sábado, 24 de julho de 2021

 

Caro Leitor, a entrevista aqui transcrita versa um tema ainda muito complexo e polémico que é a Guerra colonial.

O Historiador e politólogo António Costa Pinto, traz-nos à memória ou à reflexão actual a sua assisada e ponderada visão sobre um acontecimento  60 anos passados – que marcou e marca de forma indelével a História comum de Portugal e das suas ex-Colónias, do século XX.

 

 

António Costa Pinto entrevista ao “Público” (19.07.21) conduzida por Ana Sá Lopes

60 anos da guerra colonial (I)

Com a entrevista ao historiador António Costa Pinto, o PÚBLICO inicia uma série sobre o Fim do império português e os 60 anos do princípio da guerra colonial. O investigador explica por que é que o luso-tropicalismo está profundamente enraizado na sociedade portuguesa e nas suas elites políticas.

 Ana Sá Lopes (texto) e Daniel Rocha (fotografia)

 

António Costa Pinto investiga há longos anos os sistemas autoritários. Em o O Fim do Império Português, reflecte sobre vários aspectos da guerra colonial. Com esta entrevista, o PÚBLICO dá início a uma série evocativa dos 60 anos do início da guerra colonial, para a qual convidou 12 historiadores a escrever sobre o período traumático que só terminou com o golpe de Estado do 25 de Abril. Costa Pinto desmonta o mito do “orgulhosamente sós” enunciado por Salazar — o apoio internacional a Portugal não era insignificante — e fala sobre como o luso-tropicalismo foi adoptado pela sociedade portuguesa e por todas as instituições políticas.

Sessenta anos depois do início da Guerra Colonial, já conseguimos falar sobre todo o processo?

Já conseguimos falar, e até já há bastante tempo. Durante a transição democrática, esteve mesmo no centro, com a descolonização. Simplesmente, o tema da guerra colonial na sociedade portuguesa contemporânea diz-nos mais sobre o presente do que sobre o passado. Mais de quatro décadas passadas sobre a descolonização, há uma procura cultural de memória sobre o passado colonial. As democracias, e a portuguesa não podia faltar à regra, discutem o seu passado através daquilo a que chamamos políticas e erupções da memória, muitas vezes fenómenos de contágio a propósito de dimensões mais globais que “activam” a memória e provocam muitas vezes debates na opinião pública. Em alguns casos, mesmo acção política. Mas o tema da guerra colonial e do sistema colonial, com altos e baixos, tem sempre marcado e vai continuar a marcar Portugal, até por uma razão simples: a identidade nacional e o espaço político pós-colonial são determinantes na esfera pública em Portugal. Faça uma análise de conteúdo, por exemplo, dos meios de comunicação social: há um ataque terrorista de fundamentalistas islâmicos no Norte de Moçambique e o espaço público e as instituições integram automaticamente este acontecimento com uma proximidade simbólica impressionante. Bastava ser 40 quilómetros a norte da fronteira de Moçambique com a Tanzânia e nem uma linha existiria. Existe um espaço público pós-colonial na sociedade e uma política da sua elite que, passados quase 50 anos sobre a descolonização, está muito presente.

Em vez de uma ruptura, fizemos uma transição?

 Voltaremos sempre ao mesmo tema, que é muito importante na construção da opinião pública sobre o tema da guerra colonial e do império colonial. A democracia portuguesa ajustou contas com o passado ditatorial. De uma forma, aliás, relativamente radical, quer sob o ponto de vista simbólico, quer efectivo. A transição portuguesa utilizou quase todos os meios conhecidos na década de 1970 para tentar erradicar o passado autoritário: saneamentos, exílios da elite política, julgamentos da polícia política, alterações da toponímia, etc. E tudo isso foi acompanhado por um discurso de rejeição do passado ditatorial. A democracia portuguesa, ao contrário de muitas outras, construiu-se tendo como elemento central de legitimação a rejeição do passado ditatorial. As próprias instituições políticas criaram modelos comemorativos oficiais de rejeição do passado que, aliás, até tiveram efeitos duradouros. Mas não ajustou contas com o passado colonial por razões óbvias, pelo facto de os libertadores terem sido simultaneamente os agentes militares da guerra colonial. E ainda por cima com o trauma daqueles que regressam das colónias após a descolonização e de o próprio processo de transferência de poderes para os movimentos de libertação ter sido feito numa conjuntura de grande crise em Portugal. Quando se dá a consolidação democrática, o clima político é de reconciliação e mesmo tentativa de esquecimento, não sendo propício ao tema. Aliás, a activação política dos retornados e da nostalgia colonial à direita foi um falhanço. Acresce que a adesão à União Europeia como destino pós-colonial foi um sucesso da elite política democrática portuguesa.

Mas a guerra não foi mais traumática do que a ditadura?

A guerra colonial teve algumas características importantes. Em primeiro lugar, foi uma guerra desencadeada por um regime autoritário. Outros sistemas coloniais sofreram guerras coloniais que tiveram efeitos traumáticos: a guerra da Argélia foi traumática para França. Na Holanda, a guerra na Indonésia foi dramática. Mas eram regimes democráticos. Os regimes autoritários não só têm uma decisão política unificada como conseguem inicialmente eliminar a diversidade não apenas ideológica, mas de interesses, e há sempre interesses organizados que não apostariam numa guerra colonial. Ora, o salazarismo conseguiu alguns “feitos” muito interessantes e alguns que ainda me despertam vontade de investigar. Em primeiro lugar, a resistência da elite militar após a tentativa de golpe de Estado de Botelho Moniz representou uma vitória de Salazar, e uma enorme capacidade de mobilização da Forças Armadas Portuguesas, conseguindo controlar a elite militar e colocá-la em três frentes de combate com razoável sucesso ao longo da década de 60. Quando a vaga de emigração para a Europa ameaça a gigantesca mobilização jovem para a guerra, a “africanização” foi também um sucesso com 50% recrutados localmente. A sociedade portuguesa dos anos 60, com o crescimento económico, já tem muito mais que ver com a Europa do que com as colónias, mas aquilo a se pode chamar “modernização autoritária” marcou um real desenvolvimento das duas principais colónias em guerra: Angola e Moçambique. E aqui entramos no dilema da informação nos regimes autoritários. É natural que os milhares de brancos que vão ou ficam em África aproveitando este desenvolvimento sofressem assimetrias de informação, mas o mais interessante analiticamente é que até alguns grandes grupos económicos portugueses investissem no mesmo processo, eles que já tinham informação bem mais global. Perdendo tudo dois ou três anos depois. O trauma está longe de ser apenas o da experiência de guerra.

Nos anos 70, o regime estava a perder a guerra da Guiné…

Já lá vamos. A guerra colonial — ou as guerras coloniais, porque os contextos são diferentes — foram guerras relativamente ‘low-cost’, em que a ditadura consegue, no fundamental entre os seus aliados, material militar e tecnologia que lhe permitem resistir com uma segurança bastante razoável. A história inicial dos movimentos independentistas é complexa e a sua transformação em organizações armadas com as inerentes tensões internas e com os países que lhes servem de base também. Os movimentos de libertação lutam também com grandes dificuldades para conseguirem o apoio dos países vizinhos e obter armamento dos seus aliados. Na maior parte dos casos, os movimentos de libertação tinham uma capacidade relativamente limitada. Como é evidente, a grande opinião pública do presente e inclusivamente alguns estudiosos-activistas olham o passado com os olhos do presente. E têm a ideia de que [a derrota] era inevitável. Claro que as guerras coloniais são guerras perdidas sob o ponto de vista do colonizador. Mas o mais interessante analiticamente não é isso. Antes pelo contrário. É encontrar os factores de explicação para a resistência à descolonização da ditadura, à medida que a sua elite ia observando o fim, um após um, dos restantes impérios coloniais.

Mas a Guiné-Bissau…

A Guiné-Bissau é um caso extremamente interessante porque o início do fim do regime remete para uma alteração no âmbito da Guerra Fria que não é facilmente explicável pelo facto de o PAIGC ter obtido justamente mísseis que a tecnologia militar portuguesa não dispunha, mas que estavam à data do 25 de Abril na República Federal Alemã à espera de chegarem a Portugal. A pressão internacional mais forte para a descolonização de Angola veio da administração Kennedy e foi curta. Quando acontece a “conjuntura crítica” da chegada de Marcelo Caetano ao poder, com um poder autoritário mais vulnerável, Nixon tinha outras preocupações. As alianças secretas com a África do Sul expressam já as dificuldades do regime. Mas não vale a pena divulgar um modelo simplista a preto e branco. Quer de um lado quer do outro havia grandes limitações. A investigação já realizada aos consultores e formadores cubanos assim como os documentos que temos da URSS expressam cepticismo em relação à capacidade militar destes movimentos.

No seu livro O Fim do Império Português, desmonta o mito do “orgulhosamente sós”. Portugal tinha o apoio de vários aliados…

Na década de 60, vivemos em guerra fria. Portugal é um aliado menor do bloco ocidental, que tem uma capacidade de negociação com a principal potência, os Estados Unidos, que é a utilização da base dos Açores e vai-se aguentando bem com os europeus.

O “escudo protector”…

Os relatos da NATO são muito interessantes. É uma ditadura que tenta estender a NATO ao Atlântico Sul para incluir as colónias portuguesas e é evidente que os países da NATO não autorizam… Mas há uma célebre frase de um embaixador americano que, quando ouvia as críticas ao colonialismo português, dizia sempre: “Vamos deixar isso aos dinamarqueses!” A pressão descolonizadora dos países aliados não foi grande até ao 25 de Abril. Há dois episódios interessantes sobre a relação da resistência do colonialismo português e a principal potência. Kennedy, durante um curto período, realiza efectivamente uma pressão descolonizadora sobre a ditadura e seria muito interessante ver quais teriam sido as consequências se tivesse conseguido.

Terá sido o massacre de Wyriamu que muda alguma opinião internacional?

A dimensão internacional da guerra colonial portuguesa tem alguns pontos de condenação. No seu início, em 1961, com Angola e as condenações das Nações Unidas, mas sobretudo com o aparecimento do bloco afro-asiático. Em segundo lugar, e talvez seja o ponto mais importante, com a decisão de os novos países independentes limítrofes das colónias portuguesas oferecerem o seu território como base para os movimentos de libertação. E depois o que poderíamos chamar uma dinâmica muito importante dos anos “60 globais” que representa a emergência de uma opinião pública, da sociedade civil dos países desenvolvidos da Europa ocidental, dos Estados Unidos, de saliência do chamado “Terceiro Mundo”, das lutas de libertação e obviamente da descolonização. Muito do que vamos assistir nos países nórdicos, na Dinamarca, em França, na Inglaterra, remete para essa dinâmica. Mas não vale a pena exagerar. As guerras coloniais da ditadura em África são guerras relativamente secundárias e com escassa saliência na arena internacional dos anos 60.

Já disse que o luso-tropicalismo não foi apenas um sucesso do salazarismo e que foi transposto para a cultura política das elites e das massas da democracia. Ainda é dominante?

O tema do luso-tropicalismo é muito interessante. Está hoje na arena das “guerras culturais” em Portugal, muitas vezes associado ao voluntarismo dos estudiosos e activistas em desfazer esse mito (porque é um mito). E porque tem sido activado politicamente, associado à chegada a Portugal de dimensões mais globais sobre as políticas da memória, sobre o racismo dos sistemas coloniais, sobre o racismo estrutural das sociedades democráticas contemporâneas. Mas o luso-tropicalismo é um tema que os “guardiões da memória”, pese embora a sua importância, não vão resolver nem de longe nem de perto. Uma nova consciência democrática para Portugal em relação ao passado pede um número muito maior de actores, desde logo os principais atingidos, o que ainda não é o caso.

O luso-tropicalismo é um tema que ‘os guardiões da memória’, pese embora a sua importância, não vão resolver, nem de longe nem de perto.

Porquê?

O luso-tropicalismo é muito enraizado não apenas nas elites, mas também na sociedade. O facto de se ter uma consciência implícita na sociedade portuguesa de que o império colonial português foi algo que se tentou fazer sempre diferente porque era contra a ameaça das outras potências coloniais. Em segundo lugar, porque os grandes realizadores dos mitos coloniais portugueses foram genuínos republicanos liberais de finais do século XIX, início do século XX. Convém não esquecer que a maior parte dos críticos da chamada oposição democrática, praticamente até aos anos 60, eram colonialistas antiautoritários. Ou seja, criticavam o modelo colonial do Estado Novo, mas não eram a favor da descolonização. E, em terceiro lugar, e eu creio que é este o factor mais importante, a elite política democrática — todos os partidos políticos da direita à esquerda que governaram Portugal a seguir ao 25 de Abril — fez uma política de reconciliação com os movimentos de libertação dos novos países africanos de expressão portuguesa. Repare-se: a descolonização portuguesa comporta uma ironia espantosa. A resistência à descolonização de uma ditadura nascida na época do fascismo, que faz da questão colonial o factor mais importante da sua identidade autoritária, termina em colapso, e uma transição democrática, em plena guerra fria, transfere imediatamente os poderes para movimentos de libertação que são formalmente socialistas. Uma ditadura que se pretende legitimar pelo facto de estar a lutar contra o comunismo em África… Não houve nenhum outro sistema colonial europeu em África que, de uma assentada, transferisse o poder para novos regimes de tipo socialista, com grande identidade entre si, repare-se. De S. Tomé a Moçambique, os novos regimes são muito semelhantes em 1976.

O luso-tropicalismo está muito enraizado não apenas nas elites, mas também na sociedade (...). Se fizer uma análise dos discursos da elite política, da esquerda à direita, há uma escassa activação política do tema.

Isso tem que ver com a revolução que se declarou socialista?

A democracia portuguesa foi consolidada em 1976 e foi uma democracia de guerra fria, que se impôs contra o legado de 1975. Mas a elite política democrática conseguiu, com sucesso, estabelecer uma relação pós-colonial de colaboração com os países africanos de expressão portuguesa. Este factor é muito importante para explicar porque não é fácil, em cada guerra de memória, convencer a elite política a ajustar as contas com as dimensões do passado colonial e da guerra. Repare-se: se fazer uma análise de conteúdo aos discursos da elite política portuguesa, do Partido Comunista à direita democrática, passando pelo Partido Socialista, o que observamos é uma escassa activação política do tema. Este é espoletado politicamente por activistas, às vezes académicos, no espaço público, mas repare na resistência dos partidos políticos a abordar esse tema.

Estamos a falar tanto da guerra como do luso-tropicalismo?

Da guerra colonial e do luso-tropicalismo. O que é que a elite política, da esquerda à direita, não nos diz oficialmente, mas diz em particular? Se os portugueses acham que não são racistas e que o império colonial português não foi tão mau como os outros, sob o ponto de vista da qualidade e do funcionamento do sistema político democrático, não vamos fazer guerras de memória. Isto não é o que eles nos dizem publicamente — dizem em off the record.

Esse debate nunca se vai fazer?

 Esse debate está a fazer-se, mas tem muitos actores. A esfera pública é composta por muitas instituições e não apenas pelo activismo académico-cultural. Por exemplo, as Forças Armadas e o cultivar da memória dos antigos combatentes, com dezenas de monumentos em cada vila de Portugal. A memória familiar dos retornados e dos portugueses de origem africana e indiana que os acompanharam. A memória terá de ser sempre num regime democrático um tema de activação política de diversas memórias. Há as memórias familiares dos retornados, as memórias dos militares consagrados nos monumentos aos antigos combatentes, as memórias de vocabulário — ultramar versus colónias, e por aí adiante. Até agora, a resposta ao activismo de esquerda radical-cultural era o silêncio. Agora, com um partido de direita radical populista, a cada dinâmica de activação da memória simbólica deste sector, vamos ter a activação de uma memória pós-colonial luso-tropicalista. Aparentemente, vai ser o caso na sociedade portuguesa, mas creio que será um fenómeno minoritário e com escassa mobilização social.

António Costa Pinto “Não é fácil convencer a elite política a ajustar contas com o passado colonial”

 

Como viu o discurso do Presidente no 25 de Abril?

O discurso do Presidente cumpriu duas funções: em primeiro lugar, tentou, o que não é fácil, ocupar o espaço político dos conflitos memoriais, reconhecendo os crimes do colonialismo, mas simultaneamente, defendendo um modelo de reconciliação e superação. Marcelo é um político que provém do centro-direita e esse discurso foi muito importante. Basta comparar com os do seu antecessor. Ele abre espaço e legitima uma memória oficial efectiva, mais de acordo com os valores democráticos e do humanismo liberal.

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Caro Leitor: o texto que aqui se publica da autoria do Jornalista Nuno Pacheco,  convida-o a reflectir e a tomar parte na critica que o autor faz a certos modismos linguísticos, os quais, só empobrecem a nossa Língua.

O caso mais visível, mais emblemático das questões levantadas no texto, é o caso do vocábulo "resilência". O falante de português parece ter esquecido ou, posto na prateleira do esquecimento, a palavra "resistência." Na verdade, há um uso e um abuso desmesurado do vocábulo "resilência" que já causa saturação a quem o ouve e o lê nos Média .

E a propósito de anglicismos, parece que ninguém quer fazer um mínimo de esforço para encontrar os correspondentes em português. Vejamos dois exemplos: o "Task-Force e... ultimamente até o "Drive-thru ( o que apetece dizer: directamente importado do Mac-Donald, não? comprar o produto sem sair do carro. Literalmente: "através do carro".  

safa! que já cansa tanta  falta de respeito à nossa bela Língua!

Leia o texto  de Nuno Pacheco que na minha opinião  vale a pena, pois o Leitor vai reconhecer a sua indignação, ao identificar-se com o conteúdo.




Recepcionou suporte para experienciar a sua resiliência?

Por Nuno Pacheco*

É habitual, e é verdade, dizer-se que as línguas evoluem, que vão absorvendo novos termos, ou dando significados novos a palavras antigas (como documentam, aliás, os dicionários, desde as edições mais vetustas às actuais), mesmo contra o gosto e a vontade de filólogos e linguistas. Mas há, como sempre houve, “modas” que não correspondem a qualquer evolução, antes a um retrocesso, até porque afectam a clareza do discurso. Há dias, no PÚBLICO, Manuel Monteiro (autor, revisor e formador de revisão de textos) alertava para o abuso da palavra “colocar”, em vez de, simplesmente, “pôr”. “Coloque-se na fila” em vez de “ponha-se na fila”, por exemplo.

Mas há mais palavras que têm vindo a substituir, automaticamente, outras bem mais simples, e muitas vezes sem atender ao seu real significado. Por exemplo: agora já não se recebe nada, recepciona-se (ou “receciona-se”, usando o estranho termo que o Acordo Ortográfico de 1990 inventou só para Portugal e que mais ninguém usa); e também não se percebe nada, percepciona-se; quanto a viver, começa a ser raro, hoje vivencia-se; a palavra entender vai pelo mesmo caminho, substituída pelo anglicismo realizar; gerir, então, surge cada vez mais como gerenciar; coisa rara é também experimentar, já que a moda é experienciar (outro escusado anglicismo); e se precisamos de apoio nalguma coisa (como apoio técnico), o mais certo é darem-nos suporte. Os acontecimentos vividos passam a acontecimentos “vivenciados” e as experiências de qualquer tipo hão-de ser “experienciações” ou “experienciamentos” (sabe-se lá o que o futuro nos reserva).

O que se ganha com tais trocas? Mais letras, mais sílabas, menor clareza. Imaginem estas frases, caso tais modas se tornem regra: “Já experienciou o bife da casa? É muito bom!” Ou: “Posso experienciar este par de sapatos?”; “Recepcionou o meu livro? Percepcionou o que escrevi?”; “Como vivenciou a sua semana de férias?”; “Concederam-lhe o suporte que solicitou?”; “Quem está a gerenciar esta loja?”; “Explicaram-me tudo, mas não realizei o que queriam dizer”. Ou, como ironicamente sugere Manuel Monteiro no seu texto, “Posso colocar-lhe mais vinho no copo?”, concluindo: “Só me resta desejar que o ‘pôr-do-sol’ não se transforme no ‘colocar-do-sol’. E que quem citar Camões não diga que Inês estava linda COLOCADA em sossego.”

Convém notar que, exceptuando “realizar” no sentido de “entender”, tais termos existem e os que não constam de dicionários portugueses já ganharam registo no Brasil, como “experienciar” ou “gerenciar”. A TAP, por exemplo, tem uma página em português do Brasil (e ali escreve, como deveria, “registre-se” por “registe-se” e “planejar” por “planear”) com o título “Preparar e gerenciar viagem”; e há no Brasil uma agência de turismo intitulada “Vivenciar” e frases do género “Vem vivenciar grandes momentos com a gente!”. Mas também por cá se apela a “vivenciar momentos únicos”, como se lê na página da Câmara de Vila Nova de Gaia. Será mesmo atendendo ao significado da palavra? Ou será “vivenciar” “mais giro” do que “viver”?

É porque convém sempre atender ao contexto. Não é a mesma coisa afirmar, em Portugal, “eu não apoio esse candidato” [não lhe dou aval] que “eu não suporto esse candidato” [não posso nem vê-lo]; tal como não é igual afirmar “vivi não sentindo que vivi” ou “vivenciei não sentindo que vivi”, porque “vivenciar” significa, segundo a generalidade dos dicionários, “viver algo, sentindo intensamente”. Mas será mesmo isso que querem dizer os que usam e abusam de tal palavra?

O pior não é ouvir e ler ‘resiliência’ a torto e a direito; o pior mesmo é vê-la escrita e ouvi-la onde devia estar ‘resistência’

Nesta moda entra ainda a palavra “resiliência”. Há umas décadas, os dicionários em Portugal só registavam o seu sentido na Mecânica ou na Física. A edição de 1981 do Grande Dicionário da Língua Portuguesa (de José Pedro Machado) falava apenas em “valor ou número característico da resistência ao choque de um material e que representa a energia absorvida pela rotura de uma barra de secção unitária”; e o Dicionário da Academia das Ciências até ignora a palavra (passa directamente de “resignatário” para “resina”, pág. 3217). Mas, seguindo o inglês “resilience”, outros acrescentaram-lhe um novo sentido, figurado: “Capacidade de superar, de recuperar de adversidades” (Priberam), “Capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças” (Houaiss), “Capacidade de defesa e recuperação perante fatores [sic] ou condições adversos [sic]” (Infopédia, que lhe acrescenta ainda significados na Ecologia e na Psicologia).

O pior não é ouvir e ler “resiliência” a torto e a direito; o pior mesmo é vê-la escrita e ouvi-la onde devia estar “resistência”. E são tantas vezes! Assim haja “resiliência” para suportá-las.

*Jornalista – In “Público” de 08 de Julho de 2021