domingo, 11 de maio de 2025

 

Eis quatro poemas de Joaquim Saial.

Joaquim Saial para além de ser Historiador de Arte e da estatuária pública portuguesa e cabo-verdiana, é igualmente ensaísta, ficcionista e poeta. E é como poeta que hoje figura aqui, através dos poemas: “A Cidade que foi,” “A Loja,” “O Homem que escrevia para ser lido” e “Travessia do Tejo.”

Convido os leitores a lerem os poemas que se seguem com a convicção de que certamente apreciarão o lastro poético que os enformam, nos simbolismos, nas transfigurações e na beleza das descrições das gentes, das paisagens, dos ruídos e dos ecos e, das complexas singularidades do rio, da cidade e da loja.

É muito provável que, para os leitores que seguem este blogue, ele não careça de qualquer apresentação, uma vez que Joaquim Saial também tem um blogue muito conhecido – «Praia de Bote».

 

A cidade que foi

 

As janelas fecharam-se uma a uma.

Não há roupa a secar ao vento,

não há vozes a discutir nas varandas.

As portas trancadas não escondem segredos,

apenas o silêncio de quem partiu.

 

Onde antes se vendia café moído na hora,

onde as montras guardavam histórias,

há agora vis fachadas todas iguais,

e lojas sem nome, rosto ou alma.

 

Lisboa desfaz-se em hotéis sem memória,

onde ninguém chega para ficar.

Os que vinham para nela viver,

dão lugar a quem chega por três noites

e parte sem saber onde esteve.

 

Nas ruas, há filas para entrar,

repetidas nos museus e monumentos.

Há turistas a fotografar turistas,

olhares que se perdem em espelhos.

 

E Lisboa, aquela que era nossa,

tornou-se mero cenário,

tornou-se vitrine,

lugar onde já não se vive,

apenas se passa.

 

 

A loja

 

As portas abrem-se todas as manhãs,

pontualmente, sem pressa,

como se houvesse alguém do outro lado a esperar.

Mas ninguém espera.

Nem ontem,

nem há uma semana,

nem desde aquele dia que não tem data.

O sino, pendurado no alto da ombreira,

toca com o vento,

não com a entrada de pés humanos.

E mesmo assim ele sorri.

Sempre sorri.

Na montra, o reflexo do sol brinca

com o pó que se acumula em silêncio.

Ali não há promoções,

nem letreiros a gritar urgência.

Há apenas o espaço vazio,

entre o que é e o que poderia ser.

A loja tem prateleiras,

tem um balcão gasto por esperas antigas,

tem uma luz que vacila, mas nunca se apaga.

E ele tem o hábito de acender todas as lâmpadas,

de varrer o chão com esmero,

como se limpasse um templo.

Às vezes, fala sozinho,

não por loucura,

mas por amor às palavras

que ecoam melhor entre paredes caladas.

Quem passa, estranha.

Os olhos escorregam pela vitrina

como se procurassem sentido.

Mas ali, o sentido está ausente,

ou talvez demasiado presente.

Um dia, uma criança entrou,

perguntou o que havia para vender.

Ele respondeu:

“Tudo o que não se vê.”

E a criança saiu a sorrir,

sem nada nas mãos,

mas com os bolsos cheios de mistério.

Ele não quer fechar.

Não por teimosia,

mas porque há um fio invisível

que o prende à madeira da porta,

ao cheiro a tinta antiga,

à ranhura na parede que lembra uma árvore.

Houve tempos em que teve vizinhos,

outras lojas, outras vozes.

Agora, é o último.

O bairro mudou de pele,

mas ele ficou,

como uma ruga que resiste ao tempo.

À noite, senta-se num banco pequeno,

olha para os frascos vazios,

para as caixas sem rótulo,

e ouve, com atenção,

como se as paredes tivessem algo a contar.

E contam.

Histórias sem fim,

de gestos que nunca chegaram a acontecer,

de mãos que hesitaram na maçaneta,

de promessas que ficaram presas à entrada.

Não quer fechar.

Porque a loja é mais do que um lugar,

é um fôlego entre dois silêncios,

é um abrigo para o inútil,

para o sagrado,

para o que não precisa de nome.

Dizem que é um fracasso.

Que um negócio sem vendas

é um barco sem leme.

Mas ele sabe:

há ventos que sopram só por dentro.

No inverno, a loja cheira a madeira molhada,

no verão, a tempo parado.

E em todas as estações,

há um rumor de eternidade

a repousar nos cantos.

Ele espera.

Não por clientes,

mas por um instante.

O instante em que o mundo

perceba o valor

de uma loja que não quer vender

porque já tem tudo.

E quando partir,

ninguém herdará a loja.

Ela fechará sozinha,

como uma flor cansada.

Mas até lá,

permanece aberta,

para quem tiver olhos

e não apenas desejos.

 

O homem que escrevia para ser lido

 

Veio tarde,

como a chuva no fim de Agosto,

o dom de escrever.

Não lhe veio pelos livros,

nem por mestres ilustres,

mas por uma inquietação antiga,

calada por décadas

sob a rotina.

Viveu de ofícios sem nome,

de horas sem história,

de cidades onde ninguém o esperava.

Na velhice,

quando o corpo já era casa frágil,

as palavras começaram a bater à porta.

E ele abriu.

Começou com frases breves,

escondidas em margens de jornais,

em folhetos de supermercado,

em toalhas de café.

Não falava delas a ninguém.

Não por vergonha,

mas porque sabia

que o mais precioso nasce em silêncio.

Escrevia como quem pede perdão,

como quem regressa

a um sítio que nunca soube existir.

Não queria aplausos.

Não queria que o nome

brilhasse nas montras.

Dizia:

"A fama é uma luz que cega.

Prefiro ser lido na sombra."

Os outros achavam-no estranho,

velho demais para sonhos,

esquisito como um pardal

a cantar fora da estação.

Mas ele continuava.

 

Escrevia sobre gente comum,

sobre a vida que passa sem legenda,

sobre amores que ficaram por dizer

e saudades que nunca tiveram nome.

Deixava os textos em paragens de autocarro,

entre os livros das bibliotecas,

na caixa de correio de estranhos.

Nunca assinava.

Não precisava.

O que importava era ser lido.

Um parágrafo que tocasse alguém,

um verso que acendesse

o lume de uma dor adormecida.

Não vendia livros.

Recusava editores.

Oferecia palavras

como quem oferece pão.

Muitos riram-se dele.

Chamaram-lhe tolo,

poeta de becos,

escritor sem proveito.

Mas um dia,

uma criança leu um dos seus contos

num banco de jardim,

e sorriu pela primeira vez em semanas.

Noutra cidade,

uma mulher encontrou um poema

dentro de um livro usado

e chorou com gratidão desconhecida.

Ele não soube disso.

Mas continuava.

Porque acreditava

que a leitura é um acto sagrado,

e que ser lido — mesmo por um só —

vale mais do que um milhão de aplausos.

Viveu com pouco.

Morreu com menos.

Mas deixou sementes

onde poucos ousam semear.

Hoje, ninguém sabe o seu nome.

Mas há frases suas

penduradas no coração de quem leu.

E isso, para ele,

sempre foi suficiente.

 

Travessia do Tejo

 

O rio estende-se, largo e paciente,

como um cristal que guarda

os reflexos das margens inquietas.

Os cacilheiros deslizam,

pintando rastos brancos na água,

carregando histórias e silêncios,

passageiros apressados,

olhares que atravessam o tempo.

 

No alto, as pontes abraçam o céu,

gigantes de ferro e betão,

suspensas entre partidas e regressos:

a 25 de Abril ruge com os motores,

o seu corpo vibra com o vento e o aço,

enquanto a Vasco da Gama,

serena e distante,

parece tocar o infinito.

 

Na margem norte, os telhados brilham,

as colinas respiram história,

o casario inclina-se sobre a água,

num sussurro que atravessa a brisa.

Navios de cruzeiro adormecem na doca,

catedrais errantes de outros oceanos,

estranhos no ventre do rio,

segredos de portos longínquos,

ali, no cais do Jardim do Tabaco.

 

Na margem sul, o Ginjal espraia-se,

velhas paredes espreitam o rio,

memórias desfeitas no tempo,

sons de passos que se perdem na brisa.

A Boca do Vento chama quem parte,

o elevador ergue-se sobre o azul,

um olhar sobre Lisboa,

uma promessa de regresso.

Mais adiante, Almada desperta,

ruas que sobem e descem sem pressa,

janelas que espreitam a outra margem.

No Alfeite, vasos de guerra descansam,

fundeados entre passado e futuro,

vigias silenciosas do Tejo imenso.

O Tejo, sempre o Tejo,

testemunha de travessias e retornos,

memória líquida de quem parte

e de quem fica.

 

 

S.O.S. Telemóvel! Não queremos ouvir conversa alheia!

segunda-feira, 5 de maio de 2025

 

Antes de começar ao que hoje me traz aqui, peço ao leitor e de forma antecipada que me releve o “post” que se segue, pois, trata-se de algo que à primeira vista, pode ser considerado  um não assunto.

Ora bem, apanhei-me a regozijar com a lei, recentemente criada em Portugal, que proíbe e multa conversas de telemóvel em altos decibéis, nos espaços e nos transportes públicos. Ainda bem! Aplausos!

Em boa hora, saiu esta lei porque estava a tornar-se verdadeiramente exasperante nos comboios e nos outros transportes públicos, ter de levar com conversas alheias o tempo todo!

 Eu, confesso-me: muitas vezes, tapei os ouvidos (e fui chamada atenção - com um subtil gesto de desaprovação - pelo Armindo) nos transportes, para não ter de ouvir inconfidências ditas pelo próprio em alto som. Mas o pior é que eu entendia a maior parte destas conversas assim feitas – ora no crioulo das ilhas, ora no português do outro lado do atlântico - desagradável e incomodativo.

Faço votos de que por cá, nestas ilhas, (imitemos também os bons exemplos) e brevemente, haja uma lei que mande baixar o volume de voz (mas baixar mesmo!) das conversas ao telemóvel em espaços públicos.

De facto, não importa o local (até no cemitério!) seja nos serviços do Estado, seja nos bancos, nas clínicas e nos hospitais, levámos, para mal da nossa sorte, com gente a gritar literalmente ao telemóvel, isto é, utentes e funcionários que atendem ao balcão. Todos falam alto ao telefone, como se estivessem na intimidade das suas casas. Tornou-se insuportável!

Infelizmente, criei uma espécie de síndrome de mal-estar quando vejo alguém à espera de ser atendido, tal como eu, num serviço público ou privado, a falar ao telemóvel, pois já sei de antemão, que vou escutar sem o querer, assuntos alheios, o que me indispõe…até cheguei a pensar em recorrer aos bons serviços de algum Psicólogo, pois eu é que devia estar mal, já que quase toda a gente acha normal e não reage aos surtos decibélicos (a palavra não existe, mas apeteceu-me fazer a junção dos vocábulos decibél e bélico)  altíssimos, que por vezes dá a impressão de que os interlocutores estão a brigar um com o outro e não a ter uma conversa amiga ou civilizada.

Para terminar este meu desabafo, de novo reitero os votos de que as autoridades daqui e rapidamente, criem também uma lei similar ao que entrou em uso recentemente em Portugal, de modo que todos possamos ter algum silêncio e sossego, ufa! Nas ruas, nos transportes e nos serviços públicos.

P. S. – Antes de editar este escrito, dei-o a ler a um leitor especial, cujo juízo de análise muito prezo e que me aconselhou a não o publicar, justificando-se da seguinte forma:

1 – É de facto um não assunto.

2- Não constitui tema para os teus escritos.   

Mas apesar do seu - se calhar, prudente e assisado - parecer, decidi publicá-lo mesmo assim..

Viagem a bordo da palavra «mãe»

domingo, 4 de maio de 2025

 

Viagem a bordo da palavra «mãe»

Por Marco Neves

Neste dia, decidi passear pelas «mães» que se escondem nas línguas do mundo. Não posso chegar a todas, claro — as línguas são mais do que as mães. Posso, no entanto, começar por olhar para o globo, rodar o planeta com o dedo e aterrar do outro lado do mundo...

1. Kōkara / Mother

Comecemos o nosso périplo pela Nova Zelândia, terra de belas ilhas e muitas ovelhas (dizem-me). Por lá, há duas línguas oficiais: a língua maori, falada por esse povo que deu ao mundo a dança guerreira com que os neozelandeses assustam os seus adversários no râguebi; e o inglês, língua que veio doutras ilhas aqui mais para os nossos lados e deu a volta ao mundo para invadir a terra das ovelhas.

Pois, «mãe» é «kōkara» para os maoris e — surpresa! — «mother» para os descendentes dos ingleses. Num só país, duas palavras bem distantes — uma delas está presa àquele arquipélago, a outra já se ouve pelo mundo inteiro.

2. Mother > Mōdor > *Méhtēr

Viajemos agora para trás no tempo: hoje em dia os ingleses dizem «mother», é verdade. Mas, há uns bons séculos, no tempo do inglês antigo, essa «mother» era «mōdor», o que me soa a nome de reino da Terra Média — essa mesma que foi reinventada, há uns anos, precisamente na Nova Zelândia.

Ora bem: há uns 1000 anos os ingleses diziam «mōdor». E há 5000 anos? Por essas alturas, ingleses era coisa que não havia — e a escrita estava ainda a dar os primeiros passos, o que nos impede de saber como se dizia «mãe». No entanto, os linguistas, nos últimos 200 anos, através de complexas comparações entre línguas, descobriram que muitas línguas da Europa e da Ásia pertencem a uma só família: a família indo-europeia.

Ora, através dessas comparações, chegou-se a uma forma provável para a palavra «mãe» tal como seria dita nessa língua muito antiga: «*méhtēr» (o asterisco serve para mostrar que a palavra é uma reconstrução e o h não é nenhuma fórmula química, mas antes uma forma de representar um certo som para o qual não temos nem letra nem certezas).

Essa palavrinha reconstruída deu origem à «mother» inglesa — mas não só. Deu origem à «mâdar» persa, por exemplo. Deu também origem à «mãe» grega («mitéra»), russa («matʹ»), letã («māte»), irlandesa («máthair») e por aí fora.

Curiosamente, deu também origem à «motër» albanesa, com a peculiaridade que, nessa língua, a palavra acabou por significar «irmã». Mistérios das línguas humanas...

3. *Méhtēr > Mater

Ah, pois! A tal língua indo-europeia desfez-se com o tempo. Lá pelo Norte da Europa, entre florestas antigas e alguma escuridão, transformou-se na guerreira «mother» inglesa, na carinhosa «Mutter» alemã, na abreviada «mor» sueca...

Pois, a mesma língua, mais a sul, deu origem à «mater» latina, que se foi transformando na «mamă» romena, na «madre» italiana e espanhola, na «mère» francesa, na «mare» catalã e, claro, na nossa palavrinha...

4. Mãe

E chegámos, por fim, à nossa língua-mãe (língua cujo dia, aliás, se comemora amanhã...). A «mater» latina, aqui a um canto da Europa, acabou por se tornar nesta palavra toda ela nasal, feita do inevitável «m» e, depois, do ditongo «ãe», que aflige os estrangeiros interessados em falar português. Quem não sabe, tem de aprender a controlar a saída do ar pelo nariz — nós fazemos isso sem dificuldade, mas peçam lá a um inglês para dizer «mãe» e verão como é difícil dizer as vogais nasais. Temos uma língua muito senhora do seu nariz, é o que é.

Ah, mas a palavra, mesmo dentro da nossa língua, muda. Já se escreveu «mãy» (e não só). Dizemos «mãe», mas também «mamã», «mãezinha» e todas as outras formas que multiplicam o carinho e o amor pela mãe. A mesma palavra, quando se ouve na boca dum filho a chamar a mãe ao longe, transforma-se noutra coisa: numa «mã-iiiiihn». E não nos esqueçamos da «mamãe» do outro lado do oceano…

Ainda não acabou a viagem. Mesmo por cima de nós, temos a «nai» ou a «mai» galegas, a mostrar que as nossas palavras andam sempre ali na vizinhança das palavras dos vizinhos do Norte — e, como as línguas não param, a mesma «mai» aparece no cabo-verdiano, uma língua que nasceu do nosso português, continuando o mesmo eterno processo que nos trouxe até aqui a partir da tal palavra antiga que se dizia há 5000 anos.

Há 5000 anos, algures na Europa, uma criança dizia «*méhtēr» quando tinha fome; uma criança maori, do outro lado do mundo, chama hoje mesmo a sua «kōkara»; o meu filho diz «mãe», assim, com as três letrinhas apenas... As palavras mudam no tempo e no espaço, mas neste gesto de chamar a nossa mãe há qualquer coisa que nos une a todos.

 

 

P. S.  – Com a devida vénia ao autor, tomámos a liberdade de aqui publicar o texto oportuno e bem enquadrado para a efeméride que hoje se celebra.

Feliz Dia da Mãe!

 

Cabo Verde, a história imposta

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Por Humberto Cardoso[i]

A propósito da rejeição de entrada de alguns estrangeiros oriundos da Nigéria pelos Serviços de Imigração e Fronteiras assistiu-se nas últimas semanas a mais uma avalanche de acusações rotulando Cabo Verde de país racista e os cabo-verdianos de racistas. Intervenções de titulares de órgãos de soberania e posicionamentos de partidos políticos serviram de pivot para as sucessivas vagas de ataque que se verificaram a partir de órgãos de comunicação social e das redes sociais. Aconteceu antes e irá acontecer no futuro ao mínimo pretexto, porque faz parte do cardápio dos que se servem de políticas identitárias e das paixões e ressentimentos por elas suscitadas para obter ganhos políticos.

É curioso que ninguém acusa de racista outros países da CEDEAO com um registo de rejeição de entradas igual ou superior ao de Cabo Verde (Burkina Faso, Gana, Nigéria) ou com uma história de expulsão de nacionais da comunidade aos milhares, caso da Nigéria, e do Gana. Normalmente o rótulo de racista vai para os países europeus e o Ocidente, em geral em relação aos quais reivindicações de mais ajuda e de reparações surtem efeito. Árabes e asiáticos parece que estão excluídos deste jogo.

Aplicá-lo a Cabo Verde, que não tem o passado colonial e de segregação racial desses países que poderiam justificar a existência ainda de atitudes racistas e manifestações de racismo estrutural, não faz qualquer sentido. Só se compreende se a realidade humana de Cabo Verde que, de uma determinada perspectiva, podia chamar-se de pós-racial é um elemento de perturbação para certas ideologias fixadas na raça e na luta racial. E para devolver o país a uma normalidade desejada é preciso desconstruí-la e racializá-la.

As consequências do extremar de posições em matérias de políticas identitárias em todo o mundo são hoje visíveis para todos. De facto, a afirmação de identidades distintas, em disputa permanente e incapazes de chegar a compromissos, tem contribuído para a polarização das sociedades, para o aumento na hostilidade aos imigrantes e para a ascensão de políticos e políticas radicais. Nos Estados Unidos da América foi um dos principais factores por trás da eleição de Donald Trump. Na Europa, o reforço em parte da posição da extrema-direita alimenta-se desse radicalismo que põe em causa valores universais. Daí a guinada brusca para o iliberalismo e a compressão dos direitos fundamentais, o enfraquecimento do Estado de Direito e a contestação da independência dos tribunais e o surgimento de oligarquias económico-financeiras próximas do poder político.

Não se deve esperar diferente em Cabo Verde se se continuar a prática de, sempre que a oportunidade se oferece, se recorrer à táctica de acusar o país e o povo de racista, de forçar uma escolha entre Europa e África, e de esgravatar o passado à procura de cumplicidades com o poder colonial. Corre-se o risco de enfraquecer a consciência da nação, de quebrar a unidade do país com ressentimentos forjados e de minar a democracia liberal com a perda de confiança de que os órgãos de soberania são representativos de todos. Em causa pode ficar o que distingue e constitui vantagem para o país que é o de ser uno, diverso, mas sem tensões raciais e com uma democracia estável.

Infelizmente, a tentação de se prosseguir com políticas identitárias potencialmente divisivas sem preocupação com as consequências é quase incontornável. Na sequência da revolução de 25 de Abril de 1974 e no processo de retirada das colónias, as ilhas de Cabo Verde foram praticamente entregues pelas autoridades portuguesas ao Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) que da Guiné, a cerca de 1000 quilómetros de distância, conduzia uma guerra de guerrilha e clamava pela independência do arquipélago. Aconteceu algo similar com as restantes colónias, mesmo com São Tomé e Príncipe em relação à qual não havia movimento armado a exigir a independência. Identificando-se como partido africano e promotor de uma unidade política com a Guiné-Bissau, o PAIGC logo no texto da proclamação da independência determinou “um destino africano” para Cabo Verde, sem que para isso houvesse consulta popular num ambiente livre e plural. Aliás, assim como nas outras colónias e em nome do princípio de NÃO AO REFERENDO, não houve exercício do direito à autodeterminação.

Para um povo, que por mais de um século e em todas as ilhas já se reconhecia como cabo-verdiano, mesmo dentro do império português, com a sua língua, cultura, música e literatura, a imposição de uma identidade genérica (a África tem mais de 900 etnias e línguas) no quadro de uma ideologia pan-africanista em detrimento da sua não podia deixar de ser traumatizante. Também teria que provocar divisão no país entre, por um lado, os que aderiram ao novo regime, que logo se revelou totalitário e, portanto, agressivo e intolerante, e os outros. A tentação de considerar os resistentes à sua ideologia como saudosistas, europeístas ou luso-tropicalistas e pró-claridosos persiste até hoje, mesmo depois da “unidade Guiné e Cabo Verde” ter-se revelado um embuste para legitimar a implantação durante quinze anos de uma ditadura dos “melhores filhos do povo”.

Para criar fundamentação teórica para o destino africano recorreram aos escritos de António Carreira que, segundo o depoimento de Carlos Reis, ministro da Educação entre 1975/1980, ao livro de João Lopes Filho sobre esse autor, “a obra de António Carreira é aquela que mais fez para a produção e sistematização de elementos teóricos para uma possível unidade entre Guiné e Cabo Verde”. O historiador António Correia e Silva no mesmo livro diz que: “Em vez da história da cultura, das ideias e das atitudes (…) predomina em Carreira a história económica, mais concretamente a do tráfico de escravos”. Compreende-se assim por que, de acordo com Correia e Silva, a sua obra é “talvez a mais marcante para a conformação da moderna historiografia cabo-verdiana”. Ao fazer da “escravatura” e do “escravo” as chaves para se decifrar a história de cinco séculos de Cabo Verde, ficavam justificados a imposição do destino africano e o papel dos “libertadores”.

A postura cultivada de libertadores, porém, cede rapidamente para a de conquistadores, sempre que por qualquer razão acham que o país não lhes presta suficiente vassalagem. Aconteceu há poucos dias na sequência do início das comemorações dos 50 anos de independência. Acham que a celebração deve ser sobre o processo de independência e os seus dirigentes, processo esse que, como se sabe, impediu aos cabo-verdianos o exercício do direito à autodeterminação e impôs ao país uma ditadura de quinze anos na qual foram os principais protagonistas. Mas é evidente que em democracia, quando se celebra o dia do país, são os princípios e valores em que a comunidade nacional se revê que são fortalecidos, em particular o facto de a independência significar antes de tudo autodeterminação para escolher livremente os governantes, fazer as leis a serem acatadas por todos e decidir o rumo do país em eleições periódicas.

A comemoração da independência com esse sentido favorece a união e a solidariedade e renova a confiança no futuro. Mas se é luta política permanente que se pretende para conquistar o poder, vão continuar aí as questões identitárias, vai-se fustigar o país com acusações de racismo e até invocar a figura de Amílcar Cabral, sem preocupação com as consequências. A assunção de responsabilidade nunca foi um traço forte de quem procura o poder a todo o custo. 

 

   

[i] Director do jornal “Expresso das Ilhas” - Editorial do jornal "Expresso das Ilhas nº 1222 de 30.04.2025