O próximo Ano-lectivo e os Alunos Sem Máscaras(?)...

quarta-feira, 29 de julho de 2020


Causa enorme preocupação a qualquer encarregado de Educação, a qualquer cidadão, minimamente consciente, o que se está a passar nas ilhas com a questão das máscaras e a sua não utilização generalizada entre jovens em idade escolar.
É vê-los em grupos, agora que estão de férias, nas ruas, muito próximos uns dos outros e sem máscaras ou outro meio de protecção.
Se perguntados, quase todos responderão desta forma, apenas com algumas variantes: “Sim, eu queria usar máscara...mas como obter uma, se são tão caras!?”
Já se parou um momento para se questionar sobre a exorbitância que passou a ser, em termos de preço, uma máscara descartável, dita cirúrgica comprada nas farmácias?
O que surpreende e não se compreende é que antes da pandemia, sem “doações”, sem subsidiação e sem grande procura de máscaras – economia de escala – o seu preço era em média 15$00 por unidade e actualmente, após o surto pandémico, em que a procura e a necessidade das máscaras terão, logicamente, aumentado exponencialmente, elas passaram a custar em média, mais de 100$00 por unidade, isto é, quase sete vezes mais. Atenção: 7 vezes mais!!!
Será que o Estado, através dos mecanismos adequados não poderá pôr cobro a esse “lucrativo” negócio de máscaras?
Não estará a haver uma especulação visível e consentida num momento tão frágil e tão delicado de Saúde Pública?  
Quem poderá ter a coragem de tirar escandalosa e oportunisticamente proveito da pandemia?
Quem estará a fazer negócio com a Saúde Pública tolhendo os jovens e as famílias de parcos recursos o acesso aos meios de protecção indo mesmo ao arrepio das grandes orientações das autoridades sanitárias sobre a matéria?
 Num país em que a média da população é pobre e proveniente de família numerosa e monoparental; em que o problema de habitação e alojamento – espaço de isolamento ou de coabitação – se põe com grande acuidade; em que o risco de contágio e de difusão do covid-19 é altíssimo; em que a faixa da população que não possui condições económicas para usar os tais recomendados equipamentos de protecção individual e social é muito significativa, não deveria o Governo, na sua política de prevenção, procurar em primeira instância, soluções que colmatassem essas situações? Que facilitasse a protecção e combatesse a disseminação?
E digam-me como exigir que os nossos estudantes usem máscaras se os preços delas são incomportáveis com o poder de compra da maior parte da população cabo-verdiana? O salário mínimo é de 13.000,00 CV, isto é, menos de 450,00 por dia! Acresce-se a isso o aumento do desemprego, devido ao Covid-19.
Convém ter presente que em breve iniciar-se-ão as insubstituíveis aulas presenciais.
Isto é, vamos ter Professores e alunos numa sala de aula – com os cuidados profilácticos necessários – pois só assim é que se realiza em plenitude, o acto didáctico/pedagógico a que damos o nome de aula.
Neste contexto, as aulas virtuais, a telescola, serão sempre complementos/suplementos e como tal, funcionarão subsidariamente.
Com efeito, nada substitui a aula presencial, reitero. As outras formas lectivas são último recurso, com imensas deficiências, entre as quais destacaria: as condições de residência do aluno, o número do agregado familiar, geralmente numeroso; o acesso aos aparelhos receptores das aulas tele-transmitidas; as condições de audição/recepção das aulas (meio envolvente); o manter despertos o interesse e a atenção do aluno num tipo de aula virtual e sem interacção professor/aluno; aluno/aluno; entre outros factores que marcam  enorme diferença entre a aprendizagem e o saber  do aluno, resultantes de uma aula presencial face aos constrangimentos da aula totalmente virtual.
Mas retomando a questão das máscaras, volto a questionar, o que terá acontecido para que houvesse, após o surto da covid-19, um disparar altíssimo no preço das máscaras? Logo agora que estão em maior quantidade no mercado e serem quase consideradas produtos de primeira necessidade?
Não quero com isso dizer, que as máscaras devam ser de graça, sem custo ou, simplesmente ofertadas. Não, nada disso.
Mas é minha firme convicção de que no caso de alunos e de crianças em idade escolar, a máscara devia ter um preço simbólico e, em certos casos e com alguma ponderação – para ser obrigatório o seu uso – gratuitas para famílias numerosas e que vivam no limiar da pobreza.
É que só assim poder-se-ia acreditar que estavam a ser feitos esforços reais para tentar debelar ou reduzir os efeitos perniciosos do tão maléfico vírus!
Não será a ausência de meios de protecção individual e social, uma das razões que explica que Cabo Verde tenha chegado a um dos mais altos rácios de contaminados – 78 por 100 mil habitantes?  Cerca de quatro vezes do permitido (20 por 100 mil) para se viajar para o espaço europeu...
Convenhamos que é um número que merece uma profunda reflexão e tomada de medidas consentâneas com a sua gravidade.
Não é por acaso que estamos a assistir e a sofrer as consequências nefastas, com o aumento de casos infectados que se vem verificando um pouco por cada ilha, com expressão maior na Cidade da Praia.
E se assim continuarmos, o atendimento sanitário será cada vez pior, mais complicado, dada a penúria existente de meios de atendimento hospitalar, das precárias condições dos albergues provisórios e improvisados – devidos à urgência dos casos – para o isolamento profiláctico dos contaminados.
Infelizmente, outras consequências nefastas, espelham-se igualmente nas actividades económicas, na educação, na vida cultural e social destas ilhas, com o aumento assustador da infecção viral.
Já se ponderou sobre a falta que faz uma política social da aquisição e disseminação do uso das máscaras de protecção em Cabo Verde?!
Minha gente, pensemos nos mais necessitados e nos mais vulneráveis. É obrigação de todos e, sobretudo, daqueles que nos governam.
Protejamos – tornando as máscaras acessíveis – os alunos que brevemente iniciarão as suas actividades lectivas.
O Covid-19 não escolhe idade!...

Corsino António Fortes (1933-2015) - Uma homenagem singela na passagem do quinto aniversário da sua morte -

sábado, 25 de julho de 2020


 Poeta desde os tempos de estudante do Liceu de Gil Eanes de Mindelo, ilha de São Vicente, de onde é natural, Corsino Fortes, iniciou-se no «Boletim dos Alunos do Liceu de Gil Eanes em 1959.
Publicou também poemas na revista «Claridade» e no «Cabo Verde − Boletim de Propaganda e de Informação», nos inícios dos anos 60 do século passado.
O poeta Corsino Fortes, começou a trabalhar cedo e segundo Manuel Ferreira, («Reino de Caliban I» 1975, página 203): “Fez os seus estudos liceais já numa fase adiantada da sua juventude.(...) Foi professor  eventual do Liceu da Praia”.
Mais tarde, em 1962, obteve uma bolsa de estudos e seguiu para Portugal para prosseguir estudos superiores.
Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, foi Juíz de Trabalho em Angola, onde permaneceu até ao processo (1974/1975) das independências das antigas Colónias ultramarinas portuguesas.
  Ainda em 1974, regressou a Cabo Verde, tendo, logo a seguir a independência desempenhado funções de membro do Governo e de Diplomata; tendo sido nomeadamente, Embaixador de Cabo Verde em Portugal e em Angola.
Foi Presidente da antiga Associação dos Escritores Cabo-verdianos (AEC) e mais tarde fundador da Academia Cabo-verdiana de Letras e seu primeiro presidente.
Para além de um vasto acervo de poemas publicados de forma dispersa, Corsino Fortes deixou antologias poéticas, entre as quais se distinguem: «Cabeça Calva de Deus», «Pão & Fonema» e «Árvore & Tambor - Pedras de Sol e Substância».
Percorrendo a obra de Corsino Fortes, creio descortinar duas fases na sua poesia que separo em termos temporais, e em termos de causas inspiradoras.
A primeira, é a fase de lírico, cantor dos seus amores jovens e da sua cidade natal, Mindelo; é também o período em que ocorre a descoberta de uma certa mística do destino que liga o sujeito poético à terra e às divindades que a presidem.
Trata-se, no meu entender, de uma fase em que o poeta teceu os seus mais belos poemas, em que a imagética, o ritmo e o lirismo se entrosaram numa correspondência harmoniosa.  Alguns exemplos: “Mindelo”; “Girassol” “Paixão” “Pecado Original”. Estes poemas encontram-se  coligidos no volume I do «Reino de Caliban» já aqui citado.
Neste contexto inicial como poeta, Corsino Fortes, definu a sua escrita da seguinte forma. “ (...) Houve uma fase anterior, com o pseudónimo ABC- CORANTES. Corantes: Cor- Corsino; An- António; tes - Fortes (...) Durante esse período, ia já escrevendo sobre as minhas vivências, dentro de um certo lirismo idealista (...)uma vertente telúrica que vai desembocar em «Mindelo». (...) Eu escrevi imenso (...)mas havia outra vertente que era mais esotérica, com um espectro existencial sobre a própria vivência em si...escrevi poemas necessários, para serem necessariamente esquecidos.” In: Encontro com Escritores, Michel Laban  II vol.
Muito interessante e bem ilustrativa, a forma como o poeta se “autodefiniu” como iniciante nas lides da poesia.
A segunda fase, é a sua transformação metafórica de poeta lírico em poeta de intervenção.  Neste período, o poeta já se revelava versado numa poesia mais sintonizada com a época das grandes transformações no que toca ao posicionamento dos poetas e dos escritores africanos face aos problemas do Continente e muito particularmente, os do mundo da Língua portuguesa. que almejavam o fim da dominação colonial.
É assim que o vamos encontrar − o poeta − nos poemas insertos nas antologias já aqui referidas, nomeadamente, «Pão & Fonema».
E para melhor intuir a mudança operada no poeta, seguiremos os versos do poema “Vendeta.” Exactamente por ser, no meu entender, o poema que marca a viragem – da primeira para a segunda fase – da abordagem poética de Corsino Fortes. Um marco de certa forma demonstrativo do divórcio do poeta com a sua lírica até aí realizada. Doravante seguirá o verso “rebelde” que se evadiu deliberadamente do poema que ele escrevia. Este poema foi publicado, no nº 9 da revista «Claridade», em 1960.
Afinal, o tal verso “rebelde” que se evadiu “descaradamente” dos outros companheiros, sobrepôs-se e agigantou-se de tal  modo que dominou o sujeito poético e o levou a questionar a obra feita até então. O dito verso, incitou-o a mudar o rumo da sua poética. Poética essa, que necessariamente havia de sair do seu cantar alegre, embora não despreocupado, mas que agora devia emergir em “imagens feridas” da “dor” e do “sangue” das vítimas.
Parece-me ser esta uma das leituras que retirámos da análise de «Vendeta» e que, sendo plausível, ajudar-nos-á também a entender a transformação e a alteração do “modus operandi” subsequente na poesia de Corsino Fortes. Aquele que ele patenteia com à-vontade e abundância nas colectâneas já aqui referidas − «Árvore & Tambor» e as outras duas.
Uma poética futura e futurista que não se deixa captar em superfícies facilmente visualisáveis, mas antes, enreda-se em jogos metafóricos de sons, de fonemas e de aliterações que vão ao âmago da Língua, de tal sorte que esta passa a funcionar nos poemas do autor, como protagonista dos actos poéticos que ele consente e enforma. E assim foi até ao fim, o timbre e o tom dos poemas de Corsino Fortes.
Mas ainda voltando à mutação na “poesis” ou, no tecido poético de Corsino Fortes, deixo ao leitor, para melhor ilustração, os versos de «Vendeta» que marcam a ruptura e fazem o presente versus futuro deste poeta. Ei-lo:
“Um verso escapa / Descaradamente / Do poema que escrevo // Um rumor longínquo / Segreda-me / Que ele espezinha / Os companheiros / Da minha caravana / De repente / Ele projecta-se / No «écran» do meu espanto / Com garras e lábios / Manchados de sangue. // Nos seus olhos há imagens feridas. // E numa voz cortante / Blasfema // Sou a dor / O sangue / A vítima / Dos teus crimes impunes! // Vingo-te à minha maneira. // Renego-te / Renegado!...”
Finalizo, dizendo que Corsino Fortes encontra o seu lugar como poeta e situa-se na poesia cabo-verdiana, entre o telurismo e a cabo-verdianidade da escrita saída dos Claridosos dos anos 30 e a pujança intervencionista dos poetas da década de 60 do século passado.
II
Aproveito a ocasião, para também aqui transcrever o texto que enviei à Academia Cabo-verdiana de Letras, a seu pedido, para a evocação do quinto aniversário da morte do poeta:
“Um poeta fidalgo passeando pela brisa da tarde... assim apetece-me definir Corsino Fortes, aproveitando o título de um romance da Mário Carvalho, «Um Deus passeando pela brisa da tarde»
"Poeta fidalgo", assim o chamo agora. A sua fidalguia no trato, o que incluía até o beija-mão às senhoras; o seu falar pausado, procurando trazer em cada vocábulo um imenso cuidado para uma assertividade contextual mais próxima do pretendido no diálogo com outrem; o seu ser social sempre repleto de generosidade e de lhaneza.
"Poeta fidalgo" o que contrastava alegremente com seu bradar "revolucionário" numa poética em que os revoltosos afinal, eram ...”os fonemas” em metáforas transpostas para uma escrita de sons transformadores, tresloucados, em busca do "pão... De boca a barlavento, indo de rosto a Sotavento”. 
Corsino Fortes, o cantor de Mindelo, um dos seus mais aficionados e apaixonados trovadores, comparável à composição musical de B. Leza e de Jotamont, nesse louvor à cativante cidade.
E assim no-lo diz o poeta:
 "(...) Mindelo // Recanto de sonhadores / de poetas e músicos / de aves sem asas / Voando / Em busca de alvo / na neblina da noite."
E continua o poeta mergulhado no fascínio das noites de Mindelo:
"(...) Mindelo / Ò doce Mindelo morno / De lua nascente e poente / De noite debruçado / na morna dolente/ de poesia encostada / Na esquina da noite. // Mindelo de luzes / de pétalas e prantos / Ò quimera perdida / Ò berço adormecido / embalado / dentro de mim!".
Poeta das ilhas também.
A minha homenagem amiga.



terça-feira, 21 de julho de 2020

O texto que a seguir se publica é de autoria de Raquel Varela, Pesquisadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.
 Trata-se de uma autora projectada em vasta obra sobre História Social, Política e Trabalho.
Porque o assunto abordado é de interesse de todos, implica-nos fortemente e faz-nos reflectir sobre os caminhos da educação e sobre o perfil do professor que os constrói, com a devida vénia à sua autora, aqui se transcreve para o nosso leitor, este excelente texto.

O Professor-robot
Por Raquel Varela
A professora de português que deu a primeira aula da telescola deu uma entrevista ao Expresso este fim de semana onde diz que nunca gostou de ler, cito, e está a fazer um esforço para ler um livro no Verão. Como professora e mãe também senti vergonha alheia. Na realidade há muito que acho que a maioria das crianças quando entra na escola sofre um processo acelerado de perda da curiosidade, vitalidade, interesse e educação que levavam da infância. O burnout docente contagiou as crianças, o desinteresse pega-se, contagia. O mesmo retrocesso se dá com os professores, entram na escola muitos a pensar que vão ser educadores, entram rapidamente em burnout quando percebem que vão ser operadores de uma linha de montagem - crianças - para um mercado de trabalho desqualificado.
É de um colégio privado, esta professora, segundo percebi. Podia ser do público, dificilmente seria de um colégio privado de luxo onde não há telemóveis e os professores são intelectuais, bem pagos, em exclusividade. A professora de português que não gosta de ler não é um caso, mas um problema disseminado na educação - a proletarização dos docentes, transformados em mediadores de entrega de conteúdos pré feitos, desprovidos e expropriados do seu ser-pensar-intelectual. No nosso estudo sobre o trabalho docente era visível a desintelectualização da profissão e a falta de consciência desse processo. Quando nós dissemos aos docentes que eles eram intelectuais expropriados uma larga parte ficava impressionado, "então eu devia ser um intelectual"? pensavam com estranheza. Insistimos que para não haver burnout eles tinham que se assumir como sapateiros e não como vendedores de sapatos. Como produtores de conteúdos e não entregadores de conteúdos. E tinham que lutar por isso, não havia e não há outra forma de driblar a depressão, perda de qualidade e sentido do trabalho que não seja lutar contra estas condições de trabalho, por mais ioga e auto ajuda que façam. Em breve (já aliás em curso em Portugal), se nada fizerem, serão apenas monitores de exames também eles de cruzinhas, que o próprio computador se encarregará de corrigir. No Brasil o dito ensino à distância, e isto também no Universitário, já colocou um docente a corrigir 40 mil provas, leram bem, 40 mil. Nem ele é docente, nem a prova é prova, nem a correcção é correcção - é tudo uma enorme farsa que visa a automação, por um lado, e o défice zero por outro, ou seja o pagamento de dívidas privadas transformadas em públicas.
A questão permanece e convoca-nos a todos, o que nós professores, pais, contribuintes, estamos dispostos a fazer para inverter este declínio sistémico, quando cada vez pagamos mais e temos menos. Podemos sempre pensar, como vítimas, queixando-nos do estado das coisas, e salientando que é um caso isolado, daquela professora naquele colégio. Ou podemos agir como questão pública, que o é, com verdade - é um problema geral, é cada vez mais comum, se não mesmo maioritário, e que põe em causa todo o futuro do país, do mundo, da humanidade humanizada.

sábado, 18 de julho de 2020

A Língua portuguesa mais uma vez revista por um dos seus mais cuidadosos estudioso, Nuno Pacheco. Um proveitoso convite à leitura dos professores da Língua comum.



Ler “o que lá está” é também seguir o que lá não está, deturpando o som das palavras
Nuno Pacheco*
Ainda em época de exames, a língua portuguesa vem de novo à baila. Tanto mais que o exame do 12.º ano gerou contundentes críticas, como se vê pelos artigos de António Carlos Cortez ou de Elisa Costa Pinto, ambos no PÚBLICO. Mas não é de exames que trata esta crónica, e sim do tema levantado por uma pequena frase do leitor Alberto E. Diniz, da Figueira da Foz, que em carta ao director do jornal (publicada no dia 7) dizia serem arrepiantes, em Portugal, “as alterações na pronúncia, devido à destruição na modulação das vogais, que as nossas crianças expressam, argumentando elas que apenas estão a ler o que lá está...” Esta ideia, a de “ler o que lá está”, já motivou uma crónica anterior, velhinha de cinco anos (“Maravilhas da fonética”, 19/4/15), mas a verdade é que o tema não só se mantém actual como a situação se agravou.
Porquê? Pela escrita, precisamente. Há cinco anos citaram-se aqui as Charlas Linguísticas de Raul Machado, filólogo e primeiro presidente da Sociedade de Língua Portuguesa, que iniciou em 1958 na RTP um programa dedicado à língua, compilado mais tarde em livro. Ora logo numa das primeiras emissões (a de 21/1/58) tratou precisamente do tema “Leia o que lá está!” Nesse programa, criticava professores ou pais que, em tom autoritário, diziam a crianças com dificuldade de ler uma frase num livro:
“Menino, leia o que lá está!” Como se dissessem: “O menino é parvo! O menino não sabe ler!” E dava como exemplo esta frase: “Os homens sentem e pensam.” Uma frase simples, que toda a gente lerá sem dificuldade. Toda a gente? Sim, toda a gente que já domina, mesmo que de forma inconsciente, as regras do sistema vocálico do português europeu. Se uma criança lesse mesmo “o que lá está”, com base no que aprendera no alfabeto, leria (dizia então o filólogo): Óss hóménnss sénntémm é pénnsamm. Ou, “em grafia sónica, a seguinte algaraviada: Óç hóménç çéntéme é pénçame”. Em vez disso, qualquer pessoa lerá “Uz ómãix sêntãi i pênsão”. No entanto, escrevemos “Os homens sentem e pensam”.
Raul Machado prosseguia, assim, o seu raciocínio: “O fenómeno linguístico da pronúncia do nosso idioma encerra dificuldades e complicações de tal monta, que só com intenso treino e longa aprendizagem se conseguem vencer e dominar. Por isso, o imperativo ‘Leia o que lá está!’ contém, sem dúvida, uma imposição muito difícil de cumprir…, muito difícil de cumprir, sobretudo nos bancos da escola, da escola primária [agora conhecida por ensino básico].” Mas, concluía, era nessas dificuldades que assentava a “realidade magnífica da língua nacional”.
Porém, voltando à carta do citado leitor, as crianças de hoje argumentarão “que apenas estão a ler o que lá está”. Contraditório? De modo algum, porque não se referem ao “que lá está” em sentido literal (como, de forma irónica, se lhe referia Raul Machado) mas sim ao “que lá está” proveniente da escrita e dos sinais que dela emana para a sua correcta interpretação fonética. E é aqui que surgem os equívocos actuais, derivados em grande parte da aplicação do chamado Acordo Ortográfico de 1990 (AO90).
Ressalve-se que o caminho para a ambiguidade foi já antes aberto pelas reformas ortográficas anteriores (com a capa de “acordo” ou sem ela). Por exemplo, este conjunto de palavras homógrafas, mas não homófonas, tinha a distinção sónica assinalada por acento gráfico na reforma de 1911, sendo depois abolida na de 1945: acôrdo e acordo (de acordar); fôrma e forma (de formar); sêca e seca (de secar); trôco e troco (de trocar); sôbre e sobre (de sobrar); côrte e corte (de cortar); refôrço e reforço (de reforçar); e até entre formas verbais distintas, mas homógrafas: pregar (de bater um prego) e prègar (dar sermões). Estas distinções gráficas caíram com a reforma de 1945, deixando a desambiguação para o contexto. Em contexto, percebia-se que eram diferentes. E fora de contexto? Ora, que adivinhássemos!
Já com o AO90 pretende-se que sejam lidas de forma diferente palavras de estrutura idêntica, mas sem indicar como. E se as distinções gráficas abolidas em 1945 geralmente ocorriam entre substantivos (corte, ô) e flexões verbais (corte, ó), aqui ocorrem amiúde entre palavras do mesmo género. Substantivos como fator (à) e favor (â); senhor (e mudo) e setor (è); doação (â) e coação (à), de coagir, existindo também coação (â), de coar; diretriz (è) e meretriz (e mudo); adjectivos como correta (è) e forreta (ê); ou até flexões verbais, como adotar (ò) e adoçar (u). Além disso, tornaram-se ambiguamente homógrafas palavras antes só homófonas, dando-lhes a mesma forma: ato (de acto) e ato (de atar) ou ótico (de óptico, da vista) e ótico (do ouvido).
O mais estranho foi o que sucedeu com palavras como infecção, direcção ou concepção, que, com a sílaba tónica claramente marcada pelo ditongo nasal ão, só se liam “infèção”, “dirèção” ou “concèção” devido à presença da consoante dita muda; sem ela, e escrevendo-se infeção, direção ou conceção, ler-se-á tendencialmente “inf’ção”, “conc’ção” e “dir’ção”. Por isso, ao lerem “o que lá está”, os alunos vão seguir o que lá não está — e assim deturpar o som das palavras. Esta “benesse”, só podemos agradecê-la aos criadores da aberração conhecida por AO90.
*Jornalista. Público de 16.07.2020 (nuno.pacheco@publico.pt)

Respeito pela História

segunda-feira, 13 de julho de 2020


Aproveitando esta maré de rememorações dos 45 anos da independência destas ilhas, gostaria de trazer ao leitor deste “Blog” alguns aspectos da recuperação das ruínas da Cidade Velha, levadas a cabo na década de 90 do séc. XX.
 Em 1991, iniciada a II República, com a mudança de regime de monopartidarismo para o pluripartidarismo, foi elaborado um programa governativo (1991-1996) em que o Sector da Cultura, de entre outros pontos importantes, destacava também a preservação e a recuperação do património histórico construído em Cabo Verde
É evidente  que o enfoque era substancialmente dirigido à Cidade Velha, a primeira urbe construída pelos portugueses (séc.XV) para a sua instalação,  ao largo da costa ocidental africana,  no Arquipélago de Cabo Verde
Ora bem, em termos gerais e fundamentais a conservação e a preservação dos vestígios históricos, com a consequente reabilitação e a recuperação (na medida do possível) dos principais monumentos existentes foram as linhas de força que nortearam a nossa acção naquele domínio.
Conviria neste contexto, recordar a enorme e a profícua cooperação, na altura, com o IPPAR (Instituto Português do Património Arquitectónico) para os trabalhos levados a cabo na Cidade Velha, que foram sempre pautados pelo respeito histórico na aproximação à traça original de cada Igreja, do Convento e do Forte.
Igualmente eram notórias a colaboração e a cooperação entre os técnicos cabo-verdianos e os seus homólogos portugueses que para cá se deslocavam com muita frequência. Na mesma linha, os técnicos cabo-verdianos eram convidados pelo IPPAR, a deslocarem-se a Portugal, para estudos comparados.
Técnicos, arqueólogos, historiadores, restauradores, todos, com genuíno empenho em bem fazer a recuperação e a restauração históricas da antiga capital.
Com efeito houve realmente  cuidado em preservar as ruínas históricas da antiga cidade e o de reabilitar o que era possível, era tanto que há até pormenores que não resisto a contar. Os dois episódios escolhidos a seguir, são disso ilustrativos:
– O primeiro relaciona-se com a preservação das ruínas da Catedral e a almejada reconstrução de, pelo menos, sendo possível, uma parte dela que seria a sua Nave Central. Era a ambição na altura. Para isso tornava-se necessário descobrir em Portugal, o projecto original do edifício. Durante algum tempo, a parte portuguesa procurou nos arquivos históricos fotográficos, existentes nas suas cidades (Portugal e os Arquipélagos dos Açores e da Madeira) catedrais e igrejas mais parecidas com a nossa Sé da Cidade Velha.
Do espólio fotográfico e/ou projectos arquitectónicos encontrados, recordo-me que foram seleccionados, como os mais aproximados, os de duas igrejas e/ou catedrais, uma  de Beja (no Alentejo) e outra nos Açores.
 – O segundo traz de volta, a procura de azulejos (para completar as peças desaparecidas ou danificadas pelo tempo) que também deviam ser os que mais se aproximassem dos originais das paredes da Igreja de Nossa Senhora do Rosário na Cidade Velha. Os azulejos foram procurados em Portugal, de onde originariamente vieram, numa busca alargada e minuciosa que foi até a fragmentos guardados em armazéns de outros monumentos, datados da mesma época - século XV.
Essas são  as lembranças do plano de pormenor e do labor empenhado que só os verdadeiros técnicos e investigadores possuem.
Daí a minha dor de alma, e até uma certa revolta, quando veio a Cooperação Espanhola (século XXI)  na década de 2000  que aqui chegou para o mesmo efeito. Na minha opinião estragou literalmente algumas partes arquitectónicas da antiga Cidade. Refiro-me por exemplo, ao empedramento (de uma falta de gosto a toda a prova! Qual foi o critério para isso?) do átrio da igreja mais antiga de Cabo Verde, onde se encontravam à vista e para a visita de todos, as lápides tumulares dos Bispos e dos Padres falecidos em Cabo Verde, ao longo de séculos, datadas e com registo histórico epocal do respectivo ministério.  Isso atestava o uso e o costume da época de enterramentos de clérigos feitos nas Igrejas.
Outro erro crasso (obviamente, na minha opinião) aconteceu no interior da Igreja aqui referida, com o descuido nos azulejos, e no Baptistério.
Porquê tamanha ligeireza na recuperação dos vestígios do património construído, da primeira capital de Cabo Verde?  Deduzo que por desconhecimento da História da fundação da urbe quinhentista erigida pelos portugueses nestas ilhas atlânticas, por volta de 1465. 
Ou seja, os técnicos espanhóis do património, destacados para o efeito, pareciam estar possivelmente, na década de 2000 (séc.XXI) a conhecer pela primeira vez (?) a Cidade Velha. Tanto mais que parecia não se terem sequer debruçado seriamente sobre a matéria, quer através de consultas aos arquivos históricos existentes, quer ainda os trabalhos anteriormente feitos e os documentos sobre isso conservados.  
Só assim se compreende tamanhos dislates cometidos!
E actualmente, quando levo amigos meus  estrangeiros em visita a Cabo Verde para lhes mostrar a Cidade Velha, reparo com tristeza, na pobreza e na ligeireza da reparação (que não recuperação) feita pela cooperação espanhola com o aval de Cabo Verde, nos inícios da década de 2000.



SABER ESTAR, SABER SER...

domingo, 5 de julho de 2020




 Há normas e procedimentos no relacionamento institucional que não sendo escritos nem legislados são de execução obrigatória porque o bom-senso recomenda, a boa educação reclama e a ética exige.
É neste contexto que se desenrolam certas ligações entre os dirigentes de topo do Estado – membros do Governo e da Mesa da Assembleia Nacional, Deputados da Nação, entre outros de funções equiparadas – e figuras destacadas da nossa comunidade.
A propósito de figuras da comunidade, um pequeno parêntese para se referir à figura de “Ministro” em França em que ministro uma vez, ministro toda a vida, pelo menos em termos protocolares. Sem concordar com esta posição uma vez que, considero – com todo o respeito pela posição francesa – que em democracia o exercício de funções políticas no Estado é sempre transitório; compreendo, contudo, que ela sirva para “distinguir” ou “apontar” aqueles que serviram o Estado com responsabilidades acrescidas. Fecha-se o parêntesis e volta-se ao assunto.
Tem-se verificado no nosso País, amiúde, de forma reiterada, alguma confusão no estabelecimento dos níveis de intervenção dos colaboradores do Gabinete do Ministro – Director de Gabinete, Secretária do Ministro e outros quadros desse Gabinete – com o do titular do Ministério.
Aqui há alguns meses, circulou um convite que começava, note-se: “O Gabinete do...  tem o prazer de convidar…”  cujo conteúdo dizia respeito a uma homenagem a um dos nomes maiores da poesia cabo-verdiana.
Se a intenção era engrandecer a figura do poeta, não parece correcto que deva ser o Gabinete do membro do Governo a formular o convite de homenagem, mas sim o titular do Ministério em questão, directamente.
Só assim ele estaria a prestar de facto uma homenagem, simbólica, e por extensão, até em nome do Governo de Cabo Verde a essa grande referência da poética nacional.
Mas ao proceder da forma como o fez, foi redutor e rebaixou a abrangência e amplitude da homenagem, quando interpõe no convite uma unidade orgânica, obviamente, de menor hierarquia, no caso, o seu Gabinete, que para o assunto de tamanha elevação não devia ser chamado porque não substitui o Ministro.
Saindo da esfera da designação generalista – dirigentes de topo – e particularizando apenas para exemplificar (por comodidade, no singular) para membros de Governo, não é invulgar – variadíssimos casos – que um membro de Governo, desejando obter a contribuição pro bono – palestra, conferência, apreciação de documento, ou outra importante intervenção ou mesmo informação – recorra à sua Secretária não apenas para fazer o contacto, mas também para fazer o convite e transmitir o “recado” como se o convidado fosse funcionário desse membro do Governo ou lhe devesse alguma subordinação hierárquica ou funcional.
Trata-se de um convite ou de um pedido e a Secretária – sem qualquer desprimor – não pode ser, para esse efeito, nem mensageira, nem recadeira. Quando muito, para estabelecer o contacto. E isto não é só por revelar incorrecção e pouca delicadeza da parte do membro do Governo, mas também porque na maior parte das vezes a Secretária não conhece – e nem tem de conhecer – as motivações, os meandros e a natureza do convite/mensagem para explicar ao convidado.
E quando o Ministro desconsiderando o seu potencial convidado de quem carece, – é ele quem precisa – enviando-lhe recados ou mensagens como se fosse seu subordinado ou lhe devesse obediência, está a ser desrespeitoso, desatencioso, indelicado e, consciente ou inconscientemente, arrogante e egotista.
E o que se vem verificando configura, infelizmente, uma conduta delineada e concertada, que se tornou regra, uma vez que a reincidência e a reiteração já são mais que muitas... Seguramente que não há-de ser por deslumbramento pelo exercício de funções elevadas nem por qualquer outro tipo de complexo (!?).
Parece desconhecer-se que as regras de cortesia, de delicadeza na relação e na comunicação entre pessoas bem educadas, também se estendem às instituições de Estado na sua relação com determinadas personalidades da sociedade civil... “noblesse oblige”
E é assim que se torna absolutamente normal, por uma questão de dignidade e de respeito por si próprio, que a resposta seja um “não” redondo do convidado  envolvido em justificações várias dependendo do grau de indignação da recepção do convite/recado transmitido por via desatenciosa e pouco elevada porque descortês e redutora.
E o que é mais grave é que, por vezes, entre o membro do Governo e o convidado para além de existir uma relação pessoal, o convidado é também um ex-membro do Governo ou da Assembleia Nacional ou uma figura destacada da sociedade civil.
Quando um Dirigente de Topo do Estado – membro do Governo ou da Mesa da Assembleia Nacional ou outras entidades de funções equiparadas – convida, e se o convidado lhe merecer a mais pequena consideração e respeito ou se for um ex-alto Dirigente do Estado ou uma figura destacada da nossa sociedade, deve fazê-lo directamente, sem quaisquer complexos e não através do seu Gabinete – uma unidade orgânica de apoio administrativo e logístico – que apenas lhe deverá servir de suporte, para estabelecer o contacto e outras diligências afins que se vierem a mostrar necessárias para a consecução do propósito.
Os procedimentos poderão não constar especificamente em nenhum manual, e nem é preciso, porque estão associados a entidades e funções onde devem imperar o bom-senso, a educação, a ética e um profundo respeito pelas funções que, transitoriamente, exerce em nome do Estado.
Um Governante contactar directamente, um ilustre membro da sociedade civil, um ex-governante, um ex-deputado, entre outras personalidades de reconhecido mérito, para lhe pedir um trabalho ou endereçar-lhe um convite,  não se rebaixa, não se apouca e não se banaliza. Antes pelo contrário, mostra respeito e consideração pelas funções que desempenha, pelo objecto e interesse do seu assunto e, na mesma linha, pela pessoa a quem convida.