O Maniqueísmo do cabo-verdiano, dito, intelectual

sábado, 31 de agosto de 2019


É deveras notável o maniqueísmo do acto elocutório e perlocutório, isto é, da organização mental e da consequente articulação vocal de qualquer projecto argumentativo do nosso nacional, sobretudo daquele que se julga ilustrado, e  que  até faz opinião.
Por norma, a tese a demonstrar do assunto em discussão raramente foge do esquema,  ou é preto ou é branco e ponto final!. É óbvio que me refiro à regra geral e não às excepções que sempre existem.
Não pretendo ser azeda. Longe de mim tal intento!... apenas noto e anoto factos que venho observando.
Então, vamos a dois deles que me parecem significativos para o contexto actual da nossa sociedade.
Por exemplo, os Linguistas da nossa praça ou similares, quando falam da importância do Crioulo nas ilhas e ao quererem demonstrar o seu indesmentível apego ao mesmo, só o conseguem demonstrar, deitando abaixo de seguida o português. Interessante é que a língua que lhes serve entretanto de veículo para transmitir esse mesmo mal-querer, ser exactamente, a língua portuguesa. Fantástico! Mas não deixa de ser bizarro.
As investidas bélicas sobre a Língua segunda, vão desde de tentativas de retirá-la dos seus ambientes naturais, como sejam a Escola e o meio académico no geral, passando pela agressão gratuita da mesma, enquanto veículo linguístico de ensino, indo até ao ponto de afectar negativamente os aprendentes da língua portuguesa.
Tudo isto, tem vindo a acontecer em Cabo Verde, numa suprema incongruência.
E, para agravar a situação, tal cenário, tem gerado entre nós, um séquito de acólitos mal preparados. Ávidos de protagonismo. Ansiosos por palco ou por holofotes, configurando-se ainda mais fundamentalistas do que os ditos “mestres” e que se prestam logo a difundir, a confundir e  a espalhar o mal nas mentes dos mais jovens falantes em fase de escolarização.
Pois bem, o mau resultado está á vista de todos. Basta pensarmos na má preparação escolar que levam os nossos alunos do 12º ano de escolaridade, do insucesso visível quando, na prossecução de estudos superiores, demandam universidades de Língua portuguesa, com destaque para Portugal.
O insucesso académico tem sido, para mal dos nossos pecados, visível para muitos estudantes, com consequentes e por vezes, irreversíveis danos ao projecto de vida.
Voltando ao tema proposto neste escrito, os nossos argumentadores não se limitam a louvar o Crioulo. Não, para o fazer têm de “abater” a língua portuguesa, esquecendo-se até de “quem é filho de quem...” fazem logo fogo cruzado à matriz da língua cabo-verdiana.
Enfim, de incoerência em incoerência, assim falam os nossos “opinion makers” ou, dito em português: os fazedores de opinião sobre uma determinada  matéria.
Outro exemplo, vem de alguns políticos, ou candidatos a tal, os quais, para elogiarem o africanismo – o negro – que nos completa mas que querem transformar num absoluto para o cabo-verdiano, desatam a destratar o outro lado – o branco – ignorando a nossa mestiçagem.
E é assim que se ouve de gente com responsabilidade, e convencida de que não está a ser escutada (nos dias de hoje, num mundo de redes sociais, tudo se sabe num instante e, em todo o lado) a não ser pelos que o rodeiam na ocasião, a desancar na parte europeia contribuidora igualmente para  a construção do nosso ser ontológico e, finalmente, para a nossa identidade também.
Que triste sina, a nossa! Ter de levar com isto !… É caso para se perguntar: “Quo vadis” Cabo Verde com gente com esta (não) preparação e esta forma de (não) pensar a nossa História e a nossa cultura mestiças?
De facto, chega a ser mais do que maniqueísta esta postura. Trata-se se calhar, de uma incapacidade analítica que afecta entre nós, os comentadores e os políticos no geral. Uma incapacidade de discorrer mais demorada e profundamente (falta de dados? Falta de algum estudo e de boa preparação sobre a matéria em análise?) sobre o assunto, sem “saltar” e fazer derivas precipitadas e as mais das vezes, mal fundamentadas que nada acrescentam ao tema em discussão. Muito pelo contrário, criam perturbações e equívocos desnecessários.
Ora bem, percebe-se que não estão aptos a fazer uma análise intrínseca do problema em si (o caso já aqui citado, o da Língua portuguesa). Ao invés, o que fazem é uma comparação imediata com outro (no caso, com o Crioulo) seja porque lhes convém retirar daí proveito imediato, seja porque não reflectiram com seriedade, não só sobre a importância do português na escolarização da criança cabo-verdiana, mas também  sobre o efeito devastador que o abandono da compreensão e da oralidade em língua portuguesa nas escolas, tem tido na escrita, na interpretação de conceitos, na leitura, entre outros efeitos perversos que esta situação vem provocando nos alunos e nos Quadros cabo-verdianos.
Em síntese, e para mal dos nossos pecados, o país já há muito que vem dando mostras evidentes de uma derrapagem calamitosa em termos de poder erigir uma capacidade, uma intelligensia local que contribua para o desenvolvimento das ilhas, quer  do ponto de vista económico, quer social, quer ainda cultural ou, mais ainda, da criação de uma sociedade cidadã e com opinião, demonstradora de conhecimentos e de saber.
Infelizmente, nada disso tem acontecido.
Para nós, torna-se altamente perturbador pensar que a realidade das ilhas vem sendo assim. Mas ainda mais confrangedora, é enunciá-la. (o que me está a acontecer com este escrito).
Mas atenção, esta forma de pensamento dual, do dito intelectual cabo-verdiano, não é só na questão linguística ou, sobre assuntos políticos que ele se apresenta mais visibilidade. Não, isto configura-se nos debates sobre matérias díspares, que ao nosso país respeitam.
Resumindo a questão, falta entre nós um argumentativo ou, um argumentário mais acabado, mais elaborado, menos maniqueísta (preto ou branco) mais “paleta de várias cores,” ao equacionarem-se os dados de determinado problema. Ou seja, problematizar a questão. Abordá-la de vários e diferentes ângulos. Uma sugestão: interroguemo-nos sempre. Coloquemos várias perspectivas. Conscientizemos as nossas dúvidas. Analisemos sem pressas. Problematizemos com mais interrogações e menos certezas, a matéria sobre a qual, no momento, discorremos. Assim, abeirámo-nos da cultura. Ou, no mínimo da ilustração.
Termino este escrito com uma interpretação – referindo-se à cultura – da portentosa escritora portuguesa, Agustina Bessa-Luís: (...)“A cultura é o trajecto a percorrer entre o viver e o conhecer, entre a certeza e a interrogação que a segue de perto(...)” In: «Contemplação Carinhosa da Angústia».





DA CLARIDADE À CLARIVIDÊNCIA

domingo, 25 de agosto de 2019


               6 de Setembro de 2019
O centenário do nascimento de Henrique Teixeira de Sousa (1919). Neste contexto, achámos pertinente relembrá-lo através dos seus escritos, no caso, mais um artigo. Desta feita sobre o Movimento Claridoso.

Por H. Teixeira de Sousa*

Quando, em Outubro de 1931, desembarquei em São Vicente para frequentar o Liceu, fiquei deslumbrado com a cidade do Mindelo, tão diferente da pacata cidade de São Filipe. Os vapores, apitando e fumegando na baía, o rumor dos guindastes e das vagonetas de carvão, o vai-vem dos rebocadores e das lanchas, a azáfama dos trabalhadores enfarruscados com o pó da hulha, marinheiros estrangeiros passeando nas ruas, acompanhados de cicerones poliglotas, residentes ingleses e italianos emprestando um ar cosmopolita à pequena urbe, o golfe, o ténis, o foot-ball, o cricket, os estabelecimentos comerciais alguns bastantes prósperos, o Liceu, a elite ilustrada, o jornal da terra, combativo, mordaz, polémico, todo esse ambiente novo me fascinou, a mim, menino duma ilha agrícola, ilha enconchada nas suas tradições seculares que viriam a ser mais tarde invocadas no meu romance ILHÉU DE CONTENDA. O impacto com a mini-civilização mindelense impressionou a minha ruralidade. A descoberta doutro ritmo de existência, que não o arrastar inglório das enxadas e a resistência inútil do homem do sobrado, inflectiu o meu destino para diversificados horizontes. Lembro-me de que, à noite, quando recolhia ao meu catre de estudante, adormecia a pensar no amanhecer glorioso em que me seria dado de novo participar do quotidiano mindelense.
Todavia, na casa onde me hospedei, escutava a conversa das visitas sobre a crise do Porto Grande. Suspiravam pelos bons velhos tempos, como na morna de Sérgio frusoni «um vez Sãocente era sabe». Ouvi-as, ainda, zurzindo no Governo pelo abandono votado ao mais amplo e abrigado porto da África Ocidental. Não conseguia entender as razões das queixas daquela gente face ao burburinho que me rodeava. Só vim a capacitar-me de que campeava a miséria em São Vicente quando, em 1934, largas centenas de populares, capitaneados por Nhô Ambrósio, desceram dos arredores da cidade, empunhando bandeiras negras, que simbolizavam fome e desolação. Cortejo que findou em assalto aos armazéns de víveres de determinados comerciantes e da Alfândega do Mindelo.
Esta crise portuária já vinha de longe. Em 1891, João Augusto Martins, ilustre médico e escritor cabo-verdiano, chamou a atenção de quem de direito para a decadência incipiente do porto de São Vicente no seu célebre livro «Madeira, Cabo Verde e Guiné». Dizia então o autor que a negligência do Governo face ao equipamento e modernização da Baía do Mindelo punha em risco o futuro desta magnífica escala marítima, dado que Las Palmas e Tenerife haviam já arrancado com força e determinação para a conquista da navegação comercial do Atlântico. Assim, quando, na década de trinta, começou a fazer-se a substituição do carvão pelos combustíveis líquidos, agudizou-se a crise no Porto Grande, por este não haver acompanhado as exigências a época. Os espanhóis fizeram-no nas Canárias. Os franceses fizeram-no em Dakar. Os portugueses não o fizeram em São Vicente. Daí o declínio do movimento portuário, com a consequente baixa de receitas de semelhante origem. As companhias carvoeiras começaram a despedir trabalhadores, tendo-se então instalado um clima de insegurança que São Vicente jamais conhecera. Nesse clima é que foi gerado o levantamento de 1934, de que fui testemunha ocular. Vi embarcar Nhô Ambrósio, deportado para Angola. Acho que não será despropositado sugerir aqui e agora a perpetuação da memória de Nhô Ambrósio da forma como entenderem o povo e o Governo. Celebrizado já foi pelo poeta Gabriel Mariano, que, através de um poema épico, cantou a gesta do Capitão Ambrósio. Mas há qualquer coisa mais que falta. O povo dirá.
A decadência da ilha de São Vicente também atingiu a classe relativamente abastada. Daí que existisse na cidade do Mindelo uma Associação Comercial e Industrial bastante forte, coesa e empenhada na luta pelos direitos e progressos da terra. Daí que houvesse um jornal, cujo temário essencial era a problemática do ancoradouro de São Vicente e o abandono que estava votado o arquipélago, em geral. Daí que reinasse um sentimento depreciativo por quanto fosse português, versus  um grande apreço pela eficiência inglesa, mal-grado o isolamento da colónia britânica. Vestia-se à inglesa, bebia-se à inglesa, fumava-se à inglesa, fava-se inglês (sobretudo quando se engolia dois whiskies ou gins), fazia-se desporto à inglesa. Era muito honroso ser-se convidado para um cocktail no Telégrafo ou Clube dos ingleses. Também, na ilha do Fogo, subir ao sobrado de gente branca era uma distinção concedida a pouquíssimos mulatos. Esse fenómeno, portanto, não me impressionou, na medida em que a ele estava habituado. Na minha ilha, as chamadas famílias tradicionais eram igualmente impermeáveis ao convívio com a chamada gentinha. Esta, todavia, invertia os seus ressentimentos, ao ponto de ambicionar acesso ao ambiente que a repelia. Vidé «Ilhéu de Contenda».
A burguesia mindelense vivia revoltada com a incúria e o desprezo da Mãe-Pátria (entre aspas).Dessa revolta, quanto a mim, teria nascido a ideia de adjacência das ilhas de Cabo Verde, numa ambivalência de sentimentos idêntica àquela acabada de citar, ideia que também foi motivo de quilómetros de prosa no jornal «Notícias de Cabo Verde». Por outro lado, intuiu-se o malefício do regime colonial, em consequência do imobilismo desenvolvimentista do arquipélago. Vá, então, de querer tratamento diferente por parte da Mãe-Pátria. Esse tratamento conseguir-se-ia com o estatuto administrativo de adjacência, tal como existia para os arquipélago dos Açores e da Madeira. A adjacência seria como que a legitimação desse filho bastardo que era o arquipélago de Cabo Verde. Feita a legitimação, também ficaria feita a descolonização, desaparecendo as desigualdades entre os portugueses de cá e de lá. A reivindicação do estatuto de adjacência não significava o desejo de libertação do regime colonial, única via de promoção que, então, se enxergava. Havia, aliás, o exemplo muito próximo das ilhas Canárias, fazendo parte integrante da metrópole espanhola. Assim, raciocinavam e sentiam os defensores de semelhante projecto politico-administrativo.
O sonho de adjacência povoou o cérebro e o coração de algumas gerações. Só veio a morrer em 1962, numa célebre reunião das forças vivas que teve lugar na sede da Associação Comercial e Industrial do Mindelo para dar resposta a uma consulta do então Ministério do Ultramar. Estava-se em plena guerra colonial. Convinha sobremaneira que uma província ultramarina (terminologia da época), como Cabo Verde, soltasse o seu grito de Ipiranga às avessas, aceitando o estatuto de adjacência para desencorajar o empenho do PAIGC e restantes movimentos africanos de libertação. O Engenheiro Humberto Fonseca foi o grande líder dessa histórica reunião. Ao ouvido me disse: – Henrique, vamos evitar um sim a adjacência, caso contrário perdemos o comboio da independência. Evidentemente que se recusou o estatuto das ilhas adjacentes então oferecido de bandeja pelo Governo Central, o mesmo Governo que sistematicamente no-lo recusara.
Regressando à década de trinta, década de acentuação da crise do Porto Grande e de agudização dos conflitos internacionais que estiveram na origem da Segunda Guerra Mundial, direi que foi nessa conjuntura que surgiu o movimento intelectual e literário da Claridade. Foi nesse cadinho de decadência portuária, de miséria e contradições internas e internacionais que um punhado de jovens talentosos concebeu e arrancou com uma revista de artes e letras, de conteúdo totalmente novo. Fez-se luz na literatura cabo-verdiana, afastada até o momento dos valores culturais próprios, salvo restritas excepções. Tanto na poesia como na prosa, se passou a expressar a autenticidade das ilhas, coisa que poetas e prosadores anteriores distorceram ou omitiram através de uma retórica importada. Essa afirmação vigorosa de identidade cultural viria a confrontar-se criticamente com o conceito de adjacência, na medida em que revelava uma realidade distanciada dos valores culturais de Portugal continental. Viria, em certa medida, patentear a existência dum pré-nacionalismo, com todas as implicações que tal acarretava na altura. Daí que a revista não tenha sido bem recebida pelas forças conservadoras. A nova forma de escrever Cabo Verde diferia da forma tradicional, no domínio literário, evidentemente. A retórica balofa foi mondada pelas enxadas dos claridosos, pondo o chão limpo de ervas nocivas. Passou a exibir-se uma cultura mais consentânea com as nossas realidades.
Não é minimamente aceitável o julgamento da Claridade feito na década de sessenta pela juventude progressista da época. Os claridosos não se alienaram da problemática da injustiça social e das carências materiais. Primeiro, porque surgiram em São Vicente na crítica década de trinta; segundo, porque cortaram com figurinos impostos; terceiro, porque deram a conhecer verdadeiramente a humanidade das ilhas. Que mais se lhes poderia exigir? Não vejo que aos «bravos do Mindelo» (parafraseando a História de Portugal) se devesse exigir a consciência política que só após o segundo conflito armado internacional começaria a tomar forma em África. Consciência política, por um lado, impossível de alcançar no regime que então vigorava, cerceados que eram os meios de informação política. O reconhecimento de todo esse passado restritivo, encorajou os responsáveis actuais pelas coisas de cultura a assinalar condignamente o quinquagésimo aniversário do aparecimento da revista Claridade, fazendo cessar tudo quanto determinadas musas cantaram contra os pioneiros da nossa moderna literatura.
Logo no primeiro número da revista se privilegiou o dialecto crioulo de Cabo Verde, tendo-se imprimido, na respectiva portada, versos dum batuque de Santiago. Esta homenagem à nossa língua de leite teria soado a irreverência nativista aos que combatiam o uso do crioulo. Mas o que mais desagradou aos puristas lusófonos foi o português literário dos novelistas, e, não tanto, o dos poetas. Esse português literário dos novelistas foi um dos actos mais audaciosos dos homens da Claridade, numa época em que ainda se estudava a gramática e a estilística portuguesas em profundidade e se acreditava que a utilização do crioulo prejudicava a aprendizagem do idioma de Camões.
Sem dúvida que esse alcunhado «pretoguês» dos claridosos veio desbloquear significativamente a linguagem dos novelistas, especialmente nos textos contendo diálogos. Aproveito, todavia, a oportunidade para advertir contra os exageros. Todos temos de continuar a reflectir sobre esta prestimosa herança dos fundadores da Claridade, dado que semelhante linguagem ou estilo resultou dum propósito e não dum processo espontâneo e natural. Rigorosamente podemos asseverar que não existe esse português nas nossas ilhas. Quando muito, o português das pessoas de fraca instrução poderá aproximar-se daquele, ou vice- versa. Eu apenas sugeri que se evitassem os exageros, para não se cair em artificialismos desnecessários. Desnecessários porquê? Desnecessário porque o nosso português, por mais bem falado ou escrito, é um português algo diferenciado do de Portugal. Desde que falemos ou escrevamos despreocupadamente, somos inconfundivelmente cabo-verdianos, embora usando a língua portuguesa.. A História tornou-a adoptiva, conservando-lhe, todavia, o sabor de leite materno, por mais correcto que ela seja falada ou escrita com todas as exigências do saudoso C ónego Bouças do Seminário-Liceu de São Nicolau. Que no-lo digam os nossos irmãos brasileiros. Que no-lo digam os nossos irmãos de toda a África lusófona.
A revista Claridade surgiu cabo-verdianíssima por dentro e por fora, tanto na temática como na expressão. «Quand même», a primeira vaga de claridosos viria a ser acusada, décadas depois, de evasionista, pasargadista e alienada dos problemas concretos do povo, em termos das respectivas soluções.
A temática do mar, presente noutras literaturas insulares, teve em Eugénio Tavares o seu primeiro grande cultor, logo no dobrar do século. Os pioneiros da moderna literatura cabo-verdiana herdaram essa temática não como figurino literário, mas, sim, como algo fazendo parte da cabo-verdianidade. O mar e a emigração foram e são os factores do complexo cultural do nosso povo. Tais realidades nunca poderiam estar ausentes na poesia e na prosa dos claridosos.
O chamado pasargadismo proveio pura e simplesmente dum desabado poético de Osvaldo Alcântara, num simbolismo de inspiração manuel-bandeirense. Esse desabafo teve, antes, a força duma denúncia do que o comodismo duma renúncia. O resto que então se seguiu, foi mera especulação de cariz radical, própria da rebeldia juvenil. Pasárgada seria o reino da justiça, da abastança, da felicidade inexistentes nas nossas ilhas. Mais nada!
Os claridosos não fixaram os olhos apenas na linha do horizonte e no reino de Pasárgada. Falaram das secas, das fomes, das mortandades cíclicas, do vento leste, das pragas, das doenças, da sede de instrução e da dignificação do povo, dos caminhos insignificantes ziguezagueando por montes e vales, dos pescadores sacrificados, da infância abandonada, das grávidas de pernas inchadas pelas varizes, das rapariguinhas à cata de lenha, do gado a caminho da fonte; falaram das nossas canções, dos nossos contos populares, dos nossos instrumentos musicais, dos nossos folguedos e danças, falaram, em suma, de quanto é genuinamente cabo-verdiano.  Por mór desse discurso, foram considerados escritores da desgraça, em nada contribuindo para o optimismo da juventude. Entenda-se aqui o termo optimismo por alienação. Recordo-me, neste momento, de um programa radiofónico de autoria dum grupo de estudantes do Liceu de São Vicente, cujos textos eram previamente censurados pelo administrador do Concelho, que tinha o cuidado de cortar quanto fosse pessimista e irreverente, segundo seu critério. O programa intitulava-se Juventude em Foco. Funcionou nos finais da década de sessenta e princípios setenta. Os meus filhos mais velhos foram colaboradores desse programa.
Quando, em 1938, cheguei a Lisboa para frequentar a Universidade, não havia ainda arrancado o neo-realismo em Portugal (Portugal continental). Imperava o umbilicalismo presencista, uma literatura toda virada para os escaninhos freudianos duma burguesia em crise, divorciada do homem da rua, do homem do campo, do homem do mar, diferentemente do que ocorria em Cabo Verde desde 1936. O Dr. Baltasar Lopes da Silva presenciou do meu desencanto. Só em 1941, pude penetrar na tertúlia dos pioneiros do neo-realismo português e conhecer outras aberturas, incluindo o universo político. Só nessa altura, cheguei verdadeiramente à Europa. O deslumbramento foi de tal ordem que quase fiz perigar o cumprimento dos meus deveres escolares. Desenrolava-se a Segunda Guerra Mundial. As solicitações políticas e intelectuais eram tantas que me ia afogando num oceano de dispersão. Felizmente me frenei a tempo.
Não vou enumerar as personalidades dessa tertúlia, porque omitir alguém de muito prestígio na época. A esses amigos e camaradas dei a conhecer a jovem literatura cabo-verdiana. Ficaram impressionados com a imagem e o estilo dessa literatura. Nesse tempo, não se punha o problema de emancipação política das colónias portuguesas. Punha-se, sim, o problema genérico e universal da justiça social, das liberdades cívicas e da dignificação do homem. Acreditávamos que a vitória dos Aliados viria a viabilizar todos aqueles ideais. Nessa perspectiva, estabelecíamos analogias entre a humanidade de cá e de lá, e, uma vez feita a grande mudança na Metrópole, semelhante mudança reflectir-se-ia também nas colónias. (Diga-se de passagem, uma perspectiva simplista e imatura). De sorte que uma literatura como a da Claridade, denunciadora das deploráveis realidades de Cabo Verde, nunca poderia deixar de ser saudada com entusiasmo pelos neo-realistas de Lisboa. Estes tinham começado a fazer o mesmo no quadrilátero europeu que habitavam.
A problemática colonial na década de 40, pelo menos em Portugal, sobrepunha-se à problemática do proletariado em geral, encontrando-se em horizonte muito esfumado a autodeterminação dos povos colonizados. Achávamos certo que, por exemplo, um Langston Hughes, poeta negro, cantasse alto e bom som «I am America too», numa atitude reivindicativa face à sociedade branca. Acharíamos também certo, nessa altura, que um poeta cabo-verdiano bradasse «eu também sou Portugal, ponham-me à mesa do banquete nacional, e não me mandem comer para a cozinha». Ora, na década de 30, mesmo na de 40, os claridosos não podiam posicionar-se da mesma forma que a geração de sessenta, em relação à problemática colonial. Isto teria sido um prodígio de antecipação política, ainda mais sensacional do que a precocidade neo-realista do movimento literário em causa.
Diga-se, todavia, em abono da verdade, que os grandes responsáveis pela modernização da literatura cabo-verdiana não chegaram a dar-se conta do salto histórico por eles realizado. Não lhes passou pela cabeça que se estavam a antecipar à afirmação nacionalista da geração de sessenta. Quando se interroga os poucos sobreviventes da arrancada memorável, acerca do «primum movens» de semelhante tomada de rumo, fica-se insatisfeito com a resposta e explicações que dão. Na sede da Associação Portuguesa de Autores, disse Manuel Lopes, a propósito do cinquentenário da Claridade, que nada de extraordinário haviam feito. Que se limitaram a agarrar a realidade cabo-verdiana e pô-la no papel. Esta visão de um dos maiores escritores daquela geração não deve, porém, ser encarada de forma simplista. Semelhante visão confirma a teoria de confluência de factores na eclosão de determinados movimentos, um dos quais literário. Em todos os grandes acontecimentos históricos, políticos, filosóficos, religiosos, científicos, existe quase sempre uma fase premonitória, na génese da qual não se isola um único responsável, mas, sim, toda uma colectividade ou uma èlite, todo um  país ou um grupo de países. No caso da Claridade, revista que nasceu por falta de cinquenta contos de reis para pagar a caução do jornal que então se ambicionava, segundo explicou Baltasar Lopes, houve a confluência dos seguintes factores:
– marcada diferenciação cultural do cabo-verdiano;
– isolamento total das ilhas em relação a uma Pátria distante e indiferente ao destino das respectivas populações;
– sobrevivência dependente da emigração;
– sentimento de solidariedade da camada ilustrada para com as maiores vítimas desse abandono;
– constatação de diferenças de direitos cívicos entre os naturais do arquipélago e os naturais da Metrópole;
– inexistência de uma literatura que falasse das gentes e das coisas da terra;
– finalmente, a chibatada tónica proveniente do Brasil, através da mensagem dos modernos escritores daquele país verdadeiramente irmão.
Não vou analisar cada um dos factores anunciados. Tal ultrapassaria o âmbito dum simples artigo. Não deixarei, todavia, de repetir que a Claridade não nasceu por acaso. A vigorosa cabo-verdianidade dos claridosos e o impacto causado pela, então, pujante literatura brasileira, nomeadamente pela literatura nordestina, fizeram despoletar essa maneira nova de escrever Cabo Verde. As perspectivas políticas viriam mais tarde a confrontar-se com a mensagem da Claridade, esta limitada ao campo estritamente literário. As mesmas perspectivas, com o rodar dos anos, viriam finalmente a descobrir no movimento claridoso, o seu «back ground» cultural, sem o qual nenhuma Pátria se constrói.
Da CLARIDADE caímos na CLARIVIDÊNCIA.
*Publicado a 18 de Outubro de 1993

Escola de Padre e Escola de Rei

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Aproveitando a efeméride do centenário do nascimento do médico, escritor e ensaísta, Henrique Teixeira de Sousa (1919); e porque o assunto contido no texto que ora se (re)publica, não perde actualidade, fomos a um número do Jornal «Terra Nova» do ano 2000 e seleccionámos este texto que nos transporta ao passado da  literacia nas ilhas. 


Por H. Teixeira de Sousa*

A gente jovem de Cabo Verde já não deve saber o que significa a designação escola de rei. A época colonial vai-se esfumando na memória colectiva; quem tinha zero anos de idade já hoje conta com vinte e cinco primaveras, quem fizera dez anos na ocasião de independência nacional, é actualmente um adulto de trinta e cinco anos. A moderna geração possui outras referências, novos valores, os quais não se enquadram nos cânones do passado. Nem por isso, porém, se pode dispensar a retrospecção dos factos e acontecimentos, exercício que é de suma importância para o conhecimento rigoroso do que agora somos.
Daí que desta vez a minha crónica se debruça um pouco sobre o ensino em Cabo Verde, desde os primórdios do respectivo povoamento. É assunto já abordado por alguns estudiosos, por exemplo, António Carreira, mas que não é de mais reabordar, com vista à informação da juventude.
Folheando uma colectânea de Boletins Oficiais de Cabo Verde, de entre 1849 a 1850, volume já bastante danificado pela traça, da minha biblioteca pessoal, deparei com o texto oficial que criava na ilha Brava a Escola de Instrução Superior, Primária e Secundária. E porquê nesta ilha? Por uma de duas razões, ou por causa da salubridade daquela estância, ou porque nela se achava sediado o governo da província. Ou talvez ainda pelas duas razões juntas. Esta escola funcionou durante dez anos. Antecedeu-lhe o Liceu Nacional, sediado na Praia, em 1846, tendo tido uma efémera duração, com certeza neste caso, por motivo da malária que em Santiago fustigava todo o ano a população, mais intensamente nos meses chuvosos. Ainda nos anos 50 e primórdios de 60 o panorama palúdico não era nada famoso, como provaram as prospecções levadas a efeito pela Missão de Estudo e Combate de Endemias, sob chefia do Dr. Manuel Meira. Havia zonas com índices parasitários e esplénico assustadores. Era rara a criança com idade inferior a 12 anos que não exibia esplenomegália (baço aumentado de volume). O insecto vector era (e continua a ser) o anopheles gambiae, mosquito que não encontramos na ilha Brava, onde portanto não existia, nem existe, o paludismo endémico. O curioso é que em Santo Antão encontrámos anopheles gambiae, mas nenhum caso de malária autóctone, situação que se designa por anophelismo sem paludismo. Mas não interessa agora esmiuçar.
As matérias ensinadas nessa escola da Brava, ao longo dos quatro anos de frequência, iam desde a leitura, passando pela escrita, aritmética, geometria, gramática, história portuguesa, doutrina cristã, até ao estudo dos produtos naturais do arquipélago, ou que nele se fabricavam, e que fossem, ou pudessem ser objecto de indústria ou de comércio, ou ainda dignos de terem lugar na economia doméstica. Este último período, com tantas disjuntivas e copulativas, até se parece com a prosa do século dezoito. Adiante. Semelhante atenção dada aos produtos naturais constitui facto de estranhar, numa época em que o ensino era demasiado centralizado em relação ao reino. Os textos falavam em castanheiro, nogueira, pinheiro, etc., omitindo a flora local. Ainda foi assim no meu tempo e no dos meus filhos mais velhos. A história era a do reino da metrópole, sucessivamente. A geografia era a corografia de Portugal continental e das ilhas adjacentes dos Açores e da Madeira.
Recuando um século, em relação à data da criação da Escola da Brava, temos que em 1772, ao surgirem as primeiras escolas oficiais em Portugal (escolas régias, chamadas escolas de rei em Cabo Verde), o Conselho Ultramarino autorizou a abertura de estabelecimentos de ensino semelhantes no nosso arquipélago. Mas esta autorização não teve andamento por falta de verba. A pequeníssima percentagem da população que conseguia aprender a ler e a escrever, ficava a deve-lo aos mestres particulares ou à escola da paróquia. Os mestres-escola e os párocos de freguesia tiveram um papel relevante na alfabetização das gentes do arquipélago. Em 1811 a situação mantinha-se a mesma, isto é, as escolas régias (escolas de rei) achavam-se apenas no papel, facto que mereceu severo reparo por parte da Corte no Rio de Janeiro. Na altura a realeza encontrava-se sediada no Brasil. O orçamento de Cabo Verde não suportava a difusão de escolas, pelo que ainda no ano lectivo de 1837-38 não funcionavam mais do que dez estabelecimentos de ensino em toda a Província. Em 1842 o número de escolas primárias alcançou a cifra de trinta e três.
Convém recuar ainda mais no tempo para ver quão meritória foi a intervenção da Igreja Católica na esfera do ensino. De tal maneira que podemos afirmar que o ponto de partida da literacia em Cabo Verde se situou à sombra da batina eclesiástica.
Em 1546 o rei permitiu que homens pretos e mestiços pudessem entrar em cargos públicos. Estes pretos e mestiços alfabetizados, eram os que iam sendo ensinados nas chamadas escolas de ler e escrever, escolas ministradas pelos clérigos.
Em 1555 começou a ordenação de sacerdotes entre os nativos. Mas a instalação dum Seminário como tal, levaria alguns séculos para se concretizar. A Igreja já não se conformava com a existência de tonsurados suficientes para fazer a cobertura religiosa do arquipélago. Daí que fosse muito importante a criação do Seminário de São Nicolau, pelo qual se bateu denodadamente o bispo D. José Alves Feijó. Finalmente o decreto de 1866 criava o Seminário-Liceu da Ribeira Brava. E porquê Seminário-Liceu e não Seminário tout court? Semelhante gemenismo foi uma estratégia do bispo. Como não tinha dinheiro para sustentar um seminário, propôs a inclusão do ensino laico no dito estabelecimento, ao lado da preparação eclesiástica, em ordem a obter a verba do Estado para o objectivo em vista.
Como a gente sabe, foi desse alfobre que começaram a surgir os primeiros quadros do funcionalismo público, devidamente qualificados, os primeiros poetas e prosadores do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, os primeiros indícios duma intelligentsia local que haveria de evoluir até à eclosão do movimento cultural da Claridade. Não fora a Igreja católica, o nosso percurso histórico teria sido outro, mais sombrio naturalmente.
*Publicado no “Terra Nova” de Novembro de 2000

Querem datas giras para duvidar da validade do Acordo Ortográfico? Aqui vão algumas

sábado, 10 de agosto de 2019

Por Nuno Pacheco*
Com tão estranhas datas, como é que o AO “entrou em vigor, a nível internacional, em 1 de Janeiro de 2007”?
Invocando a Lei de Imprensa, quis o ministro dos Negócios Estrangeiros rectificar duas afirmações por mim feitas na crónica “O acordo ortográfico ainda é uma caixinha de surpresas” (25/7/2019): a primeira é que, na verdade, já respondera ao deputado José Carlos Barros (PSD); a segunda é que, no pedido que o deputado lhe endereçara, solicitando acesso aos instrumentos de ratificação do Acordo Ortográfico (AO) depositados no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), este não se tinha identificado como coordenador e relator do Grupo de Trabalho para a Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico de 1990. É verdade, tem razão nas duas! A resposta foi enviada (embora nem o deputado soubesse dela, quando lho perguntei) e ele, na verdade, identificara-se “apenas” como deputado. Mas teria feito alguma diferença para a resposta dada? Que os documentos solicitados não poderiam ser mostrados porque (escreveu o ministro) “detêm natureza de documento diplomático e, por isso, constituem documentos de acesso legalmente restrito”? Na verdade, o deputado podia até intitular-se ministro plenipotenciário da Santa Sé, que nada obteria dos cofres sagrados da diplomacia.
Mas sagrados porquê? Terão os instrumentos de ratificação do AO algo secreto, como dados sobre segurança interna, defesa, estratégias a adoptar em casa de invasões ou guerras? Não, teoricamente falam apenas de ortografia. Então porquê tanto segredo? Talvez isto ajude: o deputado enviou o seu pedido, pelos trâmites legais, a 16 de Junho; o ministro, também pela mesma via, despachou a resposta no dia 18 de Julho. Aliás, nem foi bem ele, a resposta vinha assinada pela sua chefe de gabinete e nem foi enviada directamente ao deputado, mas sim à chefe de gabinete do secretário de Estado Adjunto dos Assuntos Parlamentares. Parece que tem de ser assim, lá por São Bento, para tornar as coisas mais rápidas. Demorou, tudo isto, um mês e dois dias. Mas para responder ao PÚBLICO, o ministro já demorou… menos de 24 horas. E nem recorreu a chefes de gabinete, assinou ele próprio o documento. O que justifica tal pressa? Talvez irritação. O kaiser do Acordo Ortográfico, como lhe chamei e repito, já não deve poder aturar os que constantemente lhe pedem que o seu ministério (MNE) seja claro e transparente, para que não o acusem de omitir dados. Mas tem bom remédio, o bem-amado kaiser: exiba os comprovativos. E tente justificar as datas que adiantou ao PÚBLICO, como antes fizera ao deputado. Mas vamos a elas. Para o Acordo Ortográfico entrar em vigor era necessário, de início, o depósito dos “instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Portuguesa” (no MNE). Em 1990 previa-se que entrasse em vigor em 1994. Não entrou, e isso levou a dois protocolos modificativos, assinados respectivamente em 1998 e 2004, o primeiro dispensando a mirífica data e o segundo reduzindo para três o número de Estados necessários para a validação. Só que cada um destes documentos precisava, como é óbvio, de ser não apenas validado pelos Estados em causa como a prova dessas validações ser depositada oficialmente em Portugal.
Irritado? Tem bom remédio, o ministro: exiba comprovativos. E tente justificar datas que não batem certo
O que escreveu o ministro, “para esclarecimento dos leitores interessados”? Que “Portugal procedeu ao depósito do seu instrumento de ratificação do Acordo Ortográfico a 30 de abril de 1996 e depositou o instrumento de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo a 13 de maio de 2009.” E o primeiro, ratificou-o quando? Ou esqueceu-se?
Cabo Verde, segundo o ministro, “depositou o seu instrumento de ratificação do Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa a 5 de dezembro de 2006 e procedeu ao depósito do instrumento de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo a 12 de junho de 2006.” Não refere a data do depósito de ratificação do próprio AO, que Cabo Verde terá aprovado internamente pelo Decreto-Lei 26/91, de 1 de Abril de 1991. Quando terá sido? Nesse mesmo ano? Muito mais tarde? Era importante saber. Mas em relação a este país ainda há outra coisa, bem mais absurda. No Boletim Oficial da República de Cabo Verde n.º 22, de 30 de Maio de 2005, foram publicados dois decretos, ambos com a data de 30/5, um aprovando o primeiro protocolo (4/2005) e outro o segundo (5/2005), para entrarem ambos em vigor “no dia seguinte ao da sua publicação”, ou seja, a 31 de Maio. Isto faria sentido se três anos e meio mais tarde não surgisse, publicado também no Boletim Oficial da República de Cabo Verde, no n.º 47 de 14 de Dezembro de 2009, um outro decreto, o n.º 10/2009, onde se dizia: “Considerando que o Acordo entrou em vigor, a nível internacional, em 1 de Janeiro de 2007” e “tendo em conta que, de entre outros aspectos, o protocolo [não diz qual, embora reÆra no preâmbulo ambos, o primeiro e o segundo] já entrou em execução no Brasil (desde Janeiro de 2009), o Conselho de Ministros determinou que em Cabo Verde a entrada em execução do referido Acordo Ortográfico seja em Outubro de 2009.” Pasme-se: em 14 de Dezembro determina-se que uma coisa entre em vigor dois meses e meio antes!
Não é exclusivo de Cabo Verde, esta “viagem no tempo”. Já em Outubro de 2010, o tradutor João Roque Dias reproduzira no Facebook o Aviso n.º 255/2010 do MNE português, que o Governo fizera publicar no Diário da República n.º 182 (de 17 de Setembro de 2010), em que se informava que o Acordo Ortográfico tinha entrado em vigor em Portugal em 13 de Maio de 2009 (data, diziam, do “depósito do respectivo instrumento de ratificação”). Ou seja, como comentou à data João Roque Dias: “um ano, quatro meses e quatro dias antes”. Será isto normal?!
Mas voltando a Cabo Verde. É curioso que, garantindo o ministro que este país “procedeu ao depósito do instrumento de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo a 12 de junho de 2006”, o artigo 3.º do Decreto n.º 10/2009, de 14 de Dezembro de 2009, diga isto: “O Governo de Cabo Verde deve, com a urgência possível, notificar o Ministério dos Negócios Estrangeiros da República de Portugal, sobre a aprovação do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e a entrada em execução e em vigor desse mesmo instrumento normativo.” Vejam: em Dezembro, Cabo Verde garantia que “a entrada em execução seja em Outubro” (primeira viagem no tempo); e, depois, dizia que “deve, com a urgência possível”, notificar o ministro de um depósito que este diz ter recebido três anos antes (segunda viagem no tempo, ou um bom capítulo para uma qualquer Guerra das Estrelas).
Mas porquê a data de 12 de Junho de 2006? Fácil. Porque é essa data que o ministro dá para o depósito, por parte do Brasil, do “instrumento de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo a 12 de junho de 2006”. Conclusão: numa miraculosa conjugação de estrelas, Brasil e Cabo Verde entregaram a mesma ratificação no mesmo dia e ao mesmo tempo! Só é pena que Cabo Verde se tenha lembrado, três anos e meio mais tarde, e ainda por cima num decreto publicado, que precisava avisar o MNE português de que ainda lhe faltava fazê-lo…
Resta São Tomé e Príncipe, para completar o quarteto onde assenta o malfadado acordo. O que diz o ministro? “No que diz respeito a São Tomé e Príncipe, este depositou o instrumento de ratificação do Acordo Ortográfico, do Protocolo Modificativo e do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo a 6 de dezembro de 2006.” Tudo ao mesmo tempo? Vejamos: há, de facto, uma resolução publicada no Diário da República de São Tomé e Príncipe n.º 48, mas de 29 de Dezembro de 2006. Ou seja, posterior à data avançada pelo ministro. Mas essa Resolução, n.º 04/VIII/06, aprovada na Assembleia Nacional em 29 de Junho de 2006, refere-se apenas ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (“cujo texto faz parte integrante da presente Resolução”), omitindo qualquer dos protocolos que o modificaram. E não há registo de nenhuma resolução ou decreto posterior, no diário oficial são-tomense, que se lhes refira.
Finalizando (por agora): se Portugal só ratificou o Segundo Protocolo em 2009, a 13 de Maio (data célebre, não devido à ortografia mas a Fátima); se de São Tomé não se conhece registo de que tal protocolo tenha sido mesmo ratificado; e se Cabo Verde, em Dezembro de 2009, ainda estava a pensar notificar o MNE, “com a urgência possível”, da sua ratificação interna, como é possível afirmar (como se lê em notas, avisos e decretos) que o AO “entrou em vigor, a nível internacional, em 1 de Janeiro de 2007”? Não era altura de tais documentos serem mostrados a uma alta instituição, independente e idónea (talvez a Presidência da República ou a provedora de Justiça), para deslindar, seriamente, esta monumental trapalhada?
*Jornalista. (nuno.pacheco@publico.pt)
Público de 09.Ago.2019