A propósito dos «Trinta poemas de Amor e um Soneto» - Ou a sinfonia poética de Tacalhe

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
Quando acabei a leitura dos versos que enformam a colectânea de poemas de Tacalhe – pseudónimo poético de Alírio Vicente Silva – vieram-me à memória as palavras com que alguém se dirigiu um dia ao poeta Vinicius de Moraes, «Como poucas pessoas no mundo, Vinicius de Moraes i>podia afirmar com todas as letras “sou poeta”, sem complexos de culpa pela dimensão dessa palavra» Pois bem, foi o mesmo pensamento que me ocorreu ao findar a leitura de «Trinta Poemas de Amor e um Soneto». De facto, o leitor está perante um “fresco” de poesia em que a lírica ganha asas fortes, ou não fossem seus versos, poemas de amor em que as palavras ganham também peso sonoro, melódico, simbólico. Palavras que soltam, que libertam vários sentidos. Aparentemente calmo e sempre reflectido, o poeta envolve os poemas num manto de “nervos” que apelam, que denunciam, que reclamam harmonia e justiça negados à vida e em que o corolário da beleza surge como a prefigurar o entendimento desejado e por alcançar entre homens e mulheres de todas as latitudes. Mas atenção que se lidos isoladamente, os poemas de Tacalhe aqui contidos, isto é, sem ser dentro de uma perspectiva de conjunto, ou de um fio condutor uno e mesmo temático que percorre esta colectânea, pode-se ter por vezes a sensação de uma lírica solta, discreta, ao sabor de alguma urgência do amor “in presentia” e do destinatário, no caso presente, da(s) destinatária(s) pois que os poemas, muitos deles, contêm dedicatória. A mulher é, sem dúvida, o centro, a protagonista, a estrela maior dos versos de Tacalhe que através dela, por via dela, para ela e com ela, configura o devir e a suprema harmonia tornada arquétipo de realização da vida plena. E não é por acaso que ela, a mulher, se metaforiza em fases, em instantes, em paixões, em lutas, em angústias existenciais, em dramas reais que atormentam, alimentam e realizam o poeta no seu universo lírico. Assim temos: “Mocinha borboleta,” “Lóló crectcheu,” “Mulher opala”,”Crioula cigana,” “Amada ou amiga,” “Girassol cativo,” “Menina rufia,” “Mulher corpo de lume,” “Mulher síntese da Génese,” entre outros significativos e simbólicos epítetos com que o poeta faz o reconhecimento e a descoberta sempre maravilhada, em cada poema, da mulher. Note-se finalmente a inquietante e interpelativa dedicatória feita pelo poeta deste conjunto de poemas, a “Delly” cega, surda e muda” e sobre quem, quando nela pensa, o poeta a “vê nua”. O próprio Tacalhe reconhece e afirma a existência de uma certa “fixação”. Nas palavras emblemáticas do poeta e retiradas da “Nota” que abre o livro, ele explica: «A fixação não significa envolvimento sexual com a mulher do nosso agrado ou a manutenção de uma ligação afectiva. Pode nunca ter havido qualquer contacto e pode até ser esse o desejo do poeta. O tempo de fixação pouco importa. O que importa é a fixação. E deve ser “bastante” para que a produção literária tenha lugar.» E nisto de cantar a mulher, permito-me aproximar o poeta Tacalhe do poeta brasileiro Vinicius de Moraes, nomeadamente, quando este último se auto-define, enquanto poeta, ao dizer que: «(…) ele ama as mulheres castas e as mulheres impuras / Sua alma as compreende na luz e na lama / Ele é cheio de amor para as coisas da vida (…)» A matéria poética de ambos, tanto a de Vinicius como a de Tacalhe está fortemente impregnada da mulher/ausência, da mulher/solidão, da mulher/presença, mulher/centro para o poeta refazer a cada instante as suas coordenadas humanas, o seu entendimento do outro. Entrando agora um pouco na construção dos poemas aqui coligidos, pode-se afirmar que não há, ou muito raramente ocorrem, rupturas estilísticas ou mesmo temática nesta poesia virada para o amor, simbolizado na conjunção/disjunção homem/mulher, ainda que perpasse, para o leitor sintonizado, marcas temporais conotadas com a realidade histórica e social da época em que os poemas foram escritos. Com efeito apercebe-se o leitor de um “fundo datado” que subjaz em alguns poemas, explico-me melhor: sob, ou ao longo da lírica amorosa, encontramos ecos, marcas e sinais de um tempo (continuamos a falar dos anos 60 e 70 do século XX), de um tempo que aguardava – expectante, ansioso e crente – por uma profunda mudança, por uma revolução. Mudança aliás de que os poetas foram, à época, os grandes alvissareiros. Tacalhe, não foge neste particular, ao sentimento desse tempo e, em última análise, a sua poética não é alheia ao grande modelo em que se conformava quase toda a poesia então considerada e chamada de poesia de intervenção social e política. Igualmente com alguma configuração contestatária/identitária. É o que podemos ler, para exemplo, nos versos do: «Poema Distante para a Crioula» (…) Só o corpo quente da crioula camarada Acalenta meus passos No rumo da meta Só minhas ilhas sem lugar no mapa Só meu povo sem eco no mundo Só meus irmãos mil vezes heróis Suculentam estes passos de firmeza Mas um dia voltarei Com a aragem calma de ficar No meu veleiro de sorrisos (…)» Ou, mais explicitamente, os sinais dos tempos e de mudança iminente afloram no poema: «Amanhã» (…) Amanhã A enxada não cairá sem confiança Na terra que lhe é madrasta Amanhã Não pintará o poeta Seus versos cor de fel Amanhã cada flor terá a frescura da tua boca de mulher africana» Finalmente é na alegoria mulher/amanhã/ crioula/ que o poeta deposita as suas esperanças de uma libertação, de uma reconciliação com o outro e com o mundo, rumo a uma harmonia promissora. A questão que ao poeta ocorreu foi, ou terá sido, qual seria então o seu papel (o do poeta) para que tudo isso sucedesse? Para que tal se entenda, convido o leitor a ler os versos do poema – diria que intencionalmente intitulado «Poesia» Pudesse eu recolher Todas as lágrimas vertidas Em momentos oblíquos De um querer rectilíneo E delas fazer Oceano de ilusão Onde apenas navegassem Amantes do desencanto Amada ou amiga Talvez dissesse o rumo De quem nunca o teve Veleiro nesta calema». Terá sido esta a forma, através da qual, o poeta concebeu e definiu o seu papel; se sentiu e quis que “ela” (amada ou amiga) também assim o visse e o percepcionasse? Como cantor de um “querer rectilíneo” depois de recolhidas “todas as lágrimas”? Mas afinal, trata-se de quem “nunca teve (rumo) veleiro nesta calema” Será o seu (do Poeta) auto-retrato? Uma espécie de entrega solidária e solitária (embora reconhecendo «ab initio» alguma impossibilidade para alcançar o grande objectivo) em permanente busca e inquietação pela grande causa – hiperbolicamente cósmica, no limite – do encontro homem/mulher como síntese de toda a harmonia? Na linha de uma certa datação – de um tempo e de lugar(es) – já aqui mencionada, creio poder afirmar sem muita margem de erro que quase todos, se não uma boa parte dos poemas inscritos no livro foram escritos em Lisboa (para além de Rotterdam e Praia) e nos exaltantes finais dos anos 60 e meados da década de 70 do século XX. Dito desta forma poderá parecer gratuito, fortuito e sem qualquer fundamento, mas não será assim, se se fundamentar no seguinte: Lisboa era o “centro”, (se calhar, tal como Coimbra o era) o ponto de encontro e de desencontro, hélas! dos jovens estudantes do então ultramar português que aí prosseguiam os estudos universitários. Capital do Império, centro de todas as decisões em tempo de guerra, Lisboa também era nessa época um centro de contestações estudantis e outras que desafiavam a autoridade despótica num clima de claro e inequívoco “não” à guerra nas colónias e pela libertação das mesmas. Ao mesmo tempo e, paradoxalmente, vivia-se nela um “clima” de libertação iminente, de uma certa euforia, de uma certa esperança por um amanhã próximo e diferente. Era também uma época em que movimento global “hippie” a que nenhum jovem era indiferente, recusando ou aceitando a sua filosofia pacifista e prenhe de romantismo que cativava e impregnava a quase todos com o seu apelo à concórdia e ao amor. Não obstante as dificuldades, os desafios aliciavam e acalentavam muitos jovens artistas, escritores e poetas portugueses e africanos – de que Tacalhe fazia também parte – a uma entrega generosa da sua obra, ao serviço da causa da liberdade e da paz. Daí justificado que seja Lisboa o grande “pano de fundo” a moldura, e o cenário principal onde se assenta o “fresco” de poesia de Tacalhe inserto nas páginas desta colectânea. Para finalizar esta breve nota de leitura, gostaria de acrescentar que pese embora o tempo que distou entre a escrita dos poemas e a sua publicação em livro, eles chegam até nós plenos de uma poesia perene, de um canto que atravessa o tempo, que permanece, que nos interpela e nos envolve, porque afinal se trata de verdadeira poesia. Praia, Novembro de 2008. Nota ao Leitor – O texto foi escrito em 2008, em vida e a convite do poeta, saudoso amigo, para o prefácio do livro de poemas: «Trinta Poemas e um Soneto». Infelizmente ele não chegou a publicá-lo. Alírio Vicente Silva (1943-2012) Tacalhe, pseudónimo poético, merecia ser lido. Fica aqui este registo.

Cabo Verde na CPLP? ou A interrogação da minha neta

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Recentemente, estando eu a ver o noticiário de um dos canais televisivos, este passava em rodapé a notícia de que Cabo Verde havia nomeado, ou designado Diplomatas para integrarem o quadro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, CPLP.

Perguntou-me de imediato a minha neta mais velha, vinda de Luanda em férias de Natal, e que assistia e ouvia também o mesmo noticiário:

«Vó Dina o que é que Cabo Verde faz na CPLP? aqui não se fala português! …»

A estranheza da Inês apanhou-me de surpresa. Pois até aqui não havia pensado a questão da “briga” oral do falante cabo-verdiano com a língua portuguesa, nos termos em que acabara de escutar postos pela Inês, e que, ipso facto, a fazia retirar a Cabo Verde o direito de pertencer à comunidade dos países que falam a bela Língua portuguesa. A minha mente naquele momento estava virada para os recém-nomeados para a CPLP e a desejar que eles fizessem alguma coisa positiva em prol da língua portuguesa em Cabo Verde.

Virando-me para ela e retomando o que ela acabara de sentenciar, acabei por concluir que alguma razão estaria com ela e assim se ter expressado.

 Afinal, este é um país da CPLP, onde não se ouve falar português.

A língua portuguesa quase que se reduziu da independência a esta parte vai para 39 anos, apenas à expressão escrita, infelizmente! Daí que falantes lusófonos, angolanos, brasileiros, entre outros, aqui chegados tenham dificuldades na comunicação com o falante ilhéu. Pois que, mesmo o escolarizado em língua portuguesa, oralmente não se expressa na língua comum.

 Olhei para ela e apenas pude responder: «Olha minha querida, és capaz de estar certa. Percebo-te bem. Aqui tu não ouves oralmente a língua portuguesa, excepto no teu ambiente familiar ou de amigos bem restritos. Só falam em crioulo».

 E a Inês continuou: «Mais estranho esta ausência aqui da língua portuguesa falada, uma vez que estão muitos cabo-verdianos jovens a trabalhar em Angola, e se lá não falarem em português, não se fazem perceber…».

 Pois bem, fiquei contente com este breve aflorar do assunto, por uma jovem de 16 anos que num sintético e expressivo raciocínio, expos a importância da Língua portuguesa nestas ilhas, que já a falaram e muito no passado, outrora que não agora, não só em ambientes domésticos, mas também nos serviços públicos e privados e, sobretudo em ambiente escolar. Por onde andará a Língua portuguesa em cabo Verde? Que é feito da nossa língua, nosso património, que nos faz aceder ao mundo do conhecimento, da cultura, do saber?

É a língua portuguesa que nos abre perspectivas de contacto com os demais falantes da comunidade em que estamos inseridos, a CPLP.