Mulher, Mãe, Monoparental - Ou os três “M” da Pobreza

quinta-feira, 30 de março de 2023

 

A fechar o chamado “Mês da Mulher,” gostaria de registar aqui, algo que de há muito me vem preocupando e que diz respeito ao modelo de família em Cabo Verde.

Temos vindo a ouvir de forma já esperada, reiterada e recorrente ao longo de anos, -sobretudo quando chega o mês de Março - o elogio da mulher-mãe de família monoparental que carrega sozinha nos seus ombros, a missão parental e a tarefa da criação e da educação dos filhos, regra geral numerosos e sem a presença do progenitor deles. Não nego que ela não seja merecedora de respeito e dos encómios que à volta dela são tecidos. Isto tendo em consideração, a luta que ela trava no seu dia a dia, para garantir a sobrevivência condigna do seu agregado familiar.

Ora bem, uma coisa é a verificação desta realidade existente entre nós, e ela infelizmente, nos conduz ao tipo de família monoparental - em que a mulher é a chefe de família - como o modelo de família de significativa faixa da nossa população - sobretudo a mais pobre e a menos escolarizada

Coisa outra e bem diferente é igualmente verificar que este modelo familiar não deixa de ser um mau modelo e, como tal, deve merecer a nossa reflexão crítica, no sentido da sua minoração ou mesmo, da sua erradicação do tecido populacional futuro, destas ilhas.

É minha convicção de que estamos perante um dos problemas mais dolorosos e mais desafiantes que este país tem por resolver a bem da criança e da família.

Mas vamos por partes, e vamos tentar enumerar aquilo que se aproxima de uma família nuclear, capaz de sustentar, de educar os filhos e de torná-los futuros cidadãos cívicos, seguros e confiantes para a vida.

Para isso, teremos de eleger alguns parâmetros, como ponto de partida para a construção do núcleo familiar:

1-Toda a criança precisa e quer ter a presença da mãe e do pai.  Os dois são figuras referenciais indispensáveis para o seu equilíbrio emocional e para a sua segurança física e psíquica.

Esta deve ser a premissa fundamental para os jovens quando pensam e desejam constituir família. A presença e a responsabilização de ambos os progenitores, é a fortaleza, mais segura e protectora da criança. Salvo, os casos imponderáveis que infelizmente acontecem em que a criança é criada apenas por um dos progenitores.

Ressalvados  aqueles casos, o modelo monoparental de família deve ser excepção e não regra

2- A escola deve aprofundar e destacar no seu programa de Formação Pessoal e Social, dirigido a alunos de ambos os sexos, as questões relativas à família e à necessidade da responsabilidade parental num quadro equitativo de responsabilidades distribuídas entre o pai e a mãe.

3 – Na mesma linha mostrar a futuros pais, o negativo de a criança ser criada e educada no seio de família monoparental. Os problemas disso advenientes. A pobreza material e o déficit educativo que lhe estão adjacentes. Para exemplificar: os casos de rebeldia e de marginalidade infanto/juvenil; o insucesso escolar precoce, são fenómenos que ocorrem com muita frequência neste tipo de família. Teses e estudos feitos apontam para os malefícios sociais que impendem sobre a criança educada no seio de família monoparental, disfuncional e pobre.   

4 – A sociedade no seu todo, os parceiros sociais da família,  as Associações da Família, a Igreja, a Comunicação Social, os governantes, deveriam aproveitar o mês de Março, incluindo, o Dia do Pai, para fazer ver que a família monoparental não é a melhor, e nem poderá ser a desejável - nem de longe, nem de perto - para a nossa criança, porque naturalmente disfuncional em termos de afecto e de cuidados que ela precisa dos pais e, para além do mais, regra geral, à família parental está associada e muito próxima, a ideia de pobreza. Por vezes, até é sinónima dela (a pobreza).

 Todavia, para mal dos nossos pecados, é assim que vive uma parcela muito significativa de crianças em Cabo Verde.

Para terminar, tal como vem no título que encima este escrito, a Mulher cabo-verdiana cantada e elogiada no mês de Março é normalmente mãe de família monoparental em que não abunda nem afecto, nem cuidados e nem pão.

Concluindo, esta forma de organização familiar, representa uma das maiores calamidades sociais destas ilhas.

 

 

 

terça-feira, 28 de março de 2023

 


O livro «Ao Sabor dos Ventos», foi apresentado no dia 29 do mês que ora finda, na Casa da Memória, na cidade de São Filipe na ilha do Fogo.

A autora, Gilda Marta Vieira de Vasconcelos Barbosa, nasceu na ilha do Fogo, na cidade da São Filipe onde reside actualmente. Aposentada. Licenciou-se em Ciências Matemáticas, na Universidade de Coimbra. Foi professora no Liceu da  cidade da Praia, e no Seminário de São José da mesma cidade. Mais tarde, entrou para o Serviço Social da Igreja e foi Secretária-Geral da Cáritas de Cabo Verde.

«Ao Sabor dos Ventos» resultou de um conjunto de crónicas que foram publicadas no Jornal «Terra Nova», durante um largo período de tempo.

Saúdo efusivamente a autora, felicitando-a por este valioso livro que ora passa para os leitores, na certeza de que está a concorrer para um conhecimento mais aprofundado, com muita seriedade, de questões históricas, sociais, entre outras, da ilha do Fogo, que o livro foca, num estilo sóbrio e escorreito que é apanágio da  autora, Gilda Barbosa.

Igualmente, aproveitar para dizer que é bom que o leitor seja e esteja prevenido, que na leitura de: «Ao Sabor dos Ventos”, estará perante uma autora de uma probidade e de uma honestidade intelectuais, a toda a prova.

Gilda Barbosa investiga e interroga-se muito sobre os conteúdos do seu labor de pesquisadora. Não se contenta e nem dá por definitivo as hipóteses e por vezes, nem mesmo as teses que defendem tal e tal ponto de vista sobre determinado assunto. Não, o leitor terá ocasião, ao ler o livro, de verificar que a autora tem dúvidas -sempre na linha da dúvida metódica - muitas vezes sobre as origens e os inícios, dos pilares que foram estruturantes para a criação da sociedade foguense.  Ela também tenta desfazer alguns mitos sobre as gentes da ilha do Fogo, focando sobretudo, as famílias outrora gradas, da cidade de São Filipe.

Para isso, a autora pesquisou com seriedade e só concluiu o facto histórico ou, o facto social, que nos descreve, quando, o grau de certeza, na pesquisa que ela encetou, a conduzir à verdade, ou, à aproximação dessa mesma verdade.

Aliás, a autora, numa atitude de despojamento que diria intelectual, lança os seus questionamentos, as suas interrogações, os quais, fazem com que o leitor se sinta seu aliado, e se sinta também envolvido no processo da descoberta da verdade demandada pela autora.

Afinal, tudo isto, acaba por revelar também que Gilda Barbosa é portadora de uma enorme e notável humildade intelectual.

E isso, cria muita empatia com quem esteja a ler as crónicas coligidas neste livro e torna sumamente agradável a sua leitura.

Para além disso, ao longo da leitura de «Ao Sabor dos Ventos», o leitor aperceber-se-á de que está perante alguém, - Gilda Marta Barbosa - que veicula na sua escrita, os valores cristãos que fizeram e que fazem parte da sua educação, da sua formação, pois que são parte integrante do seu ser e do seu estar perante a vida.

Ora bem, as matérias e os assuntos contidos e desenvolvido ao longo dos sete capítulos, são versados com sobriedade, com mestria, de quem deseja que a sua mensagem seja lida e entendida por todos. Aliás, é a própria autora que no-lo diz numa frase interessante, inserta na “Nota Introdutória”, passamos a citar: “(…) acessível a qualquer um” fim de citação.

Convido e exorto o leitor a ler este precioso legado de quem sabe e  de quem conhece bem a sua ilha e, sobretudo, a sua cidade.

Obrigada, querida Gilda!

 

Praia, Março de 2023.


quarta-feira, 22 de março de 2023

 

À atenção do Leitor:

Copiei o texto para o “Blog” porque se trata de uma notícia com interesse para os que estudam a Língua portuguesa nos seus curricula escolares e para aqueles que lhe atribuem importância como língua veicular do Ensino em Cabo Verde. Uma boa preparação do aluno na disciplina de Português é meio caminho bem andado para o acesso ao ensino superior, quer dentro e quer fora do país. E neste último caso, gostaria de referir com real destaque, as universidades portuguesas que são a maior demanda de alunos cabo-verdianos. Neste momento, 2023, estão mais de 1000 alunos cabo-verdianos a estudar em Institutos Politécnicos e em Universidades em Portugal. Tem sido a primeira escolha para as vagas que o Departamento de Formação do Ministério da Educação de Cabo Verde põe à disposição de candidatos que terminam com sucesso o ensino secundário.

Daí a relevância que ganham a oralidade e a escrita da nossa Língua segunda na Escola Pública nacional. E no momento actual, ganha maior importância para os nossos futuros estudantes universitários, com a recente institucionalização em alguns Estados americanos, como disciplina de acesso aos estudos superiores.

Tudo isto para afirmar que – no caso ilustrado no texto - se o aluno cabo-verdiano terminasse com boa preparação em Língua portuguesa, durante os seus estudos secundários, aqui em Cabo Verde e, estando nos Estados Unidos (como muitos fazem, atendendo à chamada de familiares, sobretudo o aluno oriundo da ilha do Fogo e da ilha Brava) após o término do 12º Ano, poderia aproveitar esta oportunidade de a Língua portuguesa ser  -nomeadamente, no Estado da Nova Inglaterra, e no Estado da Califórnia - uma das disciplinas que confere créditos para o acesso ao Ensino Superior. Inscrever-se-ia na referida disciplina, e aumentaria assim, as probabilidades de um início universitário nos Estados Unidos.

Por tudo isto, convido o leitor a ler o texto que se segue.

 

 

 

 

 

Exame de Português para acesso a universidades

nos EUA tem recorde de inscritos

O exame de português do National Examinations in World

Languages (NEWL), que confere créditos para acesso ao ensino

superior norte-americano, registou um recorde de alunos inscritos e é

já o idioma líder nesse segmento, segundo fontes oficiais.

 

Em declarações à Lusa, o coordenador do ensino português nos Estados

Unidos da América (EUA), João Caixinha, afirmou que já se inscreveram

577 alunos para a realização do exame, pelo que o número ainda deverá

aumentar, uma vez que as inscrições decorrem até ao final do mês.

As inscrições abriram no dia 01 de Março e em nove dias tivemos esta

excelente notícia por parte da American Councils for International

Education;, que é a organização que desenvolveu estes exames em

diversas línguas (...) com um programa do College Board;,que confere os

créditos de acesso ao ensino superior nos Estados Unidos. E realmente o

português, neste momento, é a língua líder nestes exames do NEWL,

explicou Caixinha.

 

Ao ter o maior número de inscrições até ao momento, o português

ultrapassou as restantes línguas que integram o NEWL, nomeadamente o

russo, o coreano e o árabe.

No ano passado, cerca de 300 alunos inscreveram-se para este exame de

português nos EUA.

De acordo com João Caixinha, a grande adesão registada este ano é fruto

de um trabalho e investimento que vêm sendo feitos ao longo dos últimos

anos por entidades que vão desde o instituto Camões, à Fundação Luso-

Americana para o Desenvolvimento (FLAD), passando pela rede

diplomática e consular nos EUA, e pela equipa de Coordenação do Ensino

de Português (CEPE-EUA).

Não é um projecto que começou agora. Portanto, começa a dar frutos

agora. E vemos isso porque há um maior interesse por parte das escolas

públicas, dos distritos escolares, de várias áreas do país. Não estamos a

falar apenas da região da Nova Inglaterra, estamos também a falar da

Califórnia, por exemplo. Só uma das escolas, em Tulare, tem 134 alunos

inscritos para este exame, o que é uma coisa inédita, sublinhou.

Outro dos estados norte-americanos onde a adesão está a ser significativa

é no Utah, onde foi celebrado um memorando de entendimento com o

Instituto Camões para reforçar o ensino da língua portuguesa e onde já

cerca de 2.600 alunos aprendem o idioma, de acordo com João Caixinha.

 

Os exames NEWL avaliam as competências linguísticas - compreensão

de texto, compreensão oral, produção escrita e produção oral - dos alunos

a partir do 9.º ano - quando podem realizar o exame para testar as suas

capacidades e conhecimentos -, até ao 12.º ano, quando podem usar o

exame para conseguir créditos de acesso ao ensino superior.

 

O exame de português NEWL está agendado para 26 de Abril e o valor da

inscrição é de 97 dólares (cerca de 91 euros).

Para os alunos que não puderem realizar o exame nessa data, haverá

uma segunda chamada em 28 e 29 de Abril, com o valor da inscrição a

passar para os 142 dólares (134 euros).

Tal como em edições anteriores, o exame também poderá ser realizado

no estrangeiro, sendo que o valor é de 140 dólares (131 euros).

Os estudantes portugueses ou lusodescendentes que se candidatem ao

exame de português do NEWL podem concorrer às 87 bolsas que o

Camões e a FLAD irão atribuir, e que totalizam 8.000 euros.

A edição de 2023 do exame será realizada em formato presencial nas

escolas (...), em articulação com os distritos escolares e com garantia de

qualidade por parte do College. Esta edição contará com uma

maior participação de estudantes das escolas comunitárias portuguesas

(regime paralelo) e uma grande percentagem de estudantes que

aprendem o nosso idioma nas escolas norte-americanas (regime integrado

do português), onde também residem fortes comunidades de expressão

portuguesa, indicou a CEPE-EUA em comunicado.

Lusa

Publicado 18 Mar, 2023, 10:43

sexta-feira, 17 de março de 2023

 

Alerta ao Leitor: este texto foi publicado em 2006 no Jornal «Expresso das Ilhas». Visto que o não havia publicado no Coral-Vermelho, decidi fazê-lo nesta data, pois creio que o assunto nele versado não prescreveu.

 

A Língua Portuguesa e a língua cabo-verdiana – Um caso de mútua aculturação?[i]

Quando se fala na caminhada, nas várias etapas, nas transformações e mesmo na evolução de uma língua viva, isto é, uma língua de comunicação permanente, que apreende e transmite o quotidiano, os sentimentos, o pensamento, e que “vê e organiza” o mundo de quem a fala, com certeza que nos acercámos da língua materna de um indivíduo.

Todo o seu processo de formação, de socialização, de transformação, de aquisição, e de permutas, quer fonéticas, quer lexicais, quer ainda morfossintácticas, semânticas, ou outro, o processo é complexo e dinâmico. E como não é possível, pelo menos, entre nós, por agora, montar um observatório linguístico em permanência, capaz de registar ao segundo, ao pormenor, com a frequência e o rigor necessários, as inúmeras e as constantes mutações  por que passam o nosso crioulo e a língua portuguesa presente nestas nossas ilhas, difícil se torna “travar” ou “imobilizar” cada instante sincrónico da(s) fala(s) cabo-verdiana e se me for permitido, melhor dito, dos falares, e/ou das variedades desses mesmos falares das ilhas, para se lhes apreender os mecanismos transcendentes da sua transformação.

Isto tudo, como pretexto para vos falar, ainda que de forma breve e muito pela rama, de fenómenos interessantes e, se calhar, imprevistos, que vêm sucedendo com a língua cabo-verdiana em determinados contextos da sua oralidade e do seu entroncamento cada vez mais visível na língua portuguesa actual.

Com efeito, o processo constante de mutações e de transformações na configuração por que passa o crioulo – há pouco mais de quatro décadas em condições autodeterminadas – fazem com que com decurso do tempo, ele se apetreche, se “aprimore” e se aproxime mais da língua portuguesa actual. As necessidades trazidas pelo processo de crescimento e de desenvolvimento social e económico de Cabo Verde potenciaram e guindaram a língua cabo-verdiana a patamares de maior exigência vocabular, de maior precisão e, por vezes, até de linguagem especializada para cada domínio de intervenção. Está hoje, sem dúvida, mais apetrechada, mais rica e, possivelmente, mais expressiva. Naturalmente que, para isso, tem ido à fonte principal e a que lhe está mais próxima e afim –  a língua portuguesa – à qual, reconhecida a paternidade, lhe pede e dela toma os vocábulos, as expressões e os articuladores para um discurso mais consentâneo e adequado para transmitir as novas exigências do desenvolvimento social, humano e tecnológico do Cabo Verde do século XXI. Agora já não basta o crioulo, o tradicional, a língua materna trazida de casa, não escolarizada. Trata-se, agora sim, de um veículo linguístico, oralmente mais elaborado, mais apurado, mais apetrechado e mais apto à comunicação da nova geração escolarizada do país. Conviria também anotar que esta variante oral do crioulo, não só pouco tem a ver com o português do século XV, XVI, trazido pelos marinheiros e pelos missionários, como também, apenas lhe sobram formas muito residuais da herança linguística africana  do século dos Descobrimentos portugueses, trazida nas diferentes oralidades dos escravos e que, na opinião abalizada de Baltazar Lopes da Silva nunca passou dos 3%.

Interessante é que se trata também de um fenómeno linguístico, se calhar, não previsto e nem esperado. Os linguistas nacionais, os estudiosos das questões do crioulo cabo-verdiano, talvez não contassem com esta trajectória da Língua cabo-verdiana. Talvez idilicamente e com alguma singeleza, conjecturassem que, com a nobilitação do crioulo, havida realmente com o advento da independência do país, e cortado o “cordão umbilical” do crioulo com o português, aquele se «fechasse» sobre si próprio, se sedimentasse, naturalmente, e depois no processo de interacção do organismo vivo que é uma língua de comunicação, ganhasse novos “apports”, talvez de outras línguas, num Cabo Verde independente. Quem sabe!?...

Mas nada disso aconteceu. A Língua cabo-verdiana e a Língua portuguesa aqui nas ilhas, estão cada vez  mais unidas e mais interdependentes uma da outra. É um facto.

Por outro lado, existem também os falantes e os estudiosos desta questão, que consideram esta nova norma oral do crioulo -  cujo léxico é directamente fornecida pela Língua portuguesa actual - uma excelente via de homogeneização das diferentes variantes islenhas do Crioulo, facilitando a sua aprendizagem aos estrangeiros, e a sua escrita ao falante nativo, num quadro  não só de cooperação para o desenvolvimento, que Cabo Verde não dispensa, mas também, mostrando um sentido para o qual caminha o crioulo à medida que aumenta a escolaridade.

Assim vejam nisso, maiores vantagens comunicativas da Língua cabo-verdiana…

Note-se que a língua veicular do ensino em Cabo Verde é e tem sido até agora, a língua portuguesa.

Logo, este, talvez seja o novo Crioulo oral das ilhas de Cabo Verde, que se vem desenvolvendo, depois do processo da independência do país. O qual, para além de revelar maior literacia, é também portador de um corpus lexical mais alargado, e está, sem dúvida, muito mais próximo da língua portuguesa actual que de outras heranças ancestrais. É falado, sobretudo, em situações de comunicação formal e mediática por falantes com alto grau de escolaridade. Digamos que é o veículo que serve ao governante, ao professor, ao intelectual, ao técnico, ao político para difundir o seu discurso sectorial específico à população-alvo.

Uma série de fenómenos em que o aumento da escolaridade no país, o acesso aos media e a rápida difusão e, nomeadamente, a expansão e a abrangência intercontinental através da rádio, da televisão, a exibição das telenovelas brasileiras, portuguesas e angolanas em quase todos os canais televisivos de língua portuguesa, o seu acesso nas principais cidades e nas sedes municipais – através de antenas parabólicas, privadas e comunitárias, estas, já com alguns anos de funcionamento – somados e conjunturalmente simultâneos, podem explicar a aceleração nessa reviravolta linguística do crioulo de Cabo Verde e podem também ser considerados agentes transformadores e agentes fornecedores de novos vocábulos, de novas expressões, de uma linguagem melhor articulada para questões de natureza técnica, política e científica.

 Aliás, como já aqui referido, já se notam no país os novos falantes deste também inovado e mais enriquecido veículo de comunicação.

Trata-se de um veículo linguístico, falado por uma elite letrada, que ocupa cargos de responsabilidade nos diversos sectores da sociedade, que vai mais vezes à comunicação social e que se encarrega naturalmente de o difundir. Porque toda a elite é uma referência e um modelo a seguir nas sociedades novas, como é o caso de Cabo Verde, é nossa convicção de que estamos a assistir ao nascimento e ao desenvolvimento de uma nova via oral de comunicação erudita e elaborada do crioulo de Cabo Verde e que muito deve, já não à língua portuguesa da era dos Descobrimentos, mas sim, à língua portuguesa actual, deste século.

Independentemente do querer e das “barafundas”, passe a expressão, dos falantes, dos gramáticos, dos linguistas, quer de uma ou de outra língua, as duas, a língua portuguesa e a língua cabo-verdiana, o crioulo, de/e em Cabo Verde, mantêm-se unidas e actualmente, cada vez mais cúmplices, mais interdependentes uma da outra, nesse processo de permutar, de alterar e de transformar vocábulos; de trocar palavras, de reter e de absorver mutuamente construções antigas e novas, recriando-se constantemente a um ritmo e numa interacção tais, só explicáveis, se calhar, por este tempo de globalização. É que também devemos falar no português de Cabo Verde, climatizado e aculturado num processo e num ambiente fortemente crioulístico.

Retomando o grande filólogo, Baltasar Lopes da Silva, este afirmava em 1956, numa soberba intervenção numa das sessões da “Mesa-Redonda sobre o Homem cabo-verdiano” a propósito daquilo que ele definiu como a constante e progressiva “aristocratização” do crioulo: «o crioulo numa situação diferente da que estiveram o português, ou qualquer língua românica com o latim. Quando certas línguas se formaram o latim já não era na realidade viva, ao passo que nós notámos um dialecto, um idioma, que evolui sob os olhos da língua matriz, sob uma influência constante da tal língua matriz. Há este princípio da aristocratização que se nota por toda a parte

De se notar também, o que tem sido a reacção de alguns estudiosos, entre nós hodiernamente. A respeito do fenómeno: Acham que, nomeadamente, é necessário “contrariar” essa nova tendência do crioulo em transformar-se num “criouguês”, ou num “crioulês” como já se diz humoristicamente entre nós. Para alguns, a solução é rapidamente alfabetizar e ensinar de forma distinta e correcta, o falante cabo-verdiano, tanto em língua cabo-verdiana, como em língua portuguesa.

Embora concordando de que estamos necessitados de uma boa metodologia para o ensino das línguas vivas, de comunicação oficial e materna do país, no meu entender, trata-se de um caso interessante de conluio linguístico e de mútua aculturação que se vêm processando entre a Língua cabo-verdiana e a Língua portuguesa e, ao que tudo indica, sem pressa de desfecho e, a acontecer, de difícil previsão.



[i] In “Expresso da Ilhas” de 25.10.2006

 

Será que burro velho não aprende línguas?

quinta-feira, 16 de março de 2023

É nossa opinião que o tema tratado no texto tem interesse para o Leitor do Coral -Vermelho - com a devida vénia à sua autora - tomámos a liberdade de aqui o transcrever. 

 

Margarita Correia

Na maioria das vezes, os animais referidos nos provérbios constituem personificações, i.e., representam humanos com determinados comportamentos e características, e o provérbio expressa um julgamento (moral, ético, social…) sobre eles - e.g. "cão que ladra não morde", "a curiosidade matou o gato", "a bezerrinha mansa mama a sua e a alheia", "grão a grão, enche a galinha o papo". Não compreendo, por isso, iniciativas como a de pretender modificar os provérbios populares para eliminar linguagem ofensiva para os animais - como se os animais se ofendessem e como se não representassem, precisamente, os humanos!

Um dos provérbios que mais me ocorre e sobre o qual mais perguntas me fazem é "burro velho não aprende línguas". A concepção por trás do provérbio é a de que uma pessoa (o burro) a partir de certa idade (velho) não será capaz de aprender línguas, exceptuado a materna, que adquirimos sem esforço, na infância. O provérbio expressa um facto incontestável: o de que as crianças, intuitiva e rapidamente, aprendem as línguas com as quais estiverem em contacto, sem esforço, enquanto os adultos não conseguem fazê-lo. A Psicologia, a Neurologia e a Linguística explicam-no com base no fenómeno conhecido como neuro plasticidade, plasticidade neuronal ou cerebral.

Plasticidade é sinónimo de maleabilidade e denomina a capacidade de um corpo se deformar sem romper ou quebrar, i.e. a de uma entidade se adaptar ao meio e às circunstâncias. É característica de todos os seres vivos. A plasticidade neuronal diz respeito à capacidade do sistema nervoso central, cérebro incluído, de mudar ou se adaptar, do ponto de vista estrutural e/ou funcional, ao longo desenvolvimento e sempre que o sujeito é exposto a experiências ou estímulos novos.

Aprendizagem pode ser entendida como plasticidade e o cérebro humano é o que apresenta maior capacidade de adquirir conhecimento, explícita e implicitamente, de se adaptar. A plasticidade do cérebro em desenvolvimento é muito grande (só assim se explica tudo o que uma criança aprende nos primeiros anos de vida) e vai diminuindo com a maturidade, embora não desapareça. O cérebro em desenvolvimento encontra-se mais apto a adquirir conhecimento procedimental (relativo ao "como" executar tarefas ou exercícios), mas a aquisição de conhecimento declarativo, explícito, mantém-se ao longo da vida, havendo operações cognitivas que só conseguimos realizar com a maturidade intelectual (e.g. raciocinar sobre entidades e processos abstractos).

A aquisição de uma língua por uma criança realiza-se sobretudo com base em conhecimento procedimental - ela vai intuitivamente construindo o seu conhecimento sobre como funciona a língua, a sua gramática, e aperfeiçoa-o em resposta às produções linguísticas que recebe. A grande plasticidade cerebral das crianças permite, assim, entender a sua capacidade para lidar com as línguas ou, dito proverbialmente, explica porque "burro novo aprende bem línguas."

E o que acontece com os "burros velhos"? Estes também aprendem línguas, seguramente, e até podem atingir elevados níveis de proficiência, dependendo da sua motivação, da qualidade e quantidade de input a que forem expostos e das estratégias metacognitivas (conscientes) de aprendizagem que adoptarem. Aprenderão é de forma muito diferente: com recurso a conhecimento explícito sobre como funciona a língua e com maior esforço e perseverança do que as crianças. Em suma, burro velho aprende línguas, com certeza, mas com tenacidade, como "água mole em pedra dura".


Professora e investigadora, coordenadora do Portal da Língua Portuguesa

 

 

segunda-feira, 13 de março de 2023

 

Com a devida vénia ao seu autor, Miguel Herdade, tomámos a liberdade de aqui transcrever o texto publicado em: «Comunidade Cultura E Arte».

O assunto, como o próprio título indica, é universal e não perde actualidade. Para Cabo Verde faz todo o sentido, porque vivemos uma crise na escola pública nacional, com ausência gritante do tal “grande professor” de que fala o texto e de que tanto necessita o aluno cabo-verdiano!

Com efeito, toda a criança merece ter um bom professor no seu processo de ensino-aprendizagem. Vejam as vantagens disso, lendo o texto que se segue:

Parte superior do formulário

Parte inferior do formulário

 

Dar a todas as crianças um grande professor, por favor!

 

por Miguel Herdade,    5 Março, 2023

 

 

Três ensaios sobre desigualdade e educação. Parte I: “os professores”.

Nada, coisa nenhuma. Absolutamente nada. Nas escolas, não há nada mais importante para o futuro das nossas crianças do que o professor que elas encontram dentro da sala de aula.

A evidência científica de que dispomos é clara, e mostra-nos que a pessoa que temos diante de nós na sala de aula vai ter um impacto que marca toda a nossa vida, influenciando o que aprendemos, as escolhas que fazemos, e até os nossos salários na idade adultaDar a todas as crianças um grande professor pode ser uma das melhores ferramentas para potenciar as capacidades de cada uma delas mas, também, para diminuir as desigualdades, criar um país melhor, mais rico e mais justo. Não acredita? Então leia este artigo.

É pena que, em pleno século XXI, tão poucos pais, alunos, políticos e pessoas comuns — por vezes, até os próprios professores — tenham a noção do poder verdadeiramente transformador desta profissão. Vejamos.

A escola: será mérito, ou mera sorte?

A nossa vida é marcada por imensos factores que ninguém realmente escolhe. São, digamos assim, fruto do acaso: ninguém tem a possibilidade de escolher o país em que nasce ou a quantidade de dinheiro que os seus pais têm. Estes factores aleatórios como a pobreza, a cor da nossa pele, ou a escolaridade dos nossos pais criam barreiras que nos põem em situação de desvantagem e têm um impacto enorme na nossa vida.

Esta desigualdade é evidente no nosso percurso escolar, alastrando-se para a universidade (para quem consegue lá chegar) e, depois, na vida adulta:

Se retratarmos Portugal como um grupo de 10 jovens, 5 deles andaram no ensino superior [1]. Contudo, se olharmos para 10 jovens nascidos em famílias pobres e com pais pouco qualificados, vemos que em média só 1 conseguiu lá chegar [2]. Por outro lado, se der um saltinho a uma faculdade de medicina, verá num mesmo universo de 10 alunos que 7 tinham pais licenciados. Se vier jantar comigo, descobre que todos os 10 membros do meu grupo de amigos tiveram a sorte de andar na universidade.

E não é por acaso que assim é. De facto, os maiores determinantes [3] da nossa capacidade de ter boas notas são o contexto socioeconómico em que nascemos, a escolaridade dos nossos pais e, em especial, da nossa mãe. Aliás, este último tema é tão importante, que fica já prometido para a Parte II desta trilogia sobre educação e desigualdade.

Mas, afinal, se o que importa é o contexto socioeconómico dos alunos, porque é que este é um texto sobre professores? Vamos pegar num exemplo:

Imagine uma criança nascida numa família numerosa. Estatisticamente, é provável que essa criança tenha pais pouco qualificados e tem, certamente, uma probabilidade maior de ser pobre, de passar privações alimentares, e de viver numa casa sobrelotada, dividindo um quarto que partilha com vários irmãos sem ter espaço para estudar e fazer os trabalhos de casa [4]. Na casa ao lado, os vizinhos também têm uma criança, que até é filha única, mas são um casal de emigrantes e não falam português como primeira língua. Estas duas crianças partem em situação de desvantagem e de desigualdade, mas por motivos diferentes. Todos estas barreiras que estas crianças enfrentam exigem soluções que envolvem mexer em vários problemas diferentes: o espaço e qualidade das casas, os ordenados baixos e as barreiras linguísticas, entre outros factores. Se, por um lado, os problemas em casa e na família são um verdadeiro quebra-cabeças, há um local comum na vida dessas duas crianças: a escola.

“Os professores são duas a três vezes [6] mais importantes nos resultados dos alunos do que qualquer um daqueles assuntos que estamos sempre a ver discutidos até à exaustão.”

É a escola, esse local sagrado, o sítio onde podemos dar às crianças as ferramentas para quebrar barreiras e desvantagens que a vida lhes deu. Ainda que por vezes o faça (e há professores, em Portugal, a levarem comida de casa para dar aos seus alunos), o papel principal da escola não é resolver todas as falhas do Estado Social no imediato. O papel da escola é dar a essas crianças as melhores condições para aprenderem, apesar de toda a desvantagem da sua vida. É através desse papel que as crianças podem adquirir conhecimentos, navegar até à idade adulta, conseguir salários mais altos e aspirar a uma vida melhor. Uma escola que consiga isso está a combater as injustiças da vida, um sistema de ensino que falhe nessa missão perpetua as desigualdades existentes.

Mas a escola não é uma abstracção. Pelo contrário, é um sistema complexo que tem lá dentro um elemento muito especial e, por vezes, mal compreendido, que são os professores [5].

A qualidade de um sistema de ensino nunca pode ser superior à qualidade dos seus professores

Os professores são, de longe, o factor que maior impacto tem nos resultados dos nossos alunos ao nível da escola. Os professores são duas a três vezes [6] mais importantes nos resultados dos alunos do que qualquer um daqueles assuntos que estamos sempre a ver discutidos até à exaustão. Estou a pensar em coisas como o tamanho das turmas [7], se os telhados das escolas têm amianto, se Os Maias são uma seca, ou se a cadeira de Cidadania e Desenvolvimento deve ou não existir.

Mas os professores não são todos iguais. Como em tudo na vida, há professores melhores e piores. E também há, claro, professores que têm melhores condições para trabalhar do que outros. Podem ter turmas mais complicadas, directores que os apoiam ou não, mais ou menos papelada para preencher, e um sem número de constrangimentos que, de facto, têm impacto na sua performance a ensinar.

De uma forma simplificada, podemos dizer que os professores mais eficazes conseguem ensinar em seis meses aquilo que um professor mediano demora um ano a ensinar. Já no caso dos professores menos eficazes, essa mesma aprendizagem demora dois anos a transmitir [8]. Há muitas formas de medir o impacto dos professores nos alunos, e os estudos que procuram a relação entre os professores e os alunos são extraordinariamente consistentes em vários países e contextos [9]Ter acesso aos melhores professores tem um impacto ainda maior nos alunos de contextos mais desfavorecidos [10] apesar de, infelizmente, estes professores terem uma probabilidade menor de ensinar em escolas em zonas desfavorecidas [11].

Um estudo de 2021, feito para os alunos e professores portugueses [12], concluiu que se todos os alunos do 3.º ciclo conseguissem ter acesso a um professor altamente eficaz, a percentagem de alunos com negativas a Português diminuía de 48% para 10%. É este o poder de um grande professor.

Uma das perspectivas de que falamos menos é o impacto que um professor tem nos nossos salários quando crescemos

Sim, um bom professor ajuda-nos a ganhar mais dinheiro quando crescemos [13]. Um dos estudos mais interessantes que comprova este facto vem dos Estados Unidos, onde um grupo de académicos de Harvard e Columbia analisaram os resultados escolares de mais de um milhão de alunos [14]. Cruzando esses dados com as avaliações dos seus professores e as declarações de impostos dessas mesmas crianças, já em idade adulta, conseguiram perceber qual era a diferença entre termos acesso a um professor melhor ou pior.

As conclusões são brutais [15]Ter acesso a um dos professores mais eficazes no sistema de ensino melhora as aprendizagens dos alunos, dá-nos uma maior probabilidade de entrar para a universidade e ter um salário mais alto ao longo da vida. De acordo com esses dados, substituir um professor de baixo-valor acrescentado por um professor mediano gera um aumento de rendimentos de 250 mil dólares por sala de aula!

 

O problema, já adivinhou, é que é muito mais fácil ser um professor eficaz quando se ensina numa escola de uma zona mais rica e onde os alunos passam menos dificuldades. Pelo contrário, os professores que ensinam em escolas que servem comunidades pobres encontram enormes dificuldades em fazer o seu trabalho em condições. Pense na diferença que é tentar ensinar uma criança com o estômago vazio.

Ser professor é mesmo difícil

No seu emprego ou local de trabalho, quantas vezes já olhou à volta e pensou: «bolas, esta gente com quem eu trabalho não ajuda nada, parecem todos umas crianças». Pois, imagine agora que essas pessoas com quem você trabalha todos os dias são de facto um grupo de 30 crianças e que, muitas vezes, estão ativamente a desajudá-lo na sua missão, fazendo birras e gerando conflitos. Pense no quão mais difícil todos estes problemas se tornam se der aulas numa escola que serve uma comunidade desfavorecida, onde os alunos vivem em pobreza, em casas degradadas, com pais que têm dois e três empregos ou, pior ainda, por vezes não têm nenhum. Crianças sem livros, cadernos e, muitas vezes, sem ter o que comer. Ser professor é verdadeiramente apaixonante, mas difícil.

Estas dificuldades passam, também, pelas condições de trabalho: gabinetes (quando existem) frios e com bolor, cargas horárias complemente colossais e com mais tempo a tratar de papelada do que a preparar aulas. Aliás, em preparação para este texto compilei uma lista de pelo menos, 25 documentos que os professores têm de preencher todos os anos, várias vezes para diferentes alunos, com siglas malucas e indecifráveis que vão do PEI («Plano Educativo Individual») ao RGHR («Relatório do Grupo de Homogeneidade Relativa»). Não é por acaso que 80% dos professores portugueses reporta a burocracia como um dos principais motivos de stress [16], o valor mais alto de todos os países da OCDE. Isto para além dos testes, exames e trabalhos de grupo para corrigir. Já percebeu onde quero chegar.

De facto, a vida de professor é estupidamente stressante e o impacto físico e psicológico desta profissão pode, até, ser superior ao dos médicos, bombeiros, ou polícias [17]Um terço dos professores portugueses tem níveis de stress muito altos e alguma evidência sugere que Portugal é o país da Europa onde os professores têm níveis mais elevados de stress [18]. Para além disso, há em Portugal um elemento estranhíssimo na vida dos professores — que penso até ser único no mundo desenvolvido — que é o famoso «sistema de colocação de professores». Esse sistema dita que as escolas não têm autonomia para escolherem os professores que querem contratar, consoante as equipas que precisam, os alunos que têm e as circunstâncias daquela escola. Não é raro encontrarmos escolas que recebem um professor de que os alunos gostam, de que os pais gostam, de que os outros professores gostam, mas, no ano a seguir, é enviado para outro lado, pela impossibilidade de o integrar nos quadros. O sistema leva a situações completamente penosas de professores que ensinam em Bragança, num ano, e em Faro, no ano seguinte. Estes professores vivem com a casa às costas e sacrificam-se em prol das crianças do nosso país. São vítimas de um sistema que tantas vezes não lhes permite viver na mesma cidade que a mulher ou marido e, também, os seus próprios filhos que só vêem, com sorte, aos fins-de-semana. É intolerável.

Mas, também, a forma como gerimos este recurso tão importante (os professores) falha claramente na sua missão: garantir que todas crianças, independentemente do seu contexto social, tenham acesso a uma educação de excelência. Um bom exemplo disso é que, em Portugal, por alguma razão misteriosa, valorizamos características dos professores que não têm nenhum impacto nas aprendizagens e resultados dos alunos. De facto, o que conta para a colocação de um professor são a sua nota de licenciatura e há quanto tempo dá aulas: dois critérios que, obviamente, nada nos dizem sobre se um professor ensina melhor ou pior. Sem surpresas, esta conclusão foi confirmada por um estudo recente, que já mencionámos neste texto, que observou um milhão e setecentos mil alunos e 42 mil professores portugueses [19].

Perante este estado de coisas, só posso concluir que os professores portugueses fazem milagres apesar do sistema de ensino e não por causa do sistema de ensino. No fundo, o sistema, com todas as suas falhas, torna a vida dos professores mais difícil, em vez de os apoiar a fazerem aquilo que sabem fazer melhor — ensinar os seus alunos.

Não temos professores, e agora?

Perante a situação esdrúxula que descrevi acima, ninguém ficará espantado se eu lhe disser que há um problema absolutamente dramático de falta de professores em Portugal. A situação é de tal forma grave que, se nada fizermos, nos próximos três anos cerca de 250 mil alunos [20] vão ficar sem aulas a pelo menos uma disciplina. Para dar uma noção da escala do problema, esse número equivale a metade de todas as crianças entre o 7.º e o 12.º ano. Uma autêntica barbárie.

O sistema que temos está obviamente caduco. O problema com que nos deparamos acontece por dois motivos: em primeiro lugar, a população docente envelheceu e cerca de 39% dos professores vão reformar-se até 2030. Isto significa que, até ao final da década, vamos ter de contratar quase 35 mil novos professores [21]. Isto, apesar de o número de alunos também estar a cair a pique.

Em segundo lugar, os jovens não têm interesse em serem professores. Isto acontece apesar de, como se aponta muitas vezes, os professores portugueses (em média) receberem relativamente bem quando comparados com os seus congéneres de outros países europeus. Mas essas comparações reflectem a média dos professores num país com uma população docente em fim de carreira e, por isso, naturalmente com um grande número de docentes com ordenados mais altos. Por oposição, os professores mais novos e aqueles que estão fora dos quadros não recebem salários dignos e competitivos. Prova disso é que os salários não conseguem ser atractivos: em 2021, Portugal contou com apenas três novos professores de físico-química.

Como garantir que todas as crianças têm um grande professor?

O primeiro elemento essencial é a quantidade. Obviamente, temos de garantir que há professores suficientes nas salas de aulas. Para isso, vamos ter de alterar a forma como contratamos e formamos os nossos professores, tornando as vias mais atractivas e menos estritas. Depois, para resolver o problema no curto prazo, podemos pensar em trazer antigos professores de volta para a sala de aula, ou requalificar profissionais de outras áreas para aprenderem a ser professores. Outras ideias já testadas podem passar por criar incentivos financeiros [22] para atrair professores para disciplinas que estejam mais em falta ou para regiões que sejam menos atractivas. Mas uma coisa é certa: centralizar a contratação de professores não ajudou a resolver a falta de docentes em Portugal, e a evidência demonstra que sistemas centralizados prejudicam os resultados dos alunos, sobretudo em escolas com maior número de crianças e jovens desfavorecidos [23].

O segundo ponto essencial é garantir a qualidade dos professores. Este é um tema particularmente complicado [24], desde logo, porque temos de definir o que entendemos por qualidade ou eficácia[25]. Logicamente, do meu ponto de vista, a qualidade de um professor mede-se pelo impacto que ele tem nos alunos. Parece-me evidente que a eficácia não se mede pelas notas dos alunos, mas sim pela diferença que um professor pode fazer em relação ao ponto de partida dos alunos. Não me parece descabido dizer que um professor que consegue que a maioria dos seus alunos tenha positivas, numa turma de alunos desfavorecidos, é mais eficaz do que outro professor que tenha exactamente os mesmos resultados numa escola de classe-média.

Mas a resposta honesta é que, na verdade, ninguém sabe muito bem como criar professores altamente eficazes. Há algumas pistas para as quais podemos olhar. A ideia mais óbvia é tentar atrair os professores academicamente mais hábeis para o sistema de ensino, como fazem em Singapura, na Finlândia (cujo sistema de ensino já teve, enfim, melhores dias), ou na Coreia do Sul. Nestes países, a profissão é tão prestigiada socialmente que, tal como os médicos, os professores recrutados são, essencialmente, todos alunos de topo.

Acontece que alguém ter sido um bom aluno não é, necessariamente, garantia de vir a ser bom professor. Aliás, como demonstrámos acima, a nota de licenciatura dos professores, em Portugal, não tem nenhum impacto na aprendizagem dos alunos. Claro que atrair professores academicamente capazes há-de ser sempre uma boa ideia, mas talvez não seja suficiente. Ensinar exige imensa paixão, trabalho árduo e espírito de missão. Mas também exige um outro ponto fundamental — desenvolvimento constante. Já temos evidência [26] que sugere que a formação contínua de professores pode ter impactos extraordinários e verdadeiramente transformadores no nosso sistema de ensino. Ajudar os professores ao longo da sua carreira a melhorar a sua performance, aprendendo técnicas, pedagogia, e novos métodos tem um impacto importante na melhoria das aprendizagens dos alunos [27]. Por outro lado, está demonstrado que também ajuda a manter os professores motivados e a não procurarem mudar de profissão [28]. Para além disso, esta ideia da formação contínua e desenvolvimento profissional de professores pode ajudar-nos a combater a desigualdade e a pobreza. É esse o resultado de um estudo recente [29] que concluiu que um programa de 35 horas por ano de desenvolvimento profissional de alta qualidade para professores se traduziria num aumento dos salários dos alunos em idade adulta. O estudo calculou que, se este investimento fosse realizado em Inglaterra, traria um retorno de 61 mil milhões de libras, num retorno equivalente a 19 vezes o investimento!

Quo vadis?

Nas últimas décadas, o sistema de ensino português teve um dos avanços mais notáveis a nível mundial. No ano 2000, o português médio tinha a escolaridade equivalente à de um alemão em 1930 e à de um romeno em 1970[30]. Hoje, a minha geração tem um grau de escolaridade equivalente à de qualquer outro país europeu. Este feito de levar a escola a quase todas as crianças do nosso país não foi feito à custa do sacrifício da qualidade. Pelo contrário, veio acompanhado de uma melhoria enorme dos resultados dos nossos alunos nas comparações internacionais. Na minha opinião, levar a escola a (quase) todas as crianças foi a maior proeza da nossa democracia.

Mas nem tudo corre bem. Chegámos agora ao quarto ano lectivo marcado por fortes disrupções e perdas de aprendizagens causadas pela pandemia, pelas greves (justíssimas) e pela falta de professores. Damos por nós numa situação penosa: uma criança que hoje esteja no 4.º ano, nunca teve um ano normal de escola na sua vida. É provável que todo o percurso escolar dessa criança seja marcado por uma escola sem professores.

E os desafios não acabam aí. Se é verdade que conseguimos muito progresso, também é verdade que continuamos a ser um país com uma pobreza infantil demolidora e um país onde a desigualdade entre alunos ricos e pobres não diminui há cerca de 20 anos [31]. Não é aceitável.

O contexto em que nascemos não pode determinar as nossas aspirações na vida. E a profunda injustiça da desigualdade não tem de ser uma inevitabilidade:

 — Temos de dar a todas as crianças um grande professor, por favor.

Declaração de interesses: As opiniões expressas neste artigo são exclusivamente do autor e não reflectem os princípios ou posições das organizações às quais está associado. O autor trabalha num instituto inglês, sem fins lucrativos, especializado no apoio a professores e escolas que servem alunos desfavorecidos.

In: Comunidade Cultura E Arte