Tradições e Transposições

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
Tradições e Transposições…


À memória da mãe Joana.


Regressada recentemente de Bissau, onde estive por ocasião da morte de um familiar muito querido, lembrei-me – em jeito de homenagem – escrever este pequeno texto sobre a transposição de algumas tradições do meio rural, seu espaço de origem e de prática obrigatória, para o meio urbano sem condições para o cumprimento do ritual, normalmente longo e complexo que acompanha as cerimónias que as compõem.
Ora bem, abro aqui um pequeno parêntesis, para dizer que todas as vezes que sobre isso falo, trago à colação a imagem do batuque em estúdio de televisão. Para mim, essa dança assim apresentada ganha algum contorno de “grotesco” e de inestético, pois que ele, o batuque, foi concebido para o “terreiro” espaço aberto de terra batida, do campo, com o céu à vista, possivelmente em noite de luar e com uma ambiência adequada. Logo, isso não tem nada a ver com um estúdio fechado e virado para outros fins. Fecho o parêntesis e volto ao assunto inicial.
Com efeito, muitas das tradições que se querem manter já não se adequam – sobretudo nos nossos dias – na cidade, em casas sem quintal, em apartamentos, no meio do trânsito, com um tempo e uma movimentação diferentes do tempo e do movimento do meio rural. Enfim, estas tradições não foram pensadas, nem configuradas para o meio dito urbano. Daí toda uma inadequação quando se força a transposição delas para a cidade.
Pois bem, uma das tradições (quase instituição) mais fortemente implantadas na Guiné é o «Choro» por ocasião da morte de alguém. As chamadas cerimónias, são normalmente animistas, mas comportam também ou, podem também comportar celebrações fúnebres cristãs, (missas e terço rezado) se o defunto ou a família assim pretenderem e tudo isto num perfeito sincretismo religioso. Para além da matança/sacrifício de alguns animais, o ritual inclui a «Esteira», estendidas pois que são muitas as esteiras – ocupadas pelas mulheres mais velhas e da família no sentido literal do termo – durante oito dias na casa do defunto. A primeira refeição da manhã normalmente “comida de panela” cuja base é o arroz é levada à boca após uma espécie de invocação/homenagem ao morto.
Cada etnia guineense possui o seu modus faciendi do «Choro». No último dia da Esteira faz-se “o amanhecer,” «manchida» em crioulo, em que a noite da véspera é uma vigia até ao nascer do sol.
Após isso, enrolam-se as esteiras. Reza-se a missa do sétimo dia – nos casos de sincretismo religioso – e cada familiar e cada visitante, que entretanto esteve albergada em casa do morto, regressa ao seu local de residência. Em linhas muito gerais, de forma muito abreviada e muito superficial, fica a pretensão de uma descrição do «Choro».
Acrescente-se que a duração das cerimónias e a “largueza” dos repastos dependem obviamente do estatuto do defunto.

Mas o que aqui gostaria de enfatizar é que as tradições acabam por ter de ser modificadas, alteradas e abreviadas, pois que a sua realização no espaço citadino não se compadece com a configuração que elas trazem do meio rural.
Daí que, na minha opinião, e um pouco na linha: “ao campo o que é do campo, à cidade o que é da cidade” não é recomendável a transposição – porque inadequada e perturbadora – de práticas tradicionais rurais para o meio urbano, sob pena de uma descaracterização e de criação de situações, por vezes, conflituosas e constrangedoras.
Para finalizar, gostaria de aqui recordar aquilo que em vida dizia a nossa familiar querida, conhecedora dos usos e dos costumes da terra, mas ao mesmo tempo pessoa esclarecida – com a perfeita noção de que a isso, não poderia fugir quando a morte a viesse buscar – de tal modo que ela deixou recomendações e orientações no sentido de haver limites e contenção em tudo que às cerimónias dissesse respeito, para que os filhos, descendentes, certos familiares e amigos não se sentissem incomodados com essa tradição.

Crioulo versus Português?

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
Lá volto eu com a questão que levanta sempre celeumas, provoca problemas, revolve malquerenças e mal-entendidos e deixa muito por entender, quando não desata zangas complexas, eu sei lá! Resultado final: Um oceano de equívocos!
Ora bem, apesar de tudo isto, acho preferível – no firme pressuposto e no fundamento cognitivo de que nada é dogmático; de que não existe coisa alguma que conflitua o homem que não seja discutível, analisável, e finalmente negociável e solucionado – mais uma vez, voltar à questão linguística nacional que tanta tinta tem feito correr.
Estamos bem conscientes que quando se toca na questão linguística cabo-verdiana e em Cabo Verde, as sensibilidades se hiperbolizam numa adrenalina que por vezes é de se lhe fugir!
Mas o assunto que iremos aqui esboçar: Crioulo versus português deverá ser pousado na rota do desenvolvimento de Cabo Verde? Sim ou não? É minha opinião de que seria melhor tratada a questão linguística nacional, se cada exercício sobre isso, formulasse hipóteses, as interrogasse e as discutisse, com alguma ilustração e alguns exemplos, Assim procedendo, talvez chegássemos a alguma pista mais fundamentada, ao invés de fazer disto um caso dogmático, indiscutível e de exacerbada afeição, para não dizer, paixão.
A relação que temos hoje, crioulo-portugês tem conduzido à melhoria de qualidade dos nossos recursos humanos? É um factor de união no País? Poderá potenciar o desenvolvimento tecnológico do País? Melhorará o nosso relacionamento com os países amigos no contexto internacional? Note-se que falo em melhor, não disse: mais (recursos humanos). Para muitos diria que ocorre um não! honesto e pronto como resposta. Quando muito, após meditação dirão: Duvido que haja!
Vou referir-me mais concretamente à classe profissional de que sou oriunda, a dos professores. Nos dias que correm, encontrar um professor que preencha os requisitos no expressar-se com correcção e sabedoria, na língua veicular, o seu saber específico já se vai tornado coisa raríssima nestas ilhas. É ou não é verdade? Porque será? Talvez porque trazem na sua formação e ao longo do seu percurso académico “etapas queimadas” de muita falta de conhecimentos, do saber estar e do saber ensinar. Lacunas gritantes que se vão reflectir no exercício da vida profissional, em parte causadas, no meu entender, pela ausência de muita leitura e do exercitar a aprendizagem em língua portuguesa.
Agora digam-me da vossa justiça, se não haverá em tudo isso alguma relação causa/efeito, pelo menos parcialmente, pelo mau serviço que estamos a prestar às nossas duas línguas: o crioulo e o português? Eu creio que sim. Esta “mistura” de papéis dos dois veículos linguísticos poderá ser altamente “perturbadora” no ensino, na escrita, na oralidade e na nossa produção literária e tecnológica. Faço-me entender: há séculos que a arrumação linguística cabo-verdiana se estruturou e, nós os falantes sempre soubemos atribuir – com conflitos ou sem eles – a cada uma das línguas o seu papel no nosso quotidiano, na nossa vida, na nossa cultura.
É a língua portuguesa, que nos permite desenvolver e elevar os conhecimentos científicos e tecnológicos, estudando, lendo e interpretando os manuais, ligando-nos ao exterior, é ela que nos faculta um diálogo substancialmente mais enriquecido entre nós e com os outros falantes da mesma língua, a tal ponto é assim que questionamos: para onde caminharemos, sem este valioso instrumento, no nosso desenvolvimento?
Creio que nenhum governante, alto responsável, ou legislador nacional de bom senso aprovaria tal derrocada e retrocesso.
Os países e as nações que fizeram o contrário, ficando apenas com a língua local, a substituir a língua oficial e veicular do ensino, deram-se muito mal com isso e retrocederam. Estão hoje na cauda dos mais subdesenvolvidos. Maus exemplos desse tipo de conduta são conhecidos, como também são infelizmente conhecidos, os maus resultados daqueles que assim procederam.
Voltando ao tema, o que aqui foi dito é apenas para alertar para o perigo de uma derrapagem aqui dentro, no país, que é muito frágil com muito pouco ou quase nada em termos de auto-sustentabilidade, de se tentar usurpar o papel que a língua portuguesa tem tido até agora.
Defendo que para o nosso caso, até deveríamos tornar o português, língua nacional e assim proporcionar a todo o falante cabo-verdiano maior competência linguística que o ajudará a libertar-se do ciclo de pobreza, do analfabetismo e de subdesenvolvimento.

Séculos de Documentação, de Literatura produzida em prosa e verso mostrou à saciedade que foi versada maioritariamente, em português, por gente que sempre amou e falou o crioulo, com os seus mais chegados, sem qualquer reserva. Agora, era também gente que sabia que o nosso querido crioulo não substituía nem de perto, nem de longe, a nossa também querida língua portuguesa quando se tratam assuntos que entram no âmbito da cogitação filosófica, da análise literária, ou de procedimentos tecnológicos.
Logo, com este caudal de rica experiência, Cabo Verde só tem a ganhar se deixar ao crioulo o papel que tem tido na especificidade cultural do Arquipélago cabo-verdiano De uso doméstico, da socialização afectiva, da lavoura, de cantigas, de quadras, do folclore nacional, das cantigas crioulas, de alguma prosa e poesia entre outras funções de comunicação e expressão; e à língua portuguesa, o seu lugar no ensino, na leitura, na alfabetização, no ensino, na formação de quadros, entre outras funções, até aqui tidas e realizadas, para o desenvolvimento do país. E isto deve ser encarado com todo o pragmatismo, sem qualquer reserva, pois, as duas línguas são ambas nossas, ambas expressam a cultura mestiça que nos caracteriza e ambas concorrem para a edificação da nossa identidade.

Há dias...

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
Há dias…

Devíamos todos ter um dia destinado simplesmente à reflexão, à meditação, sobre a nossa vida na relação connosco próprios e com os outros. Não tinha de ser necessariamente um feriado, um domingo ou um dia santo, expressamente destacado. Não, nada disso. Seria um “tempinho” discretamente roubado ao nosso dia-a-dia para essa finalidade.
Claro que muitos me hão-de contestar, dizendo que isso será um luxo para quem trabalhe, para quem tenha de procurar a sobrevivência. Em suma para quem tenha o dia totalmente preenchido. Não há tempo para esses “devaneios.” Pois bem, sei que não é fácil suspender um momento no tempo, num dia determinado, apenas e propositadamente para reflectirmos sobre nós próprios! Nem estamos para aí virados. Agora que nos faria muito bem, disso não duvido.
Até nos ajudaria a mudar um pouco, o rumo da nossa vida. Alterando aqui, melhorando a conduta acolá. Enfim, olhando depois com uma abordagem renovada muitos dos nossos próximos na sua interacção connosco.
Não é por acaso que os “gurus,” os livros e as recomendações com finalidades similares, para se alcançar alguma qualidade de vida e alguma longevidade, nos sugerem os tais minutos diários de concentração – para uma espécie de esvaziamento da mente ou para o esquecimento dos problemas – e assim, numa postura de relaxamento conseguirmos reencontrar o equilíbrio revigorador.

Lembro-me de um familiar que tinha por hábito à sexta-feira, ao invés das refeições normais ao longo do dia, substituí-las por um copo de leite e uma banana. Justificava isso, explicando que por um lado, era para auxiliar na perda de peso e, por outro lado, a dieta assim feita, ajudava-o a ficar “mais leve para meditar sobre a sua passagem pelo mundo,” isto é, sobre a vida.
Não sei se chegou a perder peso com a dieta da sexta-feira, agora que o recordo como uma pessoa muito tranquila e bem comandada pela razão e pelo coração, é uma memória que dele retive. Possivelmente já teria essa propensão na sua maneira de ser, talvez sim. Mas tenho para mim, que a meditação muito cristã também de sexta-feira sobre a sua condição humana, ter-lhe-ia ajudado a atingir uma certa forma de estar na vida que o caracterizou positivamente.