Activistas e Activismo “CPLPianos” em Portugal

sexta-feira, 30 de junho de 2023

 


Temos lido e ouvido, com uma frequência fatigante e uma intensidade já ensurdecedora de muitos africanos e brasileiros, já residentes em Portugal, quase todos oriundos das antigas possessões ultramarinas, ex-colónias portuguesas de África, e muitos do Brasil inclusive, – independente há mais de 200 anos – a maldizerem quase que diariamente, o país de acolhimento, porque é racista, porque é xenófobo, porque tem preconceitos porque os desdenha… Porque os não convida para lugares a que se sentem capazes, porque, porque, e mais porque, é que não faltam. Normalmente, estas críticas são de pessoas de mais instrução, aquelas que podem chegar às rádios, às televisões, em suma, as que têm acesso aos media portugueses.

Uma questão muito interessante é o facto de as reivindicações irem até à língua portuguesa exigindo a Portugal o que não dão, por exemplo, no Brasil, mais especificamente, nas suas escolas. Ouvimos e lemos brasileiros reclamarem que os seus filhos são prejudicados por não usarem a norma da variante de português de Portugal quando, temos por experiência própria, de um familiar muito próximo que, no Brasil, a intransigência vai até às Universidades. São intransigentes, repetimos: intransigentes, com a sua norma mesmo – ou sobretudo – para os estudantes universitários estrangeiros da CPLP. Têm de escrever “econômico” em vez de “económico”, “polêmico” em vez de “polémico” e por aí adiante; e dizer (e escrever!) “polonês” em vez de “polaco”, “indenização” em vez de “indemnização”, “anistia” em vez de “amnistia”, etc. etc. E o mais grave é que são penalizados em provas estritamente técnicas se não obedecerem as normas brasileiras.

Antes de continuar, abrimos um parêntese, pois devemos fazer um esclarecimento: temos, e sempre tivemos, um grande respeito, pelo verdadeiro emigrante que trabalha em condições, por vezes, bem duras, por vezes, vítimas de exploração, fazendo o que o nacional rejeita ou considera indigno, para assim, melhorar a vida dele e dos seus em terra estrangeira. Ninguém abandona o conforto do convívio com os seus familiares e amigos e a memória do cantinho da sua adolescência ou mesmo adultícia se não para o sacrifício da procura de uma vida melhor. Fechamos o parêntese e voltamos ao tema deste escrito.

Ora bem, não dizemos que não devam criticar e denunciar o que está incorrecto sobretudo o racismo e a xenofobia que são, no mínimo, abomináveis. A maneira como a maior parte o faz para manifestar a sua natural indignação é que é de uma arrogância e jactância para além da sua generalização abusiva que até parece que tais fenómenos são exclusivos de Portugal, não existem nos seus países de origem e que estão a descobri-los e a vivê-los pela primeira vez. É que é, no mínimo, na maioria das vezes, desrespeitosa, incorrecta e desajustada a abordagem que fazem. Esquecem-se que o mundo hoje é global e que toda a gente sabe muito bem o que se passa nos seus países de origem onde o silêncio deles fora absoluto. De repente descobrem a sua capacidade reivindicativa – o que faz a democracia! – e transformam-se em activistas – está na moda e já virou modo de vida, profissão – e assumem-se como os paladinos da liberdade, da democracia e até da igualdade enquanto nos seus países de origem que deixaram em idade bem adulta a discriminação racial é, por vezes, de tal forma que, em alguns deles, há escalões – autênticas castas – de acordo com a proporção da melanina combinada com a estrutura capilar. E julgam-se logo missionados, enviados por Deus ou qualquer outra entidade para erradicar o racismo e a xenofobia em Portugal.

Não parece descabido distinguir entre o racismo e a xenofobia. São normalmente associados quando de comum o que têm é alguma convergência nas suas motivações ou causas e o facto de serem ambos discriminação, segregação.

O racismo que se respalda numa superioridade rácica e cultural e tem como base a ignorância pura, a gratuitidade, o desconhecimento da ciência e, quando sistémico reside na protecção de uma classe que se pretende superior, e por via disto, socialmente dominante o que, normalmente, leva por arrastamento o económico.   É praticado por brancos, por negros, por amarelos e até por mestiços que, dada a sua génese, até poderiam estar, como sói dizer-se, sentados no muro… Não é invulgar ouvir-se na maioria – quase totalidade – dos países africanos um negro dirigir-se a um conterrâneo caucasiano que não conhece outro país, dizer-lhe: Vai para a tua terra! Ou a um mestiço: Vai para a terra do teu pai! Como se na mestiçagem a mãe fosse sempre negra.

A xenofobia, por sua vez, apoia-se num nacionalismo ou, por vezes, regionalismo, estreito, mesquinho e redutor que nem sempre se traduz na pretensão de superioridade, mas na preservação de privilégios e costumes supostamente não legislados ou considerados por impropriamente legalizados e/ou tradicionais. A este propósito assistimos a um comentador da TV ter sido qualificado de racista numa conferência de imprensa, por manifestar o seu desacordo com a naturalização específica de um brasileiro, por sinal caucasiano como ele, para a sua entrada para a selecção de futebol. Neste caso, é evidente que não pode ser classificado de racista… Ele era apenas contra naturalizados independentemente da cor! Seria, quando muito, um xenófobo, o que não é bem a mesma coisa embora seja, igualmente, abominável e execrável.

Mas o que está em causa quando criticam e maldizem é que são rapidamente afectados de uma memória selectiva e exclusivista, que não os deixa comparar as situações que vivem no país de acolhimento – Portugal – com as de outros países, designadamente de onde são originários e que apenas deixaram há tão-somente uns pares de anos.

Será que ter-se-ão perguntado quais os países do mundo serão menos “racistas” do que Portugal? Ter-se-ão perguntado porque não só escolheram viver, como até pretendem – ou pretenderam afincadamente – ter a nacionalidade de um país que consideram vincadamente racista e xenófobo? Será apenas um exercício de masoquismo?

É bom frisar que nesta pequena reflexão não se incluem os portugueses pretos ou mestiços, nascidos em Portugal, que não conhecem (viveram em), outros países, nem outras culturas, sequer as dos seus ascendentes e cujas raízes culturais se encontram em Portugal que, por esta via, não têm referências externas nem têm outras “escolhas”.  São portugueses de origem e europeus!

Adiante:

Tudo isto faz lembrar determinados cidadãos oriundos de países em que a repressão é máxima e a tolerância religiosa é nula, chegados a Europa, apoiam-se na democracia e, consequentemente, na liberdade religiosa para fazer reivindicações deste tipo exigindo inclusive que serviços públicos se adaptem ao seu modo de estar religioso e a sociedade se molde aos seus valores. Uma coisa será considerar e respeitar os seus valores e outra bem diferente seria que a sociedade que os acolheu e de cujos valores passaram também, de certa forma, a ser deles ou, pelo menos, a serem do seu conhecimento e obrigação de os respeitar e considerar, para uma integração plena, se submeter aos deles, invertendo a lógica das situações.

O que não deixa de ser intrigante é que passados quase 50 anos após a independência das colónias portuguesas de África é que é exactamente na antiga potência colonizadora onde se sentem hoje melhor, com melhor qualidade de vida – dados da estatística da imigração em Portugal registam uma avalanche de pedidos de vistos e de naturalização – é que mais criticam. Quanto a maldizer o país deles, nada se ouve desses que se dizem e se gabam de “activistas”. Sabem que, de outro modo não poderiam lá voltar de férias nem de visita aos amigos e familiares. Enfim, um procedimento que não se pode propriamente classificar de digno ou de corajoso!...

Ou, tratar-se-á de um estranho e bizarro fenómeno de não “descolonização da mente” ou de não “reafricanização dos espíritos” do antigo colonizado? Ou será que, por esta via, não se sentem propriamente estrangeiros e julgam que ainda estão no “Portugal de Minho a Timor”, mas desta feita em democracia plena ou, o que será quase o mesmo, no “Imenso Portugal” de Chico Buarque?

Convenhamos que nesta matéria de racismo e xenofobia, devemos todos ser activistas não só em Portugal, mas onde quer estejamos! É que o activismo não pode ser uma profissão nem uma actividade em “part-time” ou de pura promoção do estatuto intelectual.

Sim, porque alguns, mal chegam a Portugal, transfiguram-se em assanhados e proeminentes activistas, em profissionais de reivindicações, e logo ao desembarcar, já vão pensando na pichagem e no derrube de estátuas e de monumentos que, dizem, lhes lembra o colonialismo que não conheceram e a escravatura da qual se esquecem selectivamente dos 13 – treze! – longos séculos da igualmente atroz escravatura árabe em África.

Quando pensamos que passados quase 50 anos sobre o 25 de Abril em Portugal – que trouxe a independência aos países outrora colónias portuguesas – e que o Presidente da República do país anfitrião das comemorações dessa data, convida ou manifesta que tenciona convidar os PR dos PALOP e a Amnistia Internacional, se opõe frontalmente criticando severamente a indignidade e a ilegitimidade da presença de alguns desses chefes de Estado nessas históricas comemorações pela maneira como lidam – desrespeito absoluto – com os Direitos Humanos, fica bem claro onde e de facto fazem verdadeiramente falta os verdadeiros activistas africanos. É caso para se perguntar:

Onde estiveram o activismo e os activistas este tempo todo?

O activismo não pode ser apenas reactivo, casuístico e epidérmico nem tão pouco uma profissão, um ganha-pão, e, muito menos, um palco ou uma feira das vaidades. Isto não abona, não nobilita, nem dignifica a actividade!

O activismo é uma atitude, um comportamento, uma práxis; e deve ser proactivo e constante. Um exercício firme e permanente de civismo, de cidadania, de civilidade e de humanidade desempenhado com toda a pedagogia.

O resto é tarefa do Estado de Direito Democrático!

Ondina e Armindo

 

A Joana e o seu tabuleiro

quarta-feira, 28 de junho de 2023

 


 Adriano Miranda Lima, ensaísta, poeta e contista, traz desta vez ao leitor do "Blog," um Conto  que tem como temática a Festa dos Tabuleiros de Tomar. Muito interessante e cuja leitura se recomenda.


De repente, a Joana, sabe-se lá porquê, sentiu um profundo remorso por sempre se ter recusado a participar com o marido, Alberto, no desfile da Festa dos Tabuleiros, incorporando a representação da sua freguesia. Esta sensação incómoda começou a assaltá-la quando faltava pouco mais de um ano para a próxima festa. Mas agora era tarde, porque enviuvara há três anos. − É como a saúde ou outras coisas boas da vida. Só damos pela sua importância quando deixamos de as ter. Ah, como teria dado os meus últimos anos de vida para ir levar um tabuleiro com o meu Alberto! – pensou ela com os seus botões. No dia seguinte, a regar a horta nas traseiras da sua casinha dos arredores da cidade, tomou repentinamente uma firme resolução: − Desta vez, vou, sim senhora, levar um tabuleiro. Custe o que custar. É assunto da minha inteira conta e não preciso comunicar à freguesia. Par já tenho. E vou construir o tabuleiro com os produtos da minha própria lavra. E assim decidiu semear o próprio trigo com que cozeria os 30 pães no forno do seu quintal. As canas para enfiar os pães iria colhê-las junto ao ribeiro e o vime para a confecção do cesto, base do tabuleiro, também não era problema nenhum. Ela própria construiria o cesto com as suas mãos, assim como arranjaria o metal para moldar a Coroa com a Cruz de Cristo. As flores iria colhê-las, claro, no seu pequeno canteiro do quintal. Teria apenas de se preparar convenientemente e passar decididamente à obra. A Joana não teve dificuldades em aprontar os elementos necessários para o seu tabuleiro. Igualmente, nada lhe custou a sua confecção, tendo sido a tarefa mais meticulosa, a que emprestou especial desvelo, o bordado do pano de linho com que ia cobrir o cesto de vime. Como manda a tradição, o tabuleiro foi montado para que medisse exactamente a sua altura, 1, 65 metros. Faltava costurar o traje, composto pela blusa, a saia comprida e os respectivos enfeites, mas a seu tempo disso se encarregou com as próprias mãos na sua velha máquina Singer. Com tudo preparado, em inícios de Junho, começou os ensaios nas imediações da sua casa, normalmente ao fim da tarde, fazendo pequenos percursos com o tabuleiro à cabeça, entre as poucas casas próximas. Intrigados, os vizinhos observavam de longe os ensaios, porque ninguém ignorava que a Joana sempre se mostrara avessa a participar no cortejo com o marido, talvez por não se sentir fisicamente capaz ou por simples timidez… sabe-se lá? Agora que as pernas já lhe pesam aos seus 60 anos é que se vai meter num empreendimento deste? E depois quem seria o seu par? Ninguém sabe, porque se a Joana foi sempre senhora do seu nariz, passou a isolar-se muito depois da morte do Alberto. Estas eram as interrogações silenciosas dos vizinhos, que, no entanto, foram acompanhando com crescente curiosidade as deambulações diárias da Joana por entre as casas. O par que ela tinha em mente para o desfile é que era uma verdadeira incógnita. Chegou o Dia dos Tabuleiros. Estava um dia normal de Julho, quente e luminoso, mas com uma leve brisa a amenizar de quando em quando a temperatura do ar. Os tabuleiros da freguesia tinham sido na véspera transportados para o espaço habitual da sua concentração – a Mata dos Sete Montes – de onde sai o cortejo. Mas não há notícia de o tabuleiro da Joana ter ido integrado no conjunto, porque nem mesmo o presidente da junta de freguesia teve conhecimento das suas intenções, embora lhe tenham chegado uns rumores aos ouvidos. Por isso, a seguir à hora do almoço, olhos curiosos foram às janelas espreitar quando viram passar uma pequena carrinha de caixa aberta com o tabuleiro da Joana e esta no banco ao lado do condutor, que logo se desconfiou pudesse ser o par masculino. À hora prevista, o estalejar dos foguetes e as bandas de música anunciaram a saída do cortejo da Mata dos Sete Montes. As avenidas e as ruas estavam pejadas das multidões de centenas de milhares de visitantes que encheram a cidade. O longo cortejo de tabuleiros, com as representações das freguesias e os seus pendões, foi escoando gradualmente ao som da música das várias bandas, sob os aplausos vibrantes das multidões. Passaram os tabuleiros de todas as freguesias, e no fim do respectivo cortejo, a cerca de dez metros de distância, surpreendentemente, desfilava uma senhora já de certa idade com um tabuleiro à cabeça, sozinha, sem par. Os assistentes olhavam-na com especial curiosidade e não faltou quem sentisse o impulso natural de avançar para a ajudar, ao aperceber-se de que ela não levava o habitual par. O gesto voluntário iria contra o protocolo do desfile, mas seria uma ajuda, nem que fosse por alguns metros de percurso. De resto, era visível que ela já não tinha o vigor físico do comum das raparigas que desfilavam mais à frente. De súbito, alguém a deve ter identificado, porque entre os assistentes junto à Ponte Nova se ouviu gritar, em meio a aplausos sonoros que logo se multiplicaram: − Joana!!! Joana!!! Mas esta, se ouviu, não teve qualquer reacção ou não se deu por isso. Apesar da sua notória dificuldade em cumprir a promessa solene que fizera a si mesma, a Joana, com o rosto perlado de suor e as pernas parecendo por vezes quererem vacilar, lá foi desfilando com o seu tabuleiro ao longo das ruas e avenidas, enigmática figura aparentemente autonomizada no gigantesco cortejo. Bem ela jurara a si própria que haveria de desfilar por conta própria. O cortejo chegou finalmente ao seu termo, com os conjuntos dos tabuleiros das freguesias recolhendo às suas zonas de reunião para a posterior desconcentração. Só que a Joana não interrompeu o seu percurso, porque ela o idealizara intérmino e sagrado, como algo imerso no espaço e para lá do tempo. Continuou a caminhar, em passo lento, mas resoluto, rumando em direcção ao sol poente. O tabuleiro já não lhe pesava e as pernas se lhe tornaram penas de ave. Alguém caminhava silenciosamente ao seu lado e ambos levitavam sobre uma estrada de luz.

 Escrevo de acordo com a antiga ortografia.

Tomar, 25 de Junho de 2023

Adriano Miranda Lima

sábado, 24 de junho de 2023

 

Eis uma reflexão que nos interpela sobre o passado, o presente e o futuro (?) da Democracia, lá onde ela se julga ou, se julgava consolidada.

O autor, Adriano Miranda Lima, já habituou o leitor deste “Blog” com os seus textos dotados de um certo rigor, e de uma excelente argumentação sobre os temas em que se debruça.

 

Da democracia e suas atribulações

 

Olha-se para a democracia, ou para as democracias, e não se pode deixar de reflectir sobre a sua longevidade como sistema de governo, com os modelos mais ou menos puros ou híbridos que ostentou ao longo da História, interrogando-se sobre o que ela será daqui a algum tempo com as tecnologias de informação e demais inovações que vieram alterar de uma forma sem precedentes as mundividências dos povos.

 Como é sabido, o berço da democracia remonta à Grécia Antiga, em que as decisões do governo da cidade eram sufragadas pelo voto entre os cidadãos, mas sem que o sistema configurasse um modelo de igualdade integral porque as mulheres, os estrangeiros e os escravos eram excluídos. A Revolução Francesa, com os seus três princípios basilares − Liberdade, Igualdade, Fraternidade – representou a essência de uma idealização, mas o que de concreto ela legitimou foi a ascensão e consolidação da burguesia. Logo depois, a Revolução Industrial e o primado do capital financeiro é que iriam modelar o sistema político que hoje se designa, na prática organizacional e na metodologia jurídico-institucional, por democracia, consagrando-se principalmente no chamado mundo ocidental, mas irradiando para outros quadrantes geográficos.

 Mas o curso da democracia nunca foi pacífico, e o mais provável é que nunca o será, conhecendo avanços e recuos, dúvidas, desvios, tergiversações, em torno dos possíveis modelos que melhor se entende representam a vontade popular e realizam os objectivos nacionais. Até há quem a considere um sistema imperfeito ou pouco adequado; e, sobretudo, não adaptável a todas as culturas e mentalidades, o que pode ser verdade relativa em algumas geografias humanas ou por comprovar noutras, mas não uma clara evidência científica. O facto é que a democracia, ao longo do tempo, procurou conformar-se com a natureza de cada sociedade, e por isso sofrendo nuances ou ajustamentos na sua prática procedimental. Isso era inevitável, porque a democracia é um produto da História, não da natureza. Se fosse este último caso, tratar-se-ia de uma intuição a priori fornecida pela razão, pelas aptidões inatas do ser. Mas será mais apropriado dizer que ela resulta de aquisição empírica, como diria David Hume, com laivos do racionalismo crítico de Kant, donde o mais consensual é considerar que é na síntese entre o empirismo e o racionalismo, na perspectiva do filósofo alemão, que se estrutura a sua Ética conducente ao Iluminismo, e desde logo à democracia.

 Não foi por coincidência temporal que a implosão da URSS e do seu sistema económico e o incremento do chamado neoliberalismo − adaptação do liberalismo clássico à economia globalizada – vieram, indirectamente, mas de forma evidente, propiciar situações disruptivas no modelo de democracia que antes se tinha como relativamente delineado e estabilizado. Por exemplo, antes consideravam-se as sociais-democracias dos países nórdicos europeus como das mais perfeitas realizações da democracia e do estado social. Mas as incidências do neoliberalismo iriam provocar as crises ou oscilações no sistema financeiro mundial que de um modo ou outro condicionaram as políticas nacionais, causando, inevitavelmente, injunções negativas nas próprias democracias, porque fizeram emergir tensões entre objectivos e finalidades que pela suas naturezas não se conciliam. E é neste quadro que emergiram autocracias mundiais como a China e a Rússia, pontificaram autocratas como Trump e Bolsonaro e instalaram-se outros como Erdogan e mais os que apostam seguir na mesma senda na Hungria, na Itália, na Polónia ou em Israel.

 A disseminação das redes sociais, abrindo espaço ao “trollismo”, ao anonimato e usurpação das regras de convivência no espaço internético, fez catapultar fenómenos de populismo e de afirmação identitária que não se coadunam com a democracia tradicional, e que tudo fazem para minar os seus alicerces e incitar até à sua supressão. Poderia esperar-se que a comunicação social tivesse a percepção de que lhe cabe contrabalançar os efeitos das redes sociais perniciosas para a saúde da democracia. Mas, infelizmente, tal não acontece porque a comunicação social em grande parte dos casos manda às urtigas a ética e a deontologia por que devia orientar a sua linha editorial, ao entrar de forma subtil ou encapotada na disputa político-partidária, com inclinação preferencial para as facções mais favoráveis aos interesses do capital privado que alimenta o seu negócio. Ora, a democracia não sobrevive sem uma imprensa livre e saudável, limpa e honrada. E o que irá acontecer com a expansão incontrolada das redes sociais e o incremento da inteligência artificial?

 Assim, a preocupação é restaurar uma relação de saudável compromisso entre as democracias e os interesses da economia de mercado, que é onde está a raiz do problema. A resposta imediata é que só a melhoria das políticas sociais e económicas será capaz de desmobilizar os populismos de que se alimentam os extremos do espectro político. Contudo, se a resposta é óbvia, mais difícil é passar da intenção à prática. Porquê? Porque as soluções dos problemas não se encontram ao virar da esquina, por um simples estado de alma ou por momentânea inspiração de um presumido iluminado, mormente hoje com a influência mais preponderante do fenómeno da globalização e do sistema financeiro internacional sobre as políticas nacionais.

Além disso, a conflitualidade política instala-se por vezes mais como um espectáculo circense do que por necessidade. Critica-se sistemática e gratuitamente quem está na governação, mas poucas vezes se tem uma alternativa válida. Nunca ou muito raramente uma medida desperta concordância ou aprovação. A ideia que fica é que só quem está fora do círculo do poder se julga detentor de atributos de lucidez e sapiência − que supostamente abandonaram os que ousaram sentar-se na cadeira do poder. Isto passa-se naturalmente com opositores políticos, mas sobretudo, e cada vez mais, com comentadores ou analistas. Claro que tudo isso seria esperançoso sintoma de energia cívica e de vitalidade democrática, caso se apresentassem propostas de solução viáveis, fundamentadas e devidamente enquadradas com a realidade, e caso os seus autores fossem cidadãos com provas sobejas dadas na política ou com experiência de vida vivida, e não apenas actores de uma circunstancial cena mediática. Actores que, julgando-se provavelmente possuídos de um qualquer estado de graça, devem sentir-se felizes por afagar o seu ego nem que seja só pelo tempo do protagonismo frente às câmaras ou nas páginas dos jornais.

 Efectivamente, não são poucos os casos em que um habitual comentador assume um cargo de governação em área de que foi acérrimo crítico e acaba por ficar muito aquém das expectativas que alimentou com a escorreiteza do seu verbo ou a arte da sua escrita. Muitas vezes já me perguntei, por exemplo, a razão por que um muito conhecido jornalista da área da economia num dos nossos canais de televisão nunca foi chamado para a pasta das finanças ou da economia, ele que é tão seguro, tão convicto e tão assertivo sobre as soluções para a governação do país nessas áreas. Mas quem diz dele dirá de tantos outros que diariamente nos entram em casa pelos ecrãs dos televisores. Porque é que não são convidados para a governação? O país está a desprezar a nata do seu intelecto e sabedoria?

Enfim, não se prevê que a democracia venha a ter vida tranquila nos tempos próximos. É em Portugal como na Europa e noutros países, suscitando especial preocupação quando se olha para o poderoso EUA e os sinais de instabilidade que emite devido ao populismo quase demencial de um ex-presidente. É puramente ideológica e destituída de credibilidade a tese amplamente difundida de que o desenvolvimento económico e social iria ampliar e fortalecer as classes médias e que estas alavancariam o desenvolvimento do regime democrático. Porque é a história que demonstra que as classes médias não são garantia absoluta para a saúde da democracia e que, pelo contrário, costumam impulsionar mudanças políticas diferentes e por vezes surpreendentes. Temos o recente exemplo da Itália.

 Por tudo isto, alguns autores vêm falando numa “pós-democracia”, que entendem já ensaia o seu curso desde há algum tempo e pode vir a consolidar-se como um novo modelo do regime democrático. Será o que se entende por uma democracia possível ou aferida às contingências do tempo em que vivemos, rompendo com as práticas anteriores? Seja o que for, há razões para apreensão, porque se ao longo dos cerca de 80 anos de democracia na Europa a guerra foi esconjurada, há autocracias que estão a levantar a cabeça e a ditar sentenças, com tambores de guerra a soar em território europeu como não se via desde a Segunda Guerra Mundial.

Escrevo de acordo com a anterior ortografia.

 

Adriano Miranda Lima

 

 

sábado, 17 de junho de 2023

 

O assunto - a Inteligência Artificial, IA - tem estado ultimamente no centro das atenções dos pensadores e dos investigadores, como uma das grandes questões que vieram para ficar para o bem e para o mal da Humanidade.

Daí o interesse deste Artigo do Prof. Poiares Maduro, publicado no Jornal Expresso de 16/06/2023. Trata-se de um texto muito esclarecedor, e escrito numa linguagem escorreita e entendível para o Leitor.

Com a devida vénia ao autor, tomámos a liberdade de aqui o transcrever.

 

O fim ou um novo início?

Por Miguel Poiares Maduro[i]

Uns ameaçam com o fim da Humanidade. Outros celebram a nossa maior oportunidade. A única coisa que parece certa é que a inteligência artificial constitui a maior revolução na história da Humanidade depois da descoberta do fogo.

Se a revolução digital tem tido um impacto semelhante ao da invenção da impressão (promovendo numa escala exponencialmente a maior disseminação de informação e ideias, quer verdadeiras, quer falsas, quer boas, quer más), a inteligência artificial não vai mudar apenas as nossas vidas, vai, muito provavelmente, mudar o que é a Humanidade. Tem tanto de prometedor como de aterrador.

Vai-nos oferecer conhecimento com uma facilidade nunca vista, mas também vai mudar o que é o conhecimento. Vai-nos permitir ser músicos sem saber compor ou pintar sem conseguirmos desenhar, mas exigindo-nos repensar o que é afinal a arte.

Vai-nos substituir em tarefas rotineiras e aborrecidas (de responder a e-mails a fazer os nossos impostos ou contabilidade) e permitir-nos concentrar nos trabalhos mais interessantes e criativos. Seremos muito mais produtivos, mas uma percentagem significativa dos actuais empregos irão desaparecer e não sabemos ainda como lidar com as consequências redistributivas e sociais dessa transição.

Vai desburocratizar e automatizar o Estado, dos licenciamentos à contratação pública, trazendo celeridade e não sendo corruptível, mas podendo consolidar enviesamentos históricos que desfavorecem certos grupos. Tanto nos vai permitir verificar em tempo real as afirmações de um político como enganar-nos através de vídeos falsos que imitam na perfeição a voz e imagem desse político.

Vai facilitar os compromissos e consensos políticos no domínio técnico ao mesmo tempo que poderá exacerbar a componente polarizadora da política ou reforçar os instrumentos de controlo social num regime autoritário.

Vai melhorar e democratizar o acesso à saúde permitindo diagnósticos automáticos ou à distância, mas também pode reforçar a perda de empatia emocional no tratamento dos doentes.

No meio disto tudo, as certezas são poucas. Será profundamente disruptivo. Vamos precisar de novas ferramentas mentais e sociais. Mais do que reter conhecimento, vamos ter de aprender a questionar de forma diferente (nos modelos de linguagem da IA a mais-valia que retiramos deles depende sobretudo da qualidade das perguntas que fizermos).

Não passaremos a ser obsoletos no processo de conhecimento, mas teremos de ser diferentes. As dimensões criativa e social da nossa Humanidade serão ainda mais importantes.

Não vamos conseguir controlar tudo, mas temos de regular o possível. Diminuir os enviesamentos históricos que a inteligência artificial tende a reproduzir (a inteligência artificial “cria-se” de acordo com o histórico da informação e decisões que a alimentam; se esse histórico é dominado por certas discriminações, a IA, por si só, tenderá a perpetuá-las). Exigir transparência, desde os algoritmos à possibilidade de sabermos se estamos a interagir com humanos ou com a IA ou a ver ou ler algo criado por IA. Temos de decidir o que queremos continuar a decidir e o que queremos delegar na IA.

Muito do futuro da IA já aí está. Mas o risco de um sistema de IA que assume consciência humana e nos substitua está longe. O grande risco, no entanto, não é o de uma inteligência artificial que se sente humana. O grande risco é termos uma sociedade controlada por IA sem a emoção que distingue os humanos. Temos mais tempo para lidar com isto do que alguns ameaçam, mas menos do que aquele que parecemos presumir ter. Estamos atrasados.



[i] In Expresso de 16.06.2023

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 4 de junho de 2023

 

O texto que se segue é da autoria de Francisco Fragoso - médico de profissão e escritor, - e  que versa sobre a Língua portuguesa, ou melhor, sobre o ser cabo-verdiano bilingue, “enformado vivamente” nas duas Línguas, a cabo-verdiana e a portuguesa, como afirma o autor.

Por se coadunar com a linha dos textos aqui publicados;  com a devida vénia ao autor, deixo ao leitor do “Blog” o registo, para uma leitura prazerosa e muito apelativa.

 

NASCI BILINGUE!

“Ser culto és el único modo de ser libre” José MARTÍ

 

 Nasci bilingue.

Bilingue

Hei de morrer!

Duas Línguas

A Cabo-verdiana E A Portuguesa

Enformaram (e enformam, enformando), vivamente (e para sempre), a nossa Matriz Linguística desde o berço, numa harmonia perfeita! Ainda bem! Um primoroso CONÚBIO, arvorando-se, numa assunção, quão nobre, singular e assaz Bela! Nascemos, no seio de uma família (genuinamente), bilingue, que nos orientou (avisada e inteligentemente), nos meandros desta matriz linguística (naturalmente inata). Eis porque, desde a tenra idade tivemos o privilégio de ser educado (com acerto e determinação), de modo (dialeticamente), correcta e consequente, na performance em que esteiam estes dois belos idiomas. Concretamente, no atinente à Língua Portuguesa, a nossa saudosa avó materna (Maria do Rosário Cardoso), com esclarecido apoio dos meus pais, preparou-nos (com um rigor certeiro), pois que nos ensinou esta maravilha, que é, efectivamente a Língua Portuguesa (na sua vera complexidade), como, aliás, deve ser ensinada uma Língua, ou seja, como língua primeira, utilizando para o efeito, como instrumento de iniciação adequada, (sempre), actual e apropriada, neste caso em concreto (da Língua Portuguesa), que é, realmente a Cartilha Maternal da lavra e autoria do Egrégio Poeta e Pedagogo Luso: João de Deus (1830-1896) Daí, evidentemente, a nossa robusta e sólida competência, numa Língua, que é a Criação mais esplendorosa e irradiante de Portugal! De feito, o nosso Ensino da Língua Portuguesa foi conduzido com recursos ponderados e pertinentes oriundos de conhecimentos sazonados, visando a formação da nossa inteligência e intelecto, da nossa sensibilidade, do nosso imaginário, do nosso pensamento, da nossa capacidade de julgar, argumentar, deliberar e assumir responsabilidades profissionais, culturais e cívicas, para que o nosso, futuro  não fosse o de um homem (pós-humano) . . . Sim, efectivamente recebemos saberes básicos que nos proporcionaram adquirir competências e instrumentos necessários para que pudéssemos participar (responsavelmente), na vida cívica da nossa Comunidade de pertença (e não só), como cidadãos conscientes da dignidade e das limitações da nossa Humanidade!

Lisboa, 27 Maio 2023

Francisco Fragoso

Médico, Pensador, Dramaturgo e Intelectual Cabo-verdiano.

In: Jornal «A Nação» de 1/06/2023

Afinal é má-língua

sexta-feira, 2 de junho de 2023

 

 

   Enviado por um amigo e conterrâneo com quem partilho ideias sobre várias questões, nomeadamente, as que dizem respeito à língua portuguesa, segue um texto de autoria de Appio Sotomayor do Jornal «O Templário» de Tomar.  Um texto com humor e com muita ironia e  é assim que deve ser lido e percebido.                                                                 

Imaginava eu, na minha ingénua ignorância, que tinha umas noções correctas sobre a minha língua natal. Na verdade, noutros tempos o ensino do Português era encarado como fundamental. Durante o secundário, por exemplo, era tido como a disciplina número um. Afinal, como tudo munda no destino e na vida, cheguei, em tempos mais recentes, à conclusão de que ou a língua mudou ou eu me deixei ultrapassar pelas novas descobertas.

Vamos a exemplos: numa reportagem da TV, foi explicado que uma jovem se salvou de afogamento num mar um tanto revolto porque sempre se “manteu” agarrada à prancha da natação. Pensei eu tinha sido gralha, mas o locutor repetiu mais vezes a expressão.

Passados dias, uma figura com algum nome nas letras, ao evocar uma escritora cujo centenário se comemora este ano, revelou que esta tinha dotes de quase-profetisa e “anteveu” casos que só ocorreram anos depois. E insistiu que a senhora “anteveu” uma data de coisas.

Desta forma, quando ouvi um cavalheiro ligado ao Governo opinar que uma determinada comissão “comporia-se” de uns tantos membros, concluí que de facto alguma coisa mudara!

Outra fantasia que me foi ensinada dizia que a língua portuguesa tinha como primeira base o latim. Ora, pelo que tenho sabido recentemente, afinal é ao inglês que temos de ir buscar as raízes. Por exemplo: noutros tempos, dizia-se “sine die”, como sinónimo de ausência de uma data fixa. E jurávamos que a expressão era latina. Mas há locutores a pronunciar “saine dai”, mostrando que tudo vinha da Grã-Bretanha. E até vi num jornal, a propósito de um óbito, que se aplicava ao caso a “fórmula britânica RIP”. Deve ser, portanto, “in peice”!

Também a referência aos meios de comunicação fez história.

Usou-se a palavra “media”, que alguns ingénuos supunham ser o plural do latim “medium”, sinónimo de “meio”. Mas a verdade é que hoje toda a minha gente pronuncia “mídia”. Inglês, claro!

Aliás, o inglês, transformado em língua universal, vai substituindo gradualmente o nosso velho português. Desde o Museu da Imprensa se chamar “News Museum” até uma barbearia das minhas imediações se intitular “Barber shop”, vamos adquirindo estes novos conhecimentos.

Por tudo isto, penso no Sr. Peres, na D. Alice Lopes, no Dr. António Sousa, no Prof. Faustino Costa, na Dra. Maria Helena Machado – que tentaram ensinar português à gente do meu tempo em Tomar. Se pudesse dar-lhes um conselho, pediria para não pensarem em ressuscitar. Morreriam outra vez logo a seguir. Desta vez, seria de susto! A língua em que eram peritos transformou-se má-língua.

Appio Sottomayor

 

In: Jornal «O Templário» de 1 de Junho de 2023