O respeito pela dignidade,
pela diferença, pelas instituições e pelo primado da lei são indicadores
essenciais para uma primeira abordagem sobre a saúde de uma democracia.
Hoje proliferam as chamadas
“fake news” (notícias falsas). Alguns
estudiosos sobre este assunto dizem que não existem “fake news” e que as situações a que dão esse nome deviam ser designadas
por “misinformation” (desinformação),
o que é bem diferente.
Há quase três décadas que
o período de 13 a 20 de Janeiro é marcado no nosso calendário político recorrentemente
por uma narrativa histórica efabulada e hiperbolizada que de forma calculada,
estudada, visa efeitos bem definidos, ao fugir deliberadamente da verdade dos
factos e se situar no domínio, não das “fake
news” mas das “misinformations”,
da manipulação da informação, com a intenção expressa de reescrever uma suposta
História “gloriosa” do nosso País, curiosamente, vivida e ocorrida na Guiné-
Bissau, como se de acerca de um corpo expedicionário, devidamente mandatado, se
tratasse.
Amílcar Cabral (AC), o centro
nevrálgico de toda a narrativa, a trave mestra de toda a trama, o instrumento
necessário e indispensável para a credibilização da narrativa, é, bizarramente elevado
ao estatuto de fundador de uma nação – a nossa – que já existia uns séculos
antes do seu nascimento. Ele que, por razões tácticas, estratégicas ou outras,
nunca se considerou cabo-verdiano, não obstante ter usufruído durante toda a sua
vida académica de uma bolsa de estudo destinada aos “naturais da Província de
Cabo Verde”, pelos vistos “indevidamente”. (Vide Daniel dos Santos in Amílcar
Cabral – Um Outro Olhar).
Considerar AC o fundador
da nacionalidade cabo-verdiana seria (ou é), de uma certa forma, como se alguém
tivesse a ideia patética e estapafúrdia de considerar Ben Gurion o fundador da
nacionalidade judaica. O mesmo não acontece com a Guiné-Bissau em que, por via
da luta para a independência se deu início a um processo liderado por AC de
formação de uma única Nação através da unificação das quase três dezenas de
nações (Vide Ruth Benedict – Padrões de Cultura) existentes no território, aliás,
um dos parâmetros conducentes a considerar a “luta da Independência”, sobretudo
em África, também um acto de cultura.
E nesta obsessão de fazer
de Amílcar Cabral o fundador da nacionalidade e para dar alguma consistência a
este desiderato, chega-se a forjar a sua própria naturalidade, como se esta – a
naturalidade – fosse algo que se outorga ou se herda.
Abrindo um pequeno
parêntese clarificador, convém aqui referir que Amílcar Cabral, natural de
Bafatá - Guiné, viveu apenas dez anos em Cabo Verde: três (2 + 1) anos na
Praia, terra da mãe – Iva Pinhel Évora – e sete no Mindelo, para onde a mãe se
mudara para o acompanhar nos seus sete anos do Liceu Gil Eanes. Depois de
terminar o curso em Portugal, na viagem para a Guiné com escala na Praia,
sequer saiu do barco para se encontrar com familiares e eventuais amigos, tendo
preferido ficar a bordo onde recebeu a visita do Dr. Arnaldo França, seu antigo
condiscípulo do liceu.
Fechando o parêntese e retomando
o assunto, a gravidade da questão não reside apenas na exaltação da figura de
AC que é apenas um meio, mas na investida de impor a sociedade cabo-verdiana
uma História que não é a sua e ao Estado uma ideologia (que a Constituição
proíbe), com recomendações várias de a alargar e perenizar através das nossas
escolas e de todo o sistema educativo. Não tem faltado incursões pelas Escolas
e produções literárias de cariz paigcista panegíricas.
Este ano de 2019 foi
particularmente prenhe de ofensivas feitas pelo PAIGC cabo-verdiano de consolidação
da sua estratégia de fagocitar o “novo” MpD e dominar todo o aparelho do Estado
impondo a sua idiossincrasia política, a sua ideologia.
A ofensiva paigciana chegou ao desplante de assumir,
em alguns casos, a paternidade do 13 de Janeiro – data da nossa autodeterminação,
isto é, da conquista da nossa liberdade e da nossa democracia – considerando-o
uma ocorrência menor, e subordinando-o à “nossa” independência sob a égide de
um Partido que não foi só autoritário e repressivo como foi manifestamente hostil
à uma importante parte da nação cabo-verdiana – a emigração – que tratou de a
ampliar com a criação de uma verdadeira diáspora política.
O 13 de Janeiro, ao
contrário, é uma data de liberdade e de democracia de todos os cabo-verdianos –
dentro e fora do País – e não apenas de alguns, de uma parte, de um Partido
restrito a um pequeno território.
Mas tudo vem sendo
possível graças ao “Pacto da Cidade Velha” que impôs o silêncio sobre a
Ditadura do Partido Único ao mesmo tempo que facilita e promove a reelaboração –
reconfigurando-a – de uma História com base nela.
Nesta movimentação não
faltou a cumplicidade de importantes figuras do Estado e da sociedade política
que tendo sido outrora maltratadas e escorraçadas do seio dos “melhores filhos”
para eles regressam hoje quais “filhos pródigos” na ânsia de recuperar um lugar
na História reconfigurada e reescrita na qual vêm participando activamente.
A vontade de agradar e de
se subordinar é tanta que hoje, de entre outras coisas, determinados actos
particulares e partidários da esfera do PAIGC ou de inspiração paigciana foram trasvestidos, com pompa
e circunstância, em cerimónias e celebrações de Estado.
Encontram-se ainda em
várias Repartições e, ao que se diz, até no Palácio, retratos de Amílcar Cabral.
E a verdade é que ele não consta em nenhuma linha ou página da nossa
Constituição. Em suma: Ele não é figura do Estado, o que não quer dizer que não
seja da História…
Por este andar, com a manipulação,
a formatação e a subordinação do Sistema Educativo bem como um certo desleixo
ou desconhecimento de alguma comunicação social, não tarda muito que tenhamos uma
espécie de “União Nacional” como metáfora de partido único a comandar os nossos
destinos.
O que se está a passar na
nossa sociedade política é simplesmente inqualificável. Mas que ninguém tenha
dúvidas: Conseguido o objectivo o “Pacto” será desfeito.