A PONTE ENTRE A CULTURA E A CIVILIZAÇÃO

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

      Os termos Cultura e Civilização em título revestem aqui o sentido epistemológico que lhe confere Oswald Spengler (1880-1936) no seu livro “O Declínio do Ocidente”, e mesmo Nietzsche, com a sua crítica violenta aos valores do mundo ocidental.
      A Cultura é entendida como um complexo de ideias e valores éticos e estéticos criados e cultivados pelas elites intelectuais das comunidades, configurando uma visão particular do homem, da vida e do mundo. Tudo se exprime basicamente na Filosofia, nas Ciências e nas Artes. Desta sabedoria o homem foi fazendo as suas interpretações e aplicações práticas, visando os aspectos utilitários e funcionais do seu modo de viver, no seio de sociedades estruturadas e reguladas por normas. E assim surgiram as civilizações, com os seus padrões de desenvolvimento e os seus interesses vitais, estes nem sempre, ou raramente, coincidindo com os de comunidades ou nações vizinhas em disputa de espaços limítrofes. É claro que os germes da conflitualidade, ontem como hoje, radicam no seio das próprias comunidades, opondo classes ou grupos diferentes, mas é na relação com o outro, o estranho, o desconhecido, que emerge a natureza obscura, contraditória, conflituosa e violenta do ser humano. A escala das confrontações é variável e circunstancial, indo de questões menores passíveis de resolução pela negociação e pela diplomacia, a conflitos bélicos de grandes proporções e devastadoras consequências, envolvendo nações e coligações de nações.
      É neste complexo de realizações, idealizações e ambições de índole material que se traduz a Civilização como a conhecemos. Ela é a expressão do mundo material que emana da Cultura, ou seja, do mundo das ideias. No entanto, há uma relação de causalidade entre uma e outra, ou, melhor dizendo, ambas têm a sua origem num mesmo legado intelectual. Mas com uma diferença significativa na sua natureza intrínseca. Enquanto a Cultura é de estirpe genuinamente espiritual, isto é, intelectual e volitiva, a Civilização é do domínio emotivo, instintivo e imediatista. Enquanto a Cultura se atém a uma atitude sistematicamente reflexiva, crítica, inovadora e renovadora, questionando os fundamentos da essência do ser para melhor perspectivar a sua evolução e o seu futuro, a Civilização é o respaldo de uma atitude de aceitação dogmática, de um automatismo utilitarista, de um ajustamento a princípios que não questiona e procura simplesmente converter em fórmulas de aplicação prática.
      Quando se diz Civilização, está obviamente em causa o mundo ocidental e cristão (legado das culturas greco-latina e judaico-cristã), e com razão, já que ele é que dominou o percurso trans-histórico da humanidade nos dois últimos milénios. Para o bem e para o mal, convenhamos, ostentando duas faces distintas e contraditórias: o progresso material e altos padrões de vida, fruto das ciências e das inovações tecnológicas; o protagonismo dos conflitos bélicos mais dilacerantes da história.
      É aqui que entra Spengler e o seu livro “O Declínio do Ocidente”, editado logo a seguir à I Guerra Mundial, com a tese de que a cultura (subentenda-se, civilização) ocidental havia perdido o seu ciclo vital e caminhava irreversivelmente para o fim, à semelhança do que acontecera com outras anteriores que tiveram o seu apogeu – como a babilónica, a egípcia, a grega e a romana. Aquele filósofo e historiador, perante os sinais que emite este nosso mundo actual, teria porventura razões acrescidas para revalidar inequivocamente a sua tese. Do mesmo modo, Nietzsche certamente que o secundaria com a visão ainda mais radical da sua filosofia moral expressa nas suas dissertações em “Vontade de Poder”, em que estabelece a relação entre Cultura e Civilização, preconizando que o desenvolvimento desta conduzirá a uma decadência cultural.
      De facto, o que vemos acontecer no mundo em nada nos tranquiliza. Dos escombros da II Guerra Mundial pretendeu-se construir uma nova ordem mundial, promissora de paz, mas ela não surtiu o efeito desejado. Presa por arames durante o período da chamada Guerra fria, teve ao menos a virtude de evitar um conflito declarado entre as duas grandes potências do sistema bipolar. Ruído o Bloco Leste, entrou-se no actual sistema multipolar, que é contemporâneo de uma globalização sob a égide de um neoliberalismo que sobrevaloriza o capital e a lógica do negócio, em detrimento da Cultura no sentido que aqui lhe reconhecemos, ou seja, a dignificação do ser humano como um valor supremo ou o objectivo principal da marcha civilizacional. Só para citar um exemplo, quando uma fábrica multinacional fecha as suas portas num país europeu ou americano para as reabrir onde pode maximizar os seus lucros, por recurso a mão-de-obra muito mais barata e em condições infra-humanas, quase de escravidão, não se pode dizer que a civilização esteja no bom caminho e que esta globalização sirva os valores e os princípios que enformam a Cultura.
      Bastará olhar para a qualidade média dos actuais e recentes actores da cena mundial para se perceber que a sociedade humana não soube ou não consegue renovar o cardápio de princípios orientadores da liderança política que o actual progresso material exige. E quando, sobretudo, se vê ao leme da potência mundial mais poderosa uma criatura da estirpe de Donald Trump, instala-se então a intranquilidade. Que confiança pode inspirar um homem cuja palavra de ordem é “America First”, que constrói muros na fronteira com o seu vizinho a sul, que rasga acordos internacionais de cooperação assinados pelo seu antecessor, que trata com desdém xenófobo e racista povos de outras etnias e quadrantes geográficos?
      Para compreender a dinâmica das forças vitais do planeta e reagir aos seus desafios, não basta o progresso tecnológico e o desenvolvimento material. É preciso olhar atentamente para a Cultura, renovando as suas valorações éticas, morais e estéticas, para que o homem não fique refém do mundo artificial das suas criações. Só assim se habilita a interagir harmoniosamente com o mundo natural e a respeitar a vida e a dignidade humanas como um valor absoluto.

Tomar, 28 de Janeiro de 2017
Adriano Miranda Lima








A Igreja e a Literatura em Cabo Verde

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A Diocese de Cabo Verde comemora a 31 de Janeiro deste ano os 435 anos da sua fundação, pelo Papa Clemente VII.
Daí a oportunidade da publicação de um texto histórico de autoria de H. Teixeira de Sousa sobre os primórdios da escola, da instrução em Cabo Verde e sobre o papel fundamental e relevante que a Igreja católica teve nesse extraordinário empreendimento que é o ensino em Cabo Verde.
Trata-se de um “original” (batido à máquina) que por um feliz acaso, encontrámos entre os nossos papéis e aqui transcrevemos. Posteriormente, pela boa informação da nossa amiga Monique Widmer, tivemos a indicação de que este texto vem mencionado como palestra, nas Actas do Colóquio internacional, Paris, 1984. Igualmente foi  publicado no jornal «Terra  Nova» nos números 304 e 305 de Janeiro e Fevereiro de 2002.
Como o leitor verificará, esta pesquisa feita pelo grande escritor, ensaísta e médico de profissão, Teixeira de Sousa, faz uma autêntica panorâmica do percurso do Ensino em Cabo Verde desde a chegada dos primeiros mestres franciscanos à ilha de Santiago ainda no séc. XV afinal, poucos anos (1466) após a descoberta das ilhas pelos navegadores e missionários portugueses até “praticamente” os nossos dias.

A IGREJA E A LITERATURA EM CABO VERDE
Henrique Teixeira de Sousa
Os primeiros mestres ou educadores terão sido os franciscanos chegados à ilha de Santiago em 1466, isto é, seis anos após o achamento do arquipélago de Cabo Verde.
Em 1546 o rei autorizava expressamente que alguns homens pretos e mestiços, devidamente qualificados, pudessem entrar nos cargos públicos para os servir, sinal de que na primeira metade do século XVI já funcionavam eficazmente as então chamadas escolas de ler e escrever, embora em escala reduzida.
O bispo D. Frei Francisco da Cruz (1554-1571) leccionou na própria residência muitos ignorantes (escravos), exemplo que se generalizou por todas as paróquias, especialmente junto dos meninos de coro e de catequese.
A criação de mestres de latim em 1555, a ordenação de sacerdotes entre os nativos, os quais passariam a ser preferidos na provisão dos benefícios eclesiásticos, todas estas iniciativas e estratégias da classe religiosa constituíram, sem dúvida, o ponto de partida da aventura civilizacional do cabo-verdiano. Outras condicionantes históricas viriam juntar-se, através dos séculos, às medidas tomadas pela Igreja no campo da instrução, Igreja cujo contingente militante não chegava para a missão evangelizadora tão estendida pela expansão ultramarina dos portugueses. Daí, a urgência na preparação de pessoal para suprir as deficiências dos quadros religiosos. Deste facto, a que outros fenómenos se somaram, resultaria em Cabo Verde o aparecimento duma consciência nacional, muito anterior à respectiva independência politica.
Em 1772, quando foram criadas em Portugal as primeiras escolas oficiais gratuitas, o Conselho Ultramarino autorizou a abertura de escolas semelhantes nas ilhas de Cabo Verde, a pedido do então Governador Saldanha Lobo. Tais escolas, porém, não chegaram a funcionar, mais por falta de verba do que por negligência do poder civil.
Em 1811 mantinha-se a situação, isto é, as escolas régias autorizadas permaneciam apenas no papel, o que provocou um severo reparo da Corte do Rio de Janeiro.
Simultaneamente, a mesma Corte, ordenava ao Governador e ao Bispo levassem por diante com celeridade a criação de escolas públicas, tornando a escolaridade obrigatória a partir dos sete anos de idade.
Só que, o orçamento de Cabo Verde não suportava tamanha despesa. Assim, no ano económico de 1837/38, não funcionaram mais do que dez escolas régias de ensino primário. Em 1842, nem todas as trinta e três escolas previstas também puderam funcionar por falta de fundos.
Em 1848 surgiu a chamada Escola Principal, instalada na Ilha Brava, onde então se achava sediado o Governo da Província por razões de ordem sanitária. Essa escola visava os ensinos primário e secundário (humanidades) tendo durado apenas dez anos.
Porque, entretanto, em 1846, fundava-se na cidade da Praia o Liceu Nacional que também teve pouca dura por via do aparecimento do Seminário Liceu de S. Nicolau, estabelecimento de ensino que se ficou a dever exclusivamente à iniciativa e persistência da classe eclesiástica, embora apoiado pelo poder civil. Foi o bispo D. José Alves Feijó que exigiu este estabelecimento de ensino ao Ministro do Ultramar. Conta-se que perante a insistência do bispo aquele Ministro teria tranquilizado o ilustre prelado, dizendo-lhe: Vá V. Exa. descansado que tudo há-de lá ir ter. Ao que respondeu D. José Alves Feijó: Não sigo para Cabo Verde enquanto não for atendido em tudo; porque, em passando a Torre de Bugio, mandam-me bugiar.
O Decreto de 3 de Setembro de 1866 criava efectivamente o Seminário Liceu com o duplo fim de ordenar sacerdotes e de preparar mancebos para a vida civil, ministrando-lhes para tal, a necessária educação literária e cientifica.
Com o funcionamento do Seminário Liceu raiou uma nova época no âmbito sócio-racial, escorada ainda noutros factores, estes, de natureza económica. Os quadros religiosos começaram a passar para as mãos dos filhos da terra. Facto semelhante viria a ocorrer na esfera administrativa, cujos cargos também foram passando paulatinamente para as mãos dos cabo-verdianos saídos do Seminário Liceu.
  Pergunta-se: A Igreja já visou essa promoção social ao criar o Seminário Liceu ou visou tão simplesmente a preparação de quadros para a missão que se propunha? Evidentemente que à Igreja interessava prioritariamente a ordenação de sacerdotes. Mas, para que pudesse obter o apoio financeiro do Estado, teria de contemplar o ensino laico, neste caso, o ensino secundário. Com semelhante estratégia, obteve o patrocínio do Ministério do Ultramar, e mais do que patrocínio, verba necessária para o empreendimento.
Fosse como fosse, até à sua extinção em 1928-29, pelo Seminário de S. Nicolau passaram centenas de rapazes que se espalharam pelo funcionalismo público, não só de Cabo Verde como ainda da Guiné e demais colónias, sem contar com aqueles que abraçaram a carreira religiosa e se ordenaram padres. Deste alfobre, surgiram os primeiros poetas e prosadores de que o Boletim Oficial do último quartel do século XIX e mais tarde o Almanach de Lembranças nos dão a conhecer. Na falta dum periódico, os arroubos literários dos ex-seminaristas começaram a exprimir-se em letra de forma através daquelas publicações até o aparecimento de jornais impressos em Cabo Verde, nomeadamente a partir do advento da república em Portugal. Na euforia desta nova ordem politica, poemas, crónicas, etc, ficção, alinhavam-se garbosamente ao lado de artigos doutrinários e outros, quase todos subscritos por ex-seminaristas, numa retórica inconfundível a que não faltava a citação de sentenças latinas. Graças ao Seminário Liceu, principia já nos fins do século XIX a esboçar-se a existência dum escol intelectual entre os nativos, fenómeno que viria a tomar corpo e a alargar-se na base com a criação do Liceu Nacional de S. Vicente em 1917. O Liceu Infante D. Henrique surge na sequência dos magníficos frutos colhidos do Seminário de S. Nicolau, revertendo-se logo numa instituição de matiz profundamente democrático, onde filhos de criadas de servir se ombreiam com filhos-família na ânsia de aprender.
Não se pense, porém, que foi fácil a obtenção desse Liceu. Ele foi exigido pelas forças vivas com o apoio entusiástico de então Governador Fontoura da Costa que encontrou alguma resistência no Terreiro do Paço.
Quando as dificuldades se reduziram apenas à inexistência de edifício para instalar o Liceu, Augusto Vera Cruz, abastado comerciante e armador de S. Vicente, e natural da Ilha do Sal, deixou a sua magnífica vivenda para nela terem inicio as aulas do curso secundário. O gesto generoso deste concidadão, que ainda como senador por Cabo Verde muito lutou por outras melhorias, foi devidamente reconhecido pelo Município do Mindelo, o qual deliberou dar o nome de Augusto Vera Cruz a uma das principais artérias da cidade, nome que foi substituído pelo de Kwame N’Krumah após a independência. Nessa vivenda funcionou o Liceu durante alguns anos.
Foi com os padres que o Cabo-verdiano começou a assimilar os valores da cultura europeia. No ambiente da miséria em que sempre viveu, foi sob a sombra da Igreja que ele encontrou o seu primeiro espaço de libertação, espaço mais tarde ampliado pela instrução laica e pela emigração. Fenómeno idêntico ocorreu nos Estados Unidos da América do Norte, onde o negro transladado do continente de origem descobriu no cristianismo a filosofia da sua revolta silenciosa, ao mesmo tempo esperançosa.
Salvo alguns dos sermões do Padre António Vieira, proferidos no Brasil, não conheço nenhum texto da época, firmado por bispo ou sacerdote, que condenasse o esclavagismo. Estou mesmo em crer que a Igreja não experimentou tormentos de consciência face ao negócio de escravos. Se o não aceitou, também não o combateu. Todavia, por motivo da sua acção evangelizadora, teve de tomar medidas que resultaram benéficas ao nível de instrução das suas ovelhas. Em Cabo Verde, por exemplo, o arranque para a alfabetização e promoção intelectual se ficou a dever à actividade pedagógica do clero desde o inicio do povoamento. Daí que não possamos esquecer o contributo da mesma Igreja na formação duma inteligenzia regional.
Factores de natureza geo-económica facilitaram essa acção pedagógica da Igreja. Ilhas de fracos recursos agrícolas e outros, nelas o colono não prosperou em nenhum sector económico, acabando por se fundir na mestiçagem e na pobreza com os descendentes dos antigos escravos. As secas, a inexistência de minérios, a insularidade, a emigração maciça, ao lado da miscigenação intensa, afastaram desde logo a tendência para a estratificação da sociedade baseada em privilégios de raça, como aconteceu nas restantes possessões ultramarinas. Em Cabo Verde, brancos, mestiços e negros deram-se as mãos para arrostar com adversidades climáticas e o abandono administrativo por parte duma Metrópole distante e insensível.
Daí que foi precisamente em Cabo Verde onde eclodiu o primeiro movimento literário africano de expressão portuguesa com características regionais acentuadas e inconfundíveis, embora influenciado pela mensagem da literatura brasileira dos anos 30. A receptividade às obras dos poetas, romancistas e ensaístas brasileiros daquela época, explica-se simplesmente pelo paralelismo dos respectivos processos culturais, e pela ânsia de afirmar uma identidade nacional, que para o caso de Cabo Verde seria muito anterior à independência politica. Os fundadores da revista Claridade, em 1936, e a literatura que então se seguiu, expressaram essa aspiração nacionalista que a luta pela independência viria mais tarde a imprimir carácter político.
Cabo Verde constituiu-se, pois em nação ainda sob a administração colonial.
Voltando à instrução, um dos factores primordiais de promoção social, direi que ela não esteve somente nas mãos dos agentes da Igreja ou nas do poder civil (mais tarde). Também esteve nas mãos de mestres particulares, estes naturalmente preparados, na sua maioria, pelos párocos e seus auxiliares. Entre os séculos XVIII e XX existiram 110 escolas particulares espalhadas pelo arquipélago, período em que a população não atingia a ordem dos 100.000 habitantes. Esses mestres particulares, cujos honorários ou eram pagos com moeda sonante, ou pagos com géneros alimentares, desempenharam um papel na alfabetização de meninos e adultos, não menos valiosos que o das escolas de padres e as escolas régias. Tiveram ainda outro mérito, esses agentes do ensino particular. Houve-as também do sexo feminino as mestras com quem as raparigas de todos os estados aprendiam costuras e lavores. Semelhante tipo de ensino foi muitíssimo útil numa terra onde o orçamento geral do Estado não conseguia satisfazer as necessidades públicas correntes.
Essa ânsia de aprender que foi inicialmente insuflada pelos homens de batina (é um dado histórico que não se pode ignorar) viria mais tarde a conhecer um incentivo mais pragmático: A emigração para os Estados Unidos da América do Norte que arrancou na segunda metade do século XIX , viria a experimentar no primeiro quartel do século XX, a sua primeira dificuldade. O Governo Americano proibiu a entrada dos emigrantes analfabetos. Logo à chegada lhes faziam um teste de leitura na linguagem de origem. Quem não soubesse ler correctamente era recambiado para o país natal. Assim, semelhante afã de aprender se alargou mais, sobretudo entre os adultos. Mais uma vez o factor miséria, a emigração se achava e se acha ligada, favoreceu a escalada social em Cabo Verde. O que nas restantes colónias foi até recentemente um privilégio do colono branco, em Cabo Verde, esse privilégio, ou seja o ensino, se revelou desde cedo uma preocupação da classe eclesiástica para com o nativo colonizado. Apraz-me aqui citar o que escreveu o padre António Vieira aquando da sua passagem pela cidade da Ribeira Grande, na ilha de Santigo, em 1652: " Vim encontrar clérigos e tão negros como azeviche; mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer inveja aos que lá temos nas nossas catedrais ."

Resumindo e Concluindo:

a) A Igreja necessitou desde logo de utilizar o material humano africano para criar quadros destinados à ocupação religiosa. Assim, começou, desde cedo (1466) a ministrar instrução literária e religiosa a pretos e mestiços, devidamente seleccionados, e a ordenar sacerdotes entre os mais aptos (docilidade e inteligência).
b) Na sequência dessa preparação literária e religiosa, viria a mesma Igreja a conseguir em 1866 criar o Seminário Liceu de S. Nicolau, com o duplo fim de ordenar sacerdotes (agora em maior escala) e de habilitar os mancebos para a vida civil.
c) A breve trecho, os cargos religiosos e públicos começaram a povoar-se de elementos nativos, principiando também a surgir um escol de letrados com outras ambições que não apenas as dum púlpito ou da banca duma repartição pública.
d) A partir da segunda metade do século XIX, ouvem-se os primeiros vagidos literários dos ex-seminaristas, cuja poesia e prosa se publicam no Boletim Oficial, depois no Almanach de Lembranças.
e) Ainda na sequência dessa sede de aprender e desses pruridos literários, exige-se e consegue-se o primeiro Liceu de ensino laico, em 1917.
 f) Daí em diante, os cursos superiores passam a ficar cada vez mais ao alcance da pequena burguesia, facto que viria a possibilitar a consciencialização politica dos futuros “fundadores” da nacionalidade, estes filhos dos homens que através da literatura revelaram a existência dessa mesma nacionalidade.


BIBLIOGRAFIA


 BRAZIO, ANTÓNIO (padre) Monumenta Missionária Africana Africa Ocidental segunda série, Vol. III, Lisboa,1964.
CARREIRA, ANTÓNIO Migrações nas Ilhas de Cabo Verde - Lisboa, 1977.
MONTEIRO, FELIX A Ilha de S. Vicente de Cabo Verde, Relatório de Joaquim Vieira Botelho da Costa – Rev. Raízes, Praia,1980.
SILVA, FRANCISCO FERREIRA (deão) Apontamento para a História da Administração da Diocese e Organização do Seminário Lyceu Lisboa,1899.
SOUSA, HENRIQUE TEIXEIRA DE Cabo Verde e a sua Gente Boletim de Informação
e propaganda de Cabo Verde- Praia,1956.


/H. TEIXEIRA DE SOUSA/
(escritor cabo-verdiano)





ACERCA DOS ARQUIPÉLAGOS CRIOULOS

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Francisco José Tenreiro (São Tomé, 1921 – Lisboa, 1963) Geógrafo, poeta e ensaísta. Foi aluno brilhante do distinto geógrafo Orlando Ribeiro quem, de acordo com os seus biógrafos, o terá estimulado a fazer a tese de doutoramento sobre São Tomé. Tenreiro foi também docente no antigo Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina.
Um dos estudiosos da mestiçagem (portuguesa e africana), para nós, a par de Gabriel Mariano, Francisco José Tenreiro, constitui uma voz e uma referência na nossa cultura, para o entendimento de um dos fenómenos mais interessante e harmonioso da humanidade. Ele próprio filho de um português e de uma angolana, trabalhadora em São Tomé.
Na sua escrita poética e literária, Tenreiro aderiu, e bem cedo, ao neo-realismo. «Ilha de Nome Santo» é a sua principal colectânea de poemas e foi publicada em Coimbra em 1942. Nela o poeta/ensaísta configura através de versos o respeito por todas as raças. No poema “Canção do Mestiço”, diz-nos o poeta:  “ Mestiço! / nasci do negro e do branco / e quem olhar para mim /  é  como  se  olhasse /  para  um  tabuleiro  de  xadrez  (...) E  tenho  no  peito  uma  alma  grande, /   uma alma feita de  adição.”  E mais adiante exalta a sua mestiçagem, dizendo: “Mestiço! /  Quando  amo  a  branca  sou branco / quando  amo a  negra  sou  negro /  Pois é...”
O artigo que se segue é de sua autoria, e nele o leitor verificará como o olhar do geógrafo, do historiador e do antropólogo, se cruzam e se interpelam para uma explanação rigorosa das origens e dos fundamentos populacionais dos dois arquipélagos – o de Cabo Verde e o de São Tomé e Príncipe.

Acerca dos arquipélagos crioulos
Por Francisco Tenreiro
De comum o tom moreno, mestiçado, das gentes. Mas, mais que a tonalidade é um passado cultural que os assemelha sendo abundantes os traços que, num e outro arquipélago, se repetem não obstante natureza diversa; o fundo do quadro é em Cabo Verde o ar escalvado das linhas gerais do relevo que escondem dos olhos a verdura de algum vale por onde corre água; é, nas ilhas do Golfo da Guiné, com a insignificante excepção de Ano Bom, a loucura do verde que esmaga e ilude as obras dos homens. Factos que advêm da posição dos arquipélagos: um, limite meridional das Atlântidas, quase tão europeu como africano, e outro, enganchado no amplexo do Golfo da Guiné, nitidamente africano.
No conjunto, as ilhas foram descobertas na segunda metade do século XV embora as mais meridionais cerca de dez anos mais tarde. Achadas e povoadas pelo mesmo povo, para lá se transplantaram também negros da África Ocidental aqueles que em terra firme estavam mais próximos: guinéus num caso, gente da margem do golfo no outro, como por exemplo gabões.
Só uma ilha, certamente, por mais próxima do continente, seria já povoada – a Formosa que mais tarde se chamaria de Fernando Pó. Por isso ou por encontrar-se profundamente engolfada, Fernando Pó tardiamente mereceu a atenção dos portugueses que, aliás, logo a cederam a Espanha em troca de facilidades territoriais na América do Sul. Não obstante, muitos dos traços da estrutura social «fernandina» serem hoje semelhantes à de São Tomé, na minúcia dos padrões de cultura mostram-se muito diferentes.
O bubi como o fernandino de Santa Isabel pouco têm de comum com os «filhos da terra» de São Tomé, na sua generalidade descendentes dos povoadores brancos e pretos dos séculos XV e XVI. Sem dúvida que se regista em alguns arquipélagos atlânticos sucessão de elementos sociais que os aproxima, seja em Cabo Verde ou nas Antilhas ou ainda nas ilhas do Golfo da Guiné, que reduzem-se a dois: existência de populações crioulas nem sempre estabilizadas e uma organização de espaço em torno de culturas lucrativas de maior sucesso num ou noutro lugar consoante as vicissitudes da história e até os retoques que uma ambiência diferente pôde produzir. Por todas as ilhas a cana do açúcar, o algodão, o café ou cacau, foram as alavancas propulsoras da fixação dos homens à terra e que atraindo africanos deram origem a populações mestiças. Sendo assim compreende-se que se possa falar em arquipélagos crioulos e se compare, como fez Lyall, as ilhas de Cabo Verde com as Antilhas. Por outro lado se encontrem, apesar da não existência de populações crioulas, ecos de um mesmo sistema de organização de espaço em arquipélagos extra-tropicais como os da Madeira e Açores.
Repare-se, porém, que se está em presença da generalização «fisionómica» que despreza os processos aculturativos a que as populações arribaram nas diferentes ilhas. Enquanto que em Cuba, como o demonstrou Fernando Ortiz, se chegou a um «mosaico cultural» e a algumas formas de «compromisso» (sincretismo religiosos, por exemplo) em Cabo Verde e em São Tomé as populações tenderam para a estabilização resultante de assimilação dos diferentes elementos culturais em jogo.
Há hoje elementos que demonstram como a expansão portuguesa consistiu essencialmente na transplantação de um estilo de vida de cerne mediterrâneo para os trópicos. Padrões que se introduzem integralmente tais como os instrumentos de farinar cereais que se especializaram em concorrência com o pilão africano, e outros que sofrem os retoques que a natureza sugere: um tipo de casa de pedra de loja e andar, com escada exterior, que na ilha de São Tomé passou a ser de madeira e de cobertura vegetal, se bem que a traça seja sensivelmente a mesma; ou ainda o catolicismo que em pouco ou nada se modificou no que se refere a sincretismos enquanto a língua ou cristaliza em torno de um vocabulário ou de expressões arcaicas de dizer, como em Cabo Verde, ou ganha certo tipo de plasticidade onde não são estranhas construções africanas e é o caso de São Tomé. Seja como for o arquipélago de Cabo Verde e as ilhas de São Tomé e Príncipe são «familiares» graças a um passado de colonização que, por comum, levou à constituição de uma sociedade crioula peculiar. Sem dúvida que na génese da fixação de europeus e africanos nestas ilhas desertas, teve um esquema de ocupação de campos à base de culturas lucrativas.
Mas, que representam hoje estas culturas para a compreensão do mundo sociológico das ilhas? Em Cabo Verde a estrutura latifundiária cedo morreu e foi substituída pelo desenvolvimento de culturas de subsistência à base do milho e do feijão.
Os próprios morgadios ainda tão vivos no século passado esmaeceram perante o aparecimento de uma classe nova – a dos mulatos – que por melhor equilibrada veio a sobrepor-se às classes criadas pela diferenciação latifundiária. Hoje, a cultura do café na ilha do Fogo na passa de arremedo da estrutura pioneira que, se no século passado, foi escravocrata, não se mostrou suficientemente forte de forma a subsistir até hoje. Em S. Tomé, de início, passa-se o mesmo; depois de os engenhos de açúcar em torno dos quais se organizaram a economia e os contactos culturais entre negros e brancos o que se viu proliferar, desde o século XVII até meados do século XIX, foram as pequenas propriedades nativas de subsistência. Algo veio perturbar este destino comum e original dos dois arquipélagos. De facto, a partir de 1820 introduzem-se em S. Tomé novas plantas: o cafezeiro e o cacaueiro. As condições climáticas são propícias e novo surto de colono chega àquela ilha que retalha na terra úbere o mosaico de grandes explorações agrícolas de tipo capitalista quantas vezes usurpadas às famílias mais ou menos mestiças descendentes dos primeiros colonizadores brancos e negros. Daí, hoje a estrutura social ser francamente «pluralista» isto é, verificar-se a existência de grupos humanos com vida cultural própria; ao contrário, de uma sociedade integrada como é a de Cabo Verde, S. Tomé mais se assemelha a um mosaico onde europeus, negros serviçais das roças e «filhos da terra» vivem em conjunto estilos de vida diferenciados. São os «filhos da terra», aliás, o grupo quantitativamente superior, que teimam em demonstrar ter valido a pena o esforço português de quinhentos e seiscentos.
Black and white make Brown afirmou-o há muitos anos Lyall querendo ver em Cabo Verde fisionomia comum à das Antilhas. Tem razão Baltasar Lopes quando nega a Gilberto Freyre, baseado em Lyall, a possibilidade desta comparação; mas já não teria se, lado a lado, colocasse S. Tomé e aquelas ilhas do Ocidente Atlântico…
A ilha de Ano Bom povoou-se à sombra de S. Tomé.
Quem visita o minúsculo e único povoado que existe verifica que assim é: no seu comportamento; no dialecto que falam, na actividade a que se dedicam – a pesca – as gentes lembram os pescadores nativos do Norte da ilha próxima. Pescadores que na aventura do mar ali se estabeleceram não obstante a frustre ocupação portuguesa. Por toda a parte, no meio dos ribeiros e dos picos, a influência portuguesa é evidente. Mas a ilha, dada a sua posição no hemisfério sul e as condições de relevo, recebe menos chuva do que qualquer das outras e mostrou-se sempre menos capaz para ocupação agrícola. Foi o mar que trouxe os seus povoadores e só o mar os poderá continuar a manter.
*   *   *
De comum, em todas as ilhas, o tom moreno e mestiçado das gentes em função de convívio, que em muitas remonta séculos, entre brancos e pretos. De diferente, as estruturas económicas modernas e sociais que as vicissitudes da história e a saga dos homens desenvolveram; aspectos que se entrelaçam com a capacidade ou aptidão da natureza de cada ilha. Por vezes torna-se difícil saber até que ponto a natureza é responsável pela maior ou menor humanização das paisagens; mas, sempre e de qualquer forma, representam estas ilhas na sua maioria desertas uma vitória dos homens sobre a natureza tropical. Traços comuns e traços diferentes que vêm da natureza que lhes é própria e das civilizações que a elas chegaram. Sem dúvida que valeria a pena estudá-los e agrupá-los segundo o predomínio de uns sobre os outros. Ressaltaria então, apesar de certas diferenças de pormenor, certa unidade de base entre o arquipélago de Cabo Verde e as ilhas de S. Tomé e Príncipe, resultante da fisionomia de um povo que para umas e outras levou igual sistema de colonização. Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe foram ainda, em pleno oceano, as poldras da experiência sociológica que levaram à radicação dos portugueses na outra «Ilha Grande» – Brasil.

In “Cabo Verde - Boletim de Propaganda e Informação -  Ano XII –Nº 137 de Fev.1961”








A Observação de Agualusa

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Recentemente, o conhecido escritor angolano José Eduardo Agualusa, reconheceu  ̶  numa declaração transcrita no Jornal «Expresso das Ilhas», num dos números online do mês de Novembro de 2017  ̶  que afinal, Cabo Verde não continuou aquilo que já havia dado (antes da Independência) e que naturalmente se esperaria, isto é, bons escritores, bons poetas em suma, uma boa qualidade de literatura, tal como a teve no antanho destas ilhas produzida por gente culta, da  área das Letras e/ou das Ciências.
Para que o leitor fique com ideia clara sobre as palavras proferidas pelo renomado autor da «Estação das Chuvas», (entre outros muitos romances) tomei a liberdade de aqui as transcrever:
“Penso que a literatura cabo-verdiana prometia mais do que aquilo que acabou dando”, diz Agualusa que acrescenta: “Quando a gente olha para o passado da literatura cabo-verdiana, para os escritores que existiam no séc. XX, era de se presumir que tivessem surgido mais escritores após a independência. Ainda por cima, num país com grande vitalidade cultural, um país com uma democracia avançadíssima, que é lição não só para a África mas para o mundo, com uma cultura popular tão rica, que se exprime muito através da música. Eu esperava mais da literatura cabo-verdiana”.
E continuou o “Expresso das Ilhas”:
“Para o escritor angolano, que recentemente participou no Morabeza Festival, a justificação para que a literatura nacional não se ter desenvolvido tanto quanto a música está no facto de não se ter conseguido “levar o livro a todos os cabo-verdianos. Cabo Verde tem uma cultura musical forte. É fácil entrar em casa de alguém e ver que sempre tem um violão, sempre tem alguém que toca. Mas, normalmente não têm livros. Enquanto não houver livros em todas as casas de Cabo Verde, não vamos conseguir desenvolver a literatura”. E conclui:
“Eu acho que o grande desafio de Cabo Verde é levar o livro a todas as famílias”.
Afinal, ele “esperava mais da literatura cabo-verdiana... após a independência”.
Que fique claro: “ab initio,” não discordo da asserção feita por Agualusa.
Pois bem, é sobre este aspecto que me proponho debruçar, embora de forma muito breve.
Mas antes de continuar o que aqui me traz, gostaria de situar para o leitor que eventualmente ainda não conheça este já apreciado escritor angolano. Para tal, repesquei um pequeno texto que sobre José Eduardo Agualusa, escrevi em tempos, aqui neste «Blog»:
 (...) Ora bem, o escritor Agualusa, pertence à segunda geração, ou à nova geração de escritores angolanos, do post-independência, do post “utopia” e entre os já da fase de “desencanto”. 
José Eduardo Agualusa, nasceu em Huambo, Angola em 1960. Escritor e Jornalista. Autor consagrado da lusofonia, escreveu entre outros, os seguintes livros: «Nação Crioula», «Um Estranho em Goa, «O Ano em que Zumbi Tomou o Rio»
(...) Falando agora do romance «Estação das Chuvas» publicado em 1996 e entrando um pouco no universo tecido na obra, ouso dizer: (...) A narrativa da «Estação das Chuvas» está historicamente datada, ou, melhor dito, apresenta vários acontecimentos datados, que configuraram quase toda a cadeia de episódios marcantes no processo da independência de Angola, desde a preparação ideológica, passando pela luta e indo até aos primeiros tempos do governo do MPLA e do incontornável e tenebroso episódio, “nitista” que tantas vidas ceifou. A obra foca com maior ênfase, o longo período da dramática e destruidora guerra civil iniciado em 1975 e que no universo romanesco culmina com os trágicos acontecimentos de 1992, em que “desaparece” a protagonista do romance, Lídia do Carmo Ferreira. “Lídia do Carmo Ferreira, poetisa e historiadora angolana, misteriosamente desaparecida em Luanda em 1992, após o recomeço da guerra civil.” 
O romance de José Eduardo Agualusa “transporta-nos desde o início do século, até aos nossos dias através de um cenário violento e inquietante. Um jornalista (o narrador) tenta descobrir a história proibida do movimento nacionalista angolano; pouco a pouco (…) compreende que o destino de Lídia já não se distingue do seu.” (transcrito da contra-capa do livro).
O autor fornece ao leitor uma admirável descrição histórica de Angola em diversos períodos da sua história mais recente, trazendo ligado também, o seu passado colonial.
Na minha opiniâo um dos melhores livros de Agualusa.
Voltando ao assunto em foco, diria que Agualusa, chegou a montante do problema, quando afirma a sua decepção com a qualidade da produção literária, nestas e destas ilhas do post-independência. Mas teremos  ̶  para  o  enquadrar devidamente  ̶  de ir  aos fenómenos de iliteracia, de incultura e da má qualidade do ensino que se abateram sobre o país, nos últimos anos.  Se não levarmos a escola em devida conta, procurando na formação a base essencial para uma literacia robusta dos cidadãos e uma abertura na procura da cultura, do desenvolvimento e da cidadania, continuaremos a fortalecer a mediocridade que infelizmente nos é dada presenciar na hora actual, nestas ilhas.
Com efeito, um país pequeno, insular e sem recursos, como o nosso, que sobrevive graças à boa ajuda internacional ao desenvolvimento e que até a aplica com alguma correcção, devia dar prioridade aos seus recursos humanos, centrando-se em estratégias que gizem boa escola e boa formação. São bases e pilares, fundamentais e indispensáveis, sobretudo numa sociedade como a nossa em que a maior parte dos jovens estudantes é proveniente de família desestruturada, monoparental e pobre. Logo, a escola é um complemento/suplemento deveras importante, repito: deveras importante, para suprir com alguma eficácia, lacunas e etapas não preenchidas em tempo adequado  ̶  em casa e em família.
Uma outra afirmação, na minha opinião, bem interessante feita pelo escritor angolano, foi a de que “o grande desafio que se põe a Cabo Verde é conseguir fazer chegar o livro a todas as famílias”.
Pese a carga simbólica da frase, o seu autor está pleno de razão. Na verdade, o livro, e a sua utilização adequada e tempestiva para o conhecimento e o desenvolvimento pessoal e colectivo, muita falta tem feito à escola, aos professores, aos alunos e aos cidadãos em geral para a criação do bom hábito e do bom gosto pela leitura e pelo saber!
E que dizer sobre a falta que tem feito ao aluno cabo-verdiano, para o seu desenvolvimento intelectual e científico, a prática e o uso da Língua portuguesa tal como era feita nas escolas nacionais?!
Reparem no modo e no conteúdo como alunos e formandos universitários, e mesmo alguns professores se expressam hoje, quer por via oral, quer por via escrita. De forma, tolhida, incipiente e redutora como que querendo contornar a insuficiência cognitiva e a impreparação linguística.
Os professores ainda não se deram conta deste facto? Mas vão a tempo de arrepiar caminho e erradicar esta grave lacuna que tanto mal vem provocando no aluno cabo-verdiano...
Para além de concordar com o que disse Agualusa deduzo que, possivelmente, ele teve oportunidade de aqui e fora daqui, interagir com alguns dos nossos ditos letrados ou quase isso, e pôde assim aquilatar da leveza e da fraqueza de raciocínio criativo e dedutivo de muitos deles. Infelizmente é essa, actualmente, (salvem-se as excepções) a nossa realidade dita cultural.
 E quando, no início deste ano lectivo, ouvi (na comunicação social) um candidato a professor, que saía de um teste realizado pelo Ministério da Educação, responder à questão posta pelo Jornalista, “como lhe correra o teste?” e para espanto meu, o questionado respondeu: ”Corrê fixe!” (O candidato queria dizer que o teste lhe havia corrido bem). Fiz, a mim própria, a seguinte interrogação: Mas que é isto? Que linguajar é este? Sim, esta não é linguagem de alguém que se candidata a ensinar! Que nível! Não deve transmitir muito saber!... Pobres alunos que, terão na sala de aula um indivíduo com esse perfil...  
E por favor! A bem de toda a nação cabo-verdiana,  ̶ residente e emigrada  ̶  não enviem para qualquer tipo de cooperação   ̶  para formação, sim  ̶  professores com um tal perfil! Seria uma grande vergonha para aqueles que tanto pugnaram e vêm pugnando em defesa de um ensino nacional decente.
Retomando o caso literário nacional, diria que, com efeito, existe uma certa pressa em publicar, nos dias que correm (mesmo entre alguns mais velhos da geração post-independência) aquilo que devia ser considerado a “primeira versão” do poema, do conto, do ensaio ou do romance. Refazê-lo mil vezes, se preciso for, até se atingir alguma qualidade digna de publicação, não é connosco. Daí, uma certa ”fraqueza” conceptual e criativa dos escritos actuais, que transmitem ao leitor uma sensação de incompletude e de insatisfação, por aquilo que esperavam... 
Estamos todos bem necessitados  ̶  agora falo para os mais novos   ̶  de muitas e de boas leituras, de dialogar com lógica, de permutar ideias, de estudar e de adquirir conhecimento e lograr assim algum saber, antes de nos abalançarmos à nobre tarefa da escrita, criativa e/ou ensaística.
Não vale a pena chamar para aqui qualquer tipo de “chauvinismo” ou de nacionalismo patético. Afinal, e infelizmente  ̶  embora todos nós, sem excepção, gostássemos que assim não fosse   ̶  José Eduardo Agualusa não esteve longe da verdade a nosso respeito.
Quantidade não é necessariamente qualidade! 






















MUITO HÁ A FAZER PARA ALARGAR A ACTIVIDADE LITERÁRIA EM CABO VERDE− na opinião do ensaísta António Aurélio Gonçalves*

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Caro Leitor: aqui se transcreve um texto datado de 1962 e publicado no antigo Jornal «Diário de Lisboa». Trata-se de uma entrevista concedida pelo escritor e ensaísta cabo-verdiano, António Aurélio Gonçalves (1901-1984), dando conta  da então situação literária, criativa e cultural do Arquipélago, num primoroso e rigoroso panorama, como só o saberia fazer alguém portador de conhecimento e de  uma  vasta cultura  que o antigo professor de Filosofia nos habituou ao longo da sua vida. Por tudo isto, convido vivamente o leitor a ler a entrevista.
Deixo-o, caro leitor, com este magnífico texto sobre a Literatura  cabo-verdiana de há 55 anos, fazendo votos de um novo ano pleno de boas realizações.

No moderno movimento literário cabo-verdiano, que há uns trinta anos se revelou com frescura e espontaneidade singulares, só tardiamente veio alinhar o ensaísta e novelista António Aurélio Gonçalves. Já as personalidades de Jorge Barbosa, de Baltasar Lopes, de Manuel Lopes e alguns mais, eram largamente divulgadas nos círculos literários de Cabo Verde e da Metrópole, como escritores de alto nível prontamente conquistado – e ainda Aurélio Gonçalves prolongava em Lisboa, como estudante na Faculdade de Letras, uma aprendizagem voluntariamente prolongada de intelectual e de escritor. Espírito finíssimo, cultivando com delongas o sibaritismo superior da mais larga cultura de raízes clássicas, não houve neste cabo-verdiano intelectualmente supercivilizado nenhuma pressa de escrever. A criação literária não se lhe impôs com qualquer urgência. Antes de regressar ao arquipélago crioulo, onde tem exercido a função de professor no liceu de Mindelo, só deixou publicado na Metrópole um ensaio crítico magistral, que inseriu na revista «Seara Nova» então inspirada no admirável apostolado cultural e cívico de António Sérgio.
Nas revistas «Cabo Verde» e «Claridade» publicou António Aurélio Gonçalves, posteriormente, obras de ficção e ensaio literário. Em 1956 e 1957, foram editadas, pela Divisão de Propaganda e Informação de Cabo Verde, as suas noveletas «Pródiga» e «O Enterro de Nhâ Candinha Sena» obras de ambiente localista crioulo, em que a observação do real se combina com uma atmosfera discretamente poética, uma subtileza de psicologia de almas simples e uma elegância de forma que revelam o escritor de profunda formação humanística. As duas narrativas foram significativamente publicadas em abertura da «Antologia da Ficção Cabo-verdiana Contemporânea», que Baltasar Lopes seleccionou e para a qual escreveram uma introdução o escritor metropolitano Manuel Ferreira, e um comentário de lucidíssima interpretação o próprio Aurélio Gonçalves.
O escritor está hoje em plena disponibilidade para a germinação de uma obra literária que pode vir a ser acontecimento de relevo na cultura de raiz portuguesa – e para o acabamento e divulgação do que tem escrito nestes seus longos vinte anos de distanciamento insular. A oportunidade inesperada da vinda a Lisboa de António Aurélio Gonçalves deu-nos o ensejo de uma entrevista. Com ela fazemos a apresentação aos nossos leitores de um ensaísta e novelista ultramarino de nível singular – e de quem obtivemos a promessa de colaboração assídua neste suplemento do «Diário de Lisboa». Através de Aurélio Gonçalves vai o público literário metropolitano tomar contacto revelador com o escol intelectual e artístico de Cabo Verde, apesar de tudo, tão distanciado e ignorado – mas tão digno de admiração nos seus melhores valores.
Começamos por perguntar a António Aurélio Gonçalves a sua opinião sobre o actual florescimento da actividade literária do arquipélago, cuja evolução tem acompanhado intimamente nos últimos anos:
Um florescimento literário cabo-verdiano existe, na verdade, continuando o esforço criador iniciado mais destacadamente há três décadas. E o facto mais animador que nos permite confirmá-lo é o aparecimento de valores novos muito positivos. Quer vivam em Cabo Verde, no relativo isolamento insular, quer fora do arquipélago, esses escritores novos evidenciam um aperfeiçoamento, sobretudo na técnica da criação literária e na largueza dos seus interesses, que é a mais auspiciosa esperança. Seria difícil dizer, é certo, se existe neles um «aprofundamento». Mas foge-se cada vez mais à monotonia dos temas repetidos: a estiagem, a fome cíclica, a pobreza endémica, a estreiteza de horizontes do arquipélago. O pequeno mundo cabo-verdiano também é isso – mas não é só isso. A gente de Cabo Verde possui uma alma, alimenta reacções que não se contém apenas nos limites dessas realidades locais. E é preciso que a literatura desvende, explore as realidades mais profundas.
– E o que tem concorrido para esse alargar de horizontes? A emigração? O contacto mais intenso com o exterior através do livro e dos modernos meios de convivência humana?
– A emigração, não creio. O emigrante, por via de regra, é o homem do povo mais humilde e quase sempre inculto. Não vem até à literatura. E mesmo no que respeita ao livro, ao jornal ou à revista de cultura, o escol cabo-verdiano não tem o contacto intenso, assíduo e estimulador que seria de desejar. São raros os meus conterrâneos que convivem intelectualmente de maneira regular e constante com a literatura metropolitana e com as literaturas estrangeiras. A actividade literária actual é a que o nosso estreito meio permite. E muito haveria a fazer, certamente, para a alargar.
– Mas porque se publicam tão poucos livros de escritores de Cabo Verde, existindo no arquipélago um escol incontestavelmente rico?
– Sim. É com razão que se estranha a morosidade do aparecimento de obras várias de escritores cabo-verdianos. A verdade, porém, é que não somos tantos como se poderá julgar por certas aparências. E faltaram-nos, durante muito tempo, os incentivos, por vezes os meios materiais. Demais, vários escritores de Cabo Verde estão ainda a «aprender» um método e um ritmo de trabalho. Não existe, é claro, a profissionalização do escritor insular. Todos temos de ganhar a vida em outras coisas. No entanto, há homens de letras em actividade criadora quase constante – como é o caso de Jorge Barbosa na sua esplêndida produção poética. O seu processo de trabalho é, talvez, lento, mas seguro, e é admirável na qualidade como na continuidade.
– E os valores novos?
– Devemos confiar neles. São autênticos valores. Gabriel Mariano, que parece ter-se consagrado mais decididamente ao ensaio, nos últimos tempos; Ovídio Martins, que publicou há pouco, na Colecção Imbondeiro, de Angola, dois contos bem escritos; Terêncio Anahory, que surgiu com um belo livro de poemas, «Caminho Longe»; Corsino Fortes, que não publicou ainda nenhum livro, mas se tem revelado em colaborações valiosas; e, mais recentemente, um grupo de rapazes que criaram a página Seló, no «Notícias» de Cabo Verde – são o penhor de uma vigorosa continuidade nas letras insulares. E, como esses que mencionei, muitos mais com que teria de alongar demasiado este depoimento.
– Mas porque não ressurgiu ainda, a revista «Claridade» como órgão perene dos valores literários do arquipélago?
– A pergunta tem todas as justificações, mas há-de permitir-me que faça um pouco de história. «Claridade» teve um primeiro ciclo, como sabe, nos anos 30, com três números em que se destacaram as colaborações de Baltasar Lopes, Jorge Barbosa, Manuel Lopes, João Lopes dos Santos e alguns mais. É o período inovador, sob forte influência brasileira e, mais designadamente, do neo-realismo então lançado com vigor por Lins do Rego e Jorge Amado. Foi nessa fase que se intentou a criação de um estilo literário mais próximo do crioulo nativo e se pretendeu traduzir, sob formas mais cruas, as dramáticas realidades cabo-verdianas. Houve, a seguir, uma interrupção de alguns anos motivada pela dispersão dos colaboradores. E, por volta de 1942, a revista apareceu com uma participação mais larga e um espírito diferente: a mitigação daquele desígnio de instaurar um novo estilo, uma nova linguagem literária e o retorno a uma forma mais tradicionalmente portuguesa comum. Baltasar Lopes passou a ser o quase exclusivo animador da revista, novos elementos surgiram, imprimindo sentido mais largo e tendência mais universalista à literatura cabo-verdiana. O folclorista Félix Monteiro, os poetas Ovídio Martins, Aguinaldo Fonseca e Corsino Fortes, o ensaísta e poeta Arnaldo França, entre outros, reavivaram a mensagem de «Claridade». Também Jorge Barbosa acompanhou esse movimento renovador – enquanto alguns, incluindo Baltasar Lopes, com o seu irreprimível inconformismo, prosseguiam fielmente a orientação nativista. Na actualidade, e depois de uma interrupção de dois anos, «Claridade» tem grandes possibilidades de reaparecer, desde que haja quem impulsione e sustente a sua ressurreição. A revista conquistou, sem dúvida, um lugar de grande prestígio no conjunto literário da língua portuguesa. Será missão de alto mérito continuá-lo.
– E que outros meios seriam necessários para que a literatura de Cabo Verde fosse mais largamente conhecida na Metrópole e até no Brasil?
– O mais importante seria, sem dúvida, que os escritores cabo-verdianos publicassem com maior assiduidade as suas produções em poesia e em prosa. Tenho sido informado de que há editores na Metrópole que se oferecem decididamente para publicar livros de homens de letras de Cabo Verde – desde que tenham qualidade, evidentemente. Quanto à crítica literária, não temos razão de queixa na constante e generosa atenção ante os escritores insulares. O interesse com que João Pedro de Andrade, Óscar Lopes e outros críticos metropolitanos se referem aos nossos escritores é o mais cativante e estimulador. E não se diga, também, que o leitor metropolitano não anima a criação literária ultramarina. A 2ª edição de «Chiquinho», de Baltasar Lopes, e de «Os Flagelados do Vento Leste», de Manuel Lopes, tiveram excelente venda nas livrarias da Metrópole.
– Diga-nos ainda, alguma coisa de si, Aurélio Gonçalves. Em que trabalha actualmente, o que pensa escrever no futuro?
– Não tenho cessado de escrever e, sobretudo de delinear ou esboçar projectos. Para já, penso reunir em volume novelas e contos inéditos ou que publiquei dispersamente nos últimos anos; vou completar o meu estudo, já extenso, sobre a ironia de Eça de Queiroz; e ambiciono escrever muitas coisas mais, tanto de ficção, como de ensaio crítico – para fixar ideias e observações que tenho acumulado longamente e, também, para corresponder aos incentivos carinhosos que vim encontrar em Lisboa, após vinte e dois anos de ausência. Levo impressões rápidas, mas reconfortantes, levo muitos livros que desejava encontrar, tive encontros intelectuais que me interessaram ou até me emocionaram profundamente. Embora nunca me tenha alheado do movimento literário metropolitano, as minhas opiniões e interpretações avivaram-se ao contacto com a atmosfera em que espiritualmente me formei. E voltarei a Cabo Verde, em breve, com o desígnio bem assente de as definir melhor, de as filtrar pela reflexão metódica e de as apresentar publicamente em ensaio e crónica. A hospitalidade do suplemento literário do «Diário de Lisboa» será mais um estímulo fundamental para a actividade interpretativa e crítica que estou agora decidido a realizar.
António Aurélio Gonçalves vai regressar a Cabo Verde – mas a ponte de comunicação com a vida intelectual metropolitana, que a distância interrompeu, vai restabelecer-se. Os leitores de hoje, muitos deles esquecidos ou desconhecedores deste alto espírito e notável escritor, vão ter em breve a oportunidade grata de descobrir e de apreciar uma relevante personalidade da cultura portuguesa.
(Do Diário de Lisboa de 27-9-1962)
* Título original da publicação