens de quinhentos e seiscentos. Lançam-se as bases das grandes explorações agrícolas do tipo capitalista, retalha-se na terra o mosaico das grandes propriedades, quantas vezes usurpadas de forma menos digna aos seus legítimos proprietários: aquelas muitas famílias, mais ou menos mestiçadas, oriundas dos primeiros colonizadores brancos e negros. Novos trabalhadores são recrutados em África; entram ainda como escravos e mais tarde na condição de contratados (serviçais); e, a par de todas as perturbações e dificuldades criadas com a abolição da escravatura, as roças de S. Tomé progridem em detrimento de uma sociedade crioula e numerosa, tornada desinteressada por um trabalho que, para a sua maneira de ver, cheirava ainda ao suor dos negros do tempo da escravaria. O ritmo evolutivo, já de si periclitante, da sociedade crioula de S. Tomé como que para.

Hoje, a estrutura social da ilha é o de uma sociedade «plural» – vários grupos com vida cultural própria, cujos padrões dificilmente transbordam de um grupo para outro; para um lado os nativos ou crioulos (também chamados «filhos da terra»), descendentes das velhas famílias anteriores ao advento do surto capitalista; para outro, serviçais, população flutuante que de Angola, Moçambique e até de Cabo Verde ali vão trabalhar por período limitado de anos; e ainda o grupo europeu, pouco numeroso, constituído por indivíduos que ou ocupam os altos postos da burocracia ou dirigem ou possuem grandes propriedades12. Numericamente superiores, os filhos da terra têm uma vida marginal; só uma pequena percentagem está ainda de posse de minúsculas propriedades ou ocupa lugares de relativo relevo na burocracia local.

Eis o que a este respeito nos diz um observador meticuloso como Orlando Ribeiro: «Em Dezembro de 1951, na cidade de S. Tomé, assistimos a um desafio de foot-ball entre… brancos e pretos: estes jogavam melhor mas com timidez; numa procissão na festa do padroeiro da cidade, incorporaram-se apenas pretos e mulatos; uma senhora branca acreditava que os seus criados negros sujavam as coisas em que tocavam com uma espécie de suor que tinham nas mãos!; e lamentava que, nas numerosas festas da cidade, aparecessem, misturadas com a gente branca, senhoras de cor, naturais da ilha e casadas com europeus»:

A excepção do depoimento da senhora branca («branco fino» como dirão os naturais de S. Tomé com ironia) cujas afirmações escapam a qualquer tipo de classificação, os dois primeiros exemplos são na realidade relevantes, e ilustram bem quanto os diferentes grupos sociais se individualizam sob o ponto de vista da cultura. Não estamos aqui, porém, perante um mero e simples caso de racismo.

Estamos sim, em face de uma estrutura social complexa, de classes raciais, algo de comparável com o que se passa em certos meios rurais do Brasil13

Como é diferente esta estrutura da de Cabo Verde, mesmo quando se possam apontar casos como aquela cena de pancadaria, entre «mulatos» e «mestiços» em dia de procissão, na ilha do Fogo, vai para mais de vinte anos!14

Estas estruturas tão diferenciadas são reflexos de organizações diversas: em Cabo Verde, predomínio da policultura de subsistência sobre as culturas altamente rendosas; predomínio da pequena propriedade em oposição à propriedade gigante (a Roça) das ilhas de S. Tomé e Príncipe15. Em Cabo Verde, a estrutura contemporânea assenta em bases que evoluíram do seculo XVI até a actualidade – o campo das ilhas é uma réplica do campo português; em S. Tomé, criou-se a plantação, algo de original e artificial – nem português nem africano.

Cabo Verde é, sem dúvida, o limite sul da transplantação da cultura portuguesa nos arquipélagos. Estamos em presença de uma «adjacência» que resultou muito mais da irradiação da cultura portuguesa, em bloco, para o arquipélago, do que propriamente de um processo lento de assimilação.

Em S. Tomé, pelo contrário, vicissitudes históricas e económicas imprimiram na segunda metade do século XIX um rumo diferente ao das outras ilhas portuguesas no Atlântico. Mais do que diferenças climáticas ou de ambiente, foi a vontade dos homens que talhou o seu destino e fizeram destas ilhas um caso à parte, original, entre todas as províncias ultramarinas portuguesas.

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Ao tentar esboçar a evolução conjunta dos arquipélagos de Cabo Verde e de S. Tomé e Príncipe tive por bem sacrificar pormenores referentes a cada ilha de per si. O desenvolvimento da ocupação portuguesa nas ilhas de Cabo Verde fez-se por surtos, que aliados às condições fisiográficas e climáticas próprias a cada uma delas, lhes confere especializações e paisagens culturais diferentes. A ilha de santiago, a primeira a ser ocupada, e de certa maneira a ilha do Fogo, foram as que nos serviram de base a estas reflexões. S. Tomé e Príncipe, salvo vicissitudes históricas de pouca curiosidade para o caso, tiveram evolução conjunta. Só assim era possível, sem o perigo de desvios de mera erudição, esquematizar as vigas mestras das estruturas dos dois arquipélagos. Em trabalho futuro, de maior fôlego, deverá, no entanto, ser considerada a diversidade «fisionómica» de todas as ilhas. Para tanto, será necessário que à semelhança do que o Prof. Orlando Ribeiro acaba de fazer para a ilha do Fogo, se elaborem as monografias das restantes ilhas crioulas.

 

Dezembro de 1955

 

In “Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação” Nº 76 de 1 de Janeiro de 1956

 

A N O T A Ç Õ E S

 

1 Ilhas Atlântidas - arquipélagos que no Atlântico, e em frente ao «Velho Mundo» se estendem entre 15 e 40, de latitude norte.

2 As ilhas de Cabo Verde foram descobertas desde 1460 a 1462. Possivelmente por duas vezes. O primeiro núcleo de povoadores chegou à ilha de Santiago em 1461. A ilha de S. Tomé descoberta em 1471, recebeu os primeiros colonos depois de 1485.

3 Algumas plantas que teriam papel predominante no desenvolvimento das populações: o milho maiz e a mandioca, introduzidos do Brasil; a batata-doce e algumas espécies de feijão e favas, do Oriente.

4 Orlando Ribeiro – A Ilha do Fogo e as suas erupções. (trabalho no prelo)

5 Dada a topografia da Ilha do Fogo, os ribeiros, sem fundos largos, não se prestavam à cultura da cana sacarina. O Fogo especializa-se assim, ao contrário de Santiago, na cultura do algodão.

6 Em contrapartida, no século XVII, pretende-se extinguir a «raça dos mulatos», degredando-se para Cabo Verde, as mulheres de Portugal que se costumavam mandar para o Brasil. Em 1620 o número crescente de mestiços supunha-se ser a causa do declínio das ilhas…

7 Isto nada tem que ver com a continuação do tráfico da escravatura; é precisamente o tráfico uma das poucas fontes de receita quando a prosperidade dos arquipélagos entra em crise. Há pois, que imaginar uma sociedade complexa, onde brancos e mulatos se dedicavam ao tráfico, onde alguns dos negros excravos se transformariam em servos enquanto outros «armazenados» aguardariam o embarque para outros pontos do mundo necessitados dos seus braços.

8 Ver acerca de dialectos crioulos os excelentes artigos de Baltazar Lopes publicados na revista Claridade (Uma experiência românica nos trópicos)

9 Francisco Tenreiro: Descrição da ilha de S. Tomé no século XVI in Garcia de Horta, 1.53

10 Em 1469 inicia-se o comércio da urzela, descoberta em Santiago por dois negociantes de Sevilha.

11 Henrique Teixeira de Sousa: Estrutura social da Ilha do Fogo em 1940 in Revista Claridade

12 Francisco Tenreiro: A agricultura na Ilha de S. Tomé, etc. 1952

13 Ver Ch. Wagley  e outros: Race et Classes dans le Brésil rural. Unesco s/d

14 H. Teixeira de Sousa, ob. Cit.

15 É certo que na ilha do Fogo a cultura rica do café foi também introduzida nos primeiros anos do século XIX (parece que teria sido cultivado, pela primeira vez, na ilha de S. Nicolau nos últimos anos do século XVIII). Esta cultura vem adaptar-se a estrutura rural, já tradicional, da ilha. É ao contrário do que se passa em S. tomé, uma cultura de pequenos proprietários. Além do mais, é cultura que está hoje em franco declínio.


 

RESUMO BIOGRÁFICO

 

Francisco José de Vasques Tenreiro é, sem favor, um dos reais valores da moderna geração de estudiosos e intelectuais portugueses.

Nascido na ilha de S. Tomé em 20 de Janeiro de 1921, muito novo foi para a Metrópole, onde cursou os Liceus, frequentou a Politécnica e a Faculdade de Letras e se diplomou pela antiga Escola Superior Colonial.

Apesar de ter vivido quase sempre na Metrópole onde se fixou e constituiu família, ficou eternamente preso à sua querida África.

Com efeito, apaixonado pelos problemas do continente africano e do homem negro, tem-lhes consagrado o melhor da sua vida.

Poeta de sincera inspiração, o autor da «Ilha do Nome Santo» pode justamente considerar-se um dos que, entre nós, mais expressivamente representou a «negritude» na Literatura Portuguesa dos nossos tempos.

Foi funcionário do Quadro Administrativo do Ministério do Ultramar e presentemente é professor assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde, em substituição do grande Professor Doutor Orlando Ribeiro, está incumbido da regência de várias cadeiras, entre os quais as de Geografia Colonial e Geografia Humana (Parte prática).

Em 1950, como delegado do Ministério do Ultramar, assistiu a um curso de férias, sobre assuntos coloniais, realizado na Universidade de Cambridge e no qual tomaram parte activa o Professor V. T. Harlow, J. M. Martin, Sir Hilton Poyton, Mr. A. Gaitskell, Mr. Bouteille (Director de L’École de la France e d’Outre-Mer), Sir Ralph Forse e Mr. A. Campbell.

Em 1954 e 1955, como bolseiro do British Council e do Ministério do Ultramar, estagiou na London School of Economics and Political Science – University of London, onde, sob a direcção do distinto Professor Dr. Harrison Church, estudou Geografia Colonial, tendo também frequentado cursos de Administração Colonial Comparada. Fez, então, um curso brilhantíssimo, tendo sido muito apreciados os seus trabalhos sobre o cacau na África Ocidental, especialmente na Nigéria e na Costa do Ouro.

Muito nos honramos com a presença nas nossas páginas de Francisco Tenreiro e… esperamos que cumpra a sua promessa de não nos faltar com a sua colaboração tão desejada e tão valiosa…

In “Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação Ano VII – Nº 76 de Jan. 1956

 

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Acerca dos arquipélagos crioulos

Por Francisco Tenreiro

De comum o tom moreno, mestiçado, das gentes. Mas, mais que a tonalidade é um passado cultural que os assemelha sendo abundantes os traços que, num e outro arquipélago, se repetem não obstante natureza diversa; o fundo do quadro é em Cabo Verde o ar escalvado das linhas gerais do relevo que escondem dos olhos a verdura de algum vale por onde corre água; é, nas ilhas do Golfo da Guiné, com a insignificante excepção de Ano Bom, a loucura do verde que esmaga e ilude as obras dos homens. Factos que advêm da posição dos arquipélagos: um, limite meridional das Atlântidas, quase tão europeu como africano, e outro, enganchado no amplexo do Golfo da Guiné, nitidamente africano.

No conjunto, as ilhas foram descobertas na segunda metade do século XV embora as mais meridionais cerca de dez anos mais tarde. Achadas e povoadas pelo mesmo povo, para lá se transplantaram também negros da África Ocidental aqueles que em terra firme estavam mais próximos: guinéus num caso, gente da margem do golfo no outro, como por exemplo gabões.

Só uma ilha, certamente por mais próxima do continente, seria já povoada – a Formosa que mais tarde se chamaria de Fernando Pó. Por isso, ou por encontrar-se profundamente engolfada, Fernando Pó tardiamente mereceu a atenção dos portugueses que, aliás, logo a cederam a Espanha em troca de facilidades territoriais na América do Sul. Não obstante, muitos dos traços da estrutura social «fernandina» serem hoje semelhantes à de São Tomé, na minúcia dos padrões de cultura mostram-se muito diferentes.

O bubi como o fernandino de Santa Isabel pouco têm de comum com os «filhos da terra» de São Tomé, na sua generalidade descendentes dos povoadores brancos e pretos dos séculos XV e XVI. Sem dúvida que se regista em alguns arquipélagos atlânticos sucessão de elementos sociais que os aproxima, seja em Cabo Verde ou nas Antilhas ou ainda nas ilhas do Golfo da Guiné, que reduzem-se a dois: existência de populações crioulas nem sempre estabilizadas e uma organização de espaço em torno de culturas lucrativas de maior sucesso num ou noutro lugar conforme as vicissitudes da história e até os retoques que uma ambiência diferente pode produzir. Por todas as ilhas a cana do açúcar, o algodão, o café ou cacau, foram as alavancas propulsoras da fixação dos homens à terra e que atraindo africanos deram origem a populações mestiças. Sendo assim compreende-se que se possa falar em arquipélagos crioulos e se compare, como fez Lyall, as ilhas de Cabo Verde com as Antilhas. Por outro lado, se encontram, apesar da não existência de populações crioulas, ecos de um mesmo sistema de organização de espaço em arquipélagos extra-tropicais como os da Madeira e dos Açores.

Repare-se, porém, que se está em presença da generalização «fisionómica» que despreza os processos aculturativos a que as populações arribaram nas diferentes ilhas. Enquanto que em Cuba, como o demonstrou Fernando Ortiz, se chegou a um «mosaico cultural» e a algumas formas de «compromisso» (sincretismo religiosos, por exemplo) em Cabo Verde e em São Tomé as populações tenderam para a estabilização resultante de assimilação dos diferentes elementos culturais em jogo.

Há hoje elementos que demonstram como a expansão portuguesa consistiu essencialmente na transplantação de um estilo de vida de cerne mediterrâneo para os trópicos. Padrões que se introduzem integralmente tais como os instrumentos de farinar cereais que se especializaram em concorrência com o pilão africano, e outros que sofrem os retoques que a natureza sugere: um tipo de casa de pedra de loja e andar, com escada exterior, que na ilha de São Tomé passou a ser de madeira e de cobertura vegetal, se bem que a traça seja sensivelmente a mesma; ou ainda o catolicismo que em pouco ou nada se modificou no que se refere a sincretismos enquanto a língua ou cristaliza em torno de um vocabulário ou de expressões arcaicas de dizer, como em Cabo Verde, ou ganha certo tipo de plasticidade onde não são estranhas construções africanas e é o caso de São Tomé. Seja como for o arquipélago de Cabo Verde e as ilhas de São Tomé e Príncipe são «familiares» graças a um passado de colonização que, por comum, levou à constituição de uma sociedade crioula peculiar. Sem dúvida que na génese da fixação de europeus e africanos nestas ilhas desertas, teve um esquema de ocupação de campos à base de culturas lucrativas.

Mas, que representam hoje estas culturas para a compreensão do mundo sociológico das ilhas? Em cabo Verde a estrutura latifundiária cedo morreu e foi substituída pelo desenvolvimento de culturas de subsistência à base do milho e do feijão.

Os próprios morgadios ainda tão vivos no século passado esmaeceram perante o aparecimento de uma classe nova – a dos mulatos – que por melhor equilibrada veio a sobrepor-se às classes criadas pela diferenciação latifundiária. Hoje, a cultura do café na ilha do Fogo na passa de arremedo da estrutura pioneira que, se no século passado, foi escravocrata, não se mostrou suficientemente forte de forma a subsistir até hoje. Em S. Tomé, de início, passa-se o mesmo; depois de os engenhos de açúcar em torno dos quais se organizaram a economia e os contactos culturais entre negros e brancos o que se viu proliferar, desde o século XVII até meados do século XIX, foram as pequenas sociedades nativas de subsistência. Algo veio perturbar este destino comum e original dos dois arquipélagos. De facto, a partir de 1820 introduzem-se em S. Tomé novas plantas: o cafezeiro e o cacaueiro. As condições climáticas são propícias e novo surto de colono chega àquela ilha que retalha na terra úbere o mosaico de grandes explorações agrícolas de tipo capitalista quantas vezes usurpadas às famílias mais ou menos mestiças descendentes dos primeiros colonizadores brancos e negros. Daí, hoje a estrutura social ser francamente «pluralista» isto é, verificar-se a existência de grupos humanos com vida cultural própria; ao contrário, de uma sociedade integrada como é a de Cabo Verde, S. Tomé mais se assemelha a um mosaico onde europeus, negros serviçais das roças e «filhos da terra» vivem em conjunto estilos de vida diferenciados. São os «filhos da terra», aliás, o grupo quantitativamente superior, que teimam em demonstrar ter valido a pena o esforço português de quinhentos e seiscentos.

Black and white make Brown afirmou-o há muitos anos Lyall querendo ver em Cabo Verde fisionomia comum à das Antilhas. Tem razão Baltasar Lopes quanto a Gilberto Freyre, baseado em Lyall, a possibilidade desta comparação; mas já não teria se, lado a lado, colocasse S. Tomé e aquelas ilhas do Ocidente Atlântico…

A ilha de Ano Bom povoou-se à sombra de S. Tomé.

Quem visita o minúsculo e único povoado que existe verifica que assim é: no seu comportamento; no dialecto que falam, na actividade a que se dedicam – a pesca – as gentes lembram os pescadores nativos do Norte da ilha próxima. Pescadores que na aventura do mar ali se estabeleceram, não obstante a frustre ocupação portuguesa. Por toda a parte, no nome dos ribeiros e dos picos, a influência é evidente. Mas a ilha, dada a sua posição no hemisfério sul e as condições de relevo, recebe menos chuva do que qualquer das outras e mostrou-se sempre menos capaz para ocupação agrícola. Foi o mar que trouxe os seus povoadores e só o mar os poderá continuar a manter.

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De comum, em todas as ilhas, o tom moreno e mestiçado das gentes em função de convívio, que em muitas remonta séculos entre brancos e pretos. De diferente, as estruturas económicas modernas e sociais que as vicissitudes da história e a saga dos homens desenvolveram; aspectos que se entrelaçam com a capacidade ou aptidão da natureza de cada ilha. Por vezes torna-se difícil saber até que ponto a natureza é responsável pela maior ou menor humanização das paisagens; mas sempre e de qualquer forma, representam estas ilhas na sua maioria desertas uma vitória dos homens sobre a natureza tropical. Traços comuns e traços diferentes que vêm da natureza que lhes é própria e das civilizações que a elas chegaram. Sem dúvida que valeria a pena estudá-los e agrupá-los segundo o predomínio de uns sobre os outros. Ressaltaria então, apesar de certas diferenças de pormenor, certa unidade de base entre o arquipélago de Cabo Verde e as ilhas de S. Tomé e Príncipe, resultante da fisionomia de um povo que para umas e outras levou igual sistema de colonização. Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe foram ainda, em pleno oceano, as poldras da experiência sociológica que levaram à radicação dos portugueses na outra «Ilha Grande» - Brasil.

 

In “Cabo Verde - Boletim de Propaganda e Informação - Ano XII –Nº 137 de Fev.1961”

 

Nota: Este artigo de Francisco Tenreiro – “Acerca dos Arquipélagos Crioulos” foi já publicado neste blogue em 16 de Janeiro de 2018