Texto
de Catarina Silva[i]
Manuel e Sebastião, irmãos gémeos, dez anos acabados de fazer, estavam ainda no 2.º ano da escola quando começaram a levar para casa uma nova tendência da linguagem. "Mãe, posso água?", "mãe, posso pão?". O verbo principal a evaporar-se das frases e a mãe, Inês Lopes Gonçalves, radialista e apresentadora, a estranhar o fenómeno. "Até que comecei a perceber que não era só deles, era transversal entre os miúdos." Para uma assumida amante da língua portuguesa, que sempre abominou o erro, corrigir foi imediato. "Perguntava-lhes 'posso o quê?' E o curioso é que eles achavam que o que estava a faltar era o 'por favor'. Então eu insistia: 'posso roubar?', 'posso entornar?'. Fazia-me desentendida e dava-lhes exemplos práticos para perceberem que o que estava a faltar era o verbo. Fui massacrando para que eles corrigissem e sinto que foi resultando."
Só que na escola os colegas também falam assim, economizar nas palavras foi-se propagando entre os mais novos e generalizou-se. "Já pensei que, se calhar, estou a ser uma velha rezingona, que talvez isto seja a língua, que é viva, que não é estanque, a ir por outros caminhos. Também fui lendo sobre o assunto e percebi que pode ter a ver com a maior diversidade de hoje nas escolas, como facto de haver mais alunos oriundos de outros países. No crioulo de Cabo Verde a formulação faz-se muito assim e isto vai muito por contágio." A diversidade é um dado incontornável, é certo, tanto que Inês vai notando também outras influências, nomeadamente do Brasil. De quando em vez, ouve os pequenos gémeos dizerem "te amo" em vez de "amo-te", "me faz" em vez de "faz-me" ."Talvez seja normal, hoje ouvimos muita gente a falar de várias maneiras, temos acesso a conteúdos de todo o Mundo, mesmo com o inglês, já usamos muitas expressões diariamente, eu própria caio nisso."
Apesar disso, a radialista exaspera com o erro, com as calinadas no português, não consegue controlar. Sobretudo em adultos, quando assiste nas redes sociais "ao assassínio diário e massivo" da língua, cada vez mais abreviada, "sem o uso das preposições". Por um lado quer ser otimista, acreditar que a economia de verbos entre os mais novos é passageira. Por outro, ao ver os mais velhos "escreverem mal nas redes sociais", teme que com o tempo "a norma seja o erro". "Não podemos ter a pretensão de achar que controlamos uma coisa que é maior do que nós e vamos ter de nos adaptar. Mas, enquanto puder, vou corrigir os meus filhos. Quanto mais não seja para que saibam, quando usam estrangeirismos, que não pertencem à nossa língua."
Há uma certeza, a de que o fenómeno da economia de linguagem se enraizou entre os miúdos, e segue a par e passo com outras influências que entram a toda a velocidade no discurso, desde os brasileirismos aos anglicanismos. Lá iremos. Foquemos, para já, na omissão dos verbos. Os relatos surgem de toda a parte, de pais e professores. Carla Gonçalves é docente no 1.° Ciclo e de há uns três anos para cá tem vindo a assistir a isto. "O discurso na oralidade está comprometido pela ocultação do verbo principal. Na realidade, eles usam um verbo, o posso, que é auxiliar, o principal é que é completamente anulado. Isto é diário, preocupa-me que o desenvolvimento linguístico esteja a ser posto em causa. "E há uma tese que Carla defende, que vai para lá das influências que temos vindo a beber do Mundo: é o imediatismo. "Vivemos numa era muito rápida, as crianças não sabem esperar, há uma grande ansiedade de resposta e encurtam a mensagem, quase como se fosse um chat. "Para isso, acredita, também contribui o facto de os pequenos lerem cada vez menos. "Só leem o que veem em reels e tiktoks, onde a mensagem também é muito abreviada."
Na sala de aula, de cada vez que os alunos lhe perguntam "posso dicionário?", a resposta da professora é invariavelmente a mesma. "Queres comer o dicionário?", questiona." Se lhes perguntar o que querem fazer com o dicionário, ficam a pensar, têm dificuldade em chegar ao verbo. Perguntando se o querem comer, sendo mais objetiva, resulta melhor. "A abordagem tem trazido frutos, "hoje já fazem uma pausa quando querem fazer uma pergunta e tentam ajustar o discurso".
Ana Soares, também professora do 1° Ciclo, tem vindo a travar a mesma batalha com Isabel, a filha mais nova, de sete anos." Ela teria cinco anos e pouco quando começámos a notar esta omissão dos verbos. Já tinha notado isso na escola, mas em casa não.Ao falar com a educadora e com amigos que têm filhos da mesma idade, percebi que isto começa logo no pré-escolar. "A génese é difícil de identificar, mas há fatores que lhe parecem alimentar a nova tendência." O facto de atualmente ser tudo muito urgente, é sempre tudo à pressa, tudo muito rápido. Nós próprios , os pais, também vivemos assim e sinto que lhes transmitimos essa urgência."
Agora, a pequena Isabel
raramente omite o verbo,
os pais foram insistindo e ela própria já se "autocorrige" sempre
que, distraída, escorrega no erro.
"Vamos conseguindo contrariar. Acho que não devemos deixar escapar, estes
hábitos facilmente se
instalam e depois é mais difícil voltar
atrás", refere a mãe, que reconhece saber que "a língua está sempre em mutação e se vai adaptando à medida que as sociedades vão evoluindo". "A questão é que sinto que
os miúdos falam cada vez pior, com cada vez menos
vocabulário e é preciso ter um papel interventivo."
ENTRE OS RISCOS E O OTIMISMO
O tema tem dado pano para mangas e há uma questão
que se
impõe:
a língua estará mesmo a
mudar? Há visões mais catastrofistas, outras otimistas, os especialistas
dividem-se. Alfredo Leite, licenciado em Psicologia, percorre
escolas pelo país com ações de formação e sensibilização para pais, professores e alunos, no âmbito
do projeto "Mundo Brilhante", e fez uma publicação no lnstagram, a propósito do assunto, que se tornou virai. "Isto não é um erro de aprendizagem nem preguiça
.É um fenómeno
linguístico real: a economia da linguagem. Quanto menos palavras disserem, mais rápido comunicam. O problema é que, quando
cortamos palavras, cortamos
também a forma como organizamos o
pensamento. A linguagem não é só uma ferramenta para falar, ê a estrutura onde o nosso
raciocínio se desenvolve", lia-se. O risco, para Alfredo
Leite, é exatamente esse."Quem não fala bem, não pensa bem. Isto pode ter implicações no desenvolvimento cerebral e acho que se vai refletir
no futuro,com dificuldades em
saberem exprimir-se", aponta à "Notícias Magazine".
Na verdade,
Alfredo Leite também vive o fenómeno em casa, a filha mais nova
economiza nos verbos, e "muitas vezes, nem sequer percebe que o fez". "Por isso é que acho preocupante, ela não o faz para chatear, já nem se apercebe. O caminho é corrigir, corrigir, corrigir. Com paciência, sem agressividade, mas
não podemos assobiar para o lado", sublinha. Porém, a dúvida paira: não poderá ser apenas uma moda?
"Não
acho. O 'bué' é uma moda, o 'tipo' também. Cortar no verbo reflete outras questões, mostra que as crianças articulam de forma pior o pensamento, algo que já tenho
vindo a sentir nos últimos anos.
Não leem, escrevem pior e pensam pior."
Contudo, os linguistas parecem seguir em sentido contrário, numa visão
mais esperançosa. "É um modismo como tantos
outros que têm existido", resume Margarita Correia, linguista,
professora universitária e investigadora. "Se há algum
perigo para a língua? Não. E não me parece que haja uma causa
profunda que tenha
a ver com a aquisição de linguagem. Parece-me até abusivo achar
que é uma alteração a nível mental por estarmos
todos a viver muito depressa.Se as crianças o fizessem em todas as frases
que dizem, poderia estar a
haver uma mudança na sintaxe. Mas surge
sobretudo nas orações
imperativas, quando estão
a pedir alguma
coisa. É uma moda, que vai
desaparecer, como desapareceu o 'prontos'. Ou o 'baril' que se dizia quando
eu era adolescente."
Isto não é mais, considera, do que uma gíria que os jovens criam quando estão entre
pares. É sabido, há sempre aspetos
geracionais na língua. ''Eu não falo agora como falava quando tinha 20 anos.Vamos mudando
a nossa forma de falar ao longo da vida, adaptando-o os a outros contextos. "Marco Neves, também linguista, professor de Línguas na Universidade Nova de Lisboa
e autor do podcast "Português
Suave", tende a concordar. "O
mais prováveI é que isto seja passageiro. A língua vai borbulhando, cada geração vai experimentando
coisas novas,
mas no geral estabiliza. Há mudanças que ficam, nunca sabemos quais.E mesmo que este
fenómeno se generalize,
a língua encontra
soluções para não se perder a comunicação. Mas estes
pânicos sempre existiram."
Isso é um facto. Século após século, surgem tendências na língua
que levam os mais puristas ao desespero.
Já no século XVIII, a obra
"Enfermidades da Língua" abordava a ideia
de que a língua portuguesa estava doente, que andava pelas
ruas da amargura e que já
ninguém sabia falar. "E uma discussão eterna, que acontece em todas as épocas. As novas gerações têm sempre comportamentos diferentes, entre eles está
a forma de falar. E de cada vez que
há alterações é um 'ai meu Deus, estão a corromper a língua'. A ideia ingénua que as pessoas
têm é que a língua
é imutável. Diz-se,
muitas vezes,
que falamos a língua de Camões e não falamos, ele falava
uma variação diferente. Se ele cá viesse ia ter dificuldade em compreender-nos",
enfatiza José
Teixeira, professor de Ciências da Linguagem na Universidade do Minho
e doutorado na área da Linguística Cognitiva. Ainda
assim, modas, assegura, sempre
houve. "Basta ir à internet e procurar modas linguísticas dos anos 1950,1960,1970. Normalmente
isso não fica na língua."
Mas há um ponto
a que é preciso prestar atenção, é que a língua funciona sempre num equilíbrio entre o máximo de eficiência com
o mínimo de esforço. "Estamos constantemente a sintetizar, a poupar, a simplificar, sobretudo na oralidade. Um exemplo é o facto de termos
passado do vossemecê para o você. O economizar acontece sempre ao longo
da história. Não conseguimos é prever se isto veio para ficar
ou se é uma moda passageira."Sendo certo que a tendência, atualmente, é "de
isolacionismo comunicacional, do egocentrismo". "Aquela ideia de 'eu falo e o
outro tem de se desenrascar para me entender. O falante fica contente apenas
com um esboço
da frase. A manter-se assim,
é
natural que não nos importemos de poupar o essencial, que na língua portuguesa é o verbo." Mas isso só o futuro dirá.
DO BRASIL AO
INGLÊS
Olhemos, pois,
para o presente. Embora
a discussão sobre
a doença da língua seja de sempre, nos dias de hoje há um fator que é diferente, segundo o linguista Marco Neves.
É que "estamos a viver a primeira época em que todas as pessoas sabem
escrever, e todas escrevem efetivamente, seja um email,
uma mensagem, seja nas redes sociais, quando antigamente só escrevia quem o fazia profissionalmente, jornalistas, escritores, professores". É preciso não esquecer
que, no final do século passado, tínhamos
uma das maiores taxas de analfabetismo da Europa. "Por escrevermos em todo
o lado
é que há esta
sensação mais aguda de que
as pessoas erram muito.
E, de facto, erram." A somar a isso, estamos
a beber uma série de influências, a começar, desde logo, pelo português do Brasil.
Carmo Oliveira, professora de Português no Ensino Secundário, atesta isso
mesmo. Tem vindo a sentir-se cada
vez mais desmoralizada." Os alunos de hoje têm muitas dificuldades do ponto
de vista linguístico e lexical, têm um vocabulário muito reduzido. Pela primeira vez na vida, não tenho um único aluno que tenha lido 'Os Maias'. Eles não conseguem ler uma obra tão complexa." Ao mesmo
tempo, começa a ouvir no
discurso dos estudantes mais
velhos uma série de palavras importadas do
português do Brasil, como ''engajamento" ou "liberado". "A própria estrutura das frases está em mutação. Dizem, por exemplo, 'eu telefonei a ele'
em vez
de 'eu telefonei-lhe’. Na escola,
tentamos preservar a integridade linguística, corrigir, mas estou convencida de que é uma batalha perdida."
As escolas estão
mais multiculturais e há um grande número
de alunos do Brasil (em cinco
anos, a imigração brasileira cresceu 369%), mas a influência também
está ligada ao fenómeno de youtubers brasileiros junto de crianças e jovens."Aposto
até mais nisso, o mundo digital tem muito peso.
Há dias, fotografei o telemóvel de uma aluna que tinha
18 horas de ecrã num só dia. "Carmo Oliveira não esconde
a preocupação, mas sabe que não dá para
remar contra a maré. "Estamos numa fase difícil,
há uma normalização do erro, estruturas a mudar,
menor riqueza linguística. O mais provável
é que a língua tenha características diferentes na próxima década.”
Será que isso é trágico? "O
português falado vai mudar, isso claramente.E tenho
a impressão
de que vai mudar depressa, porque Portugal
nunca recebeu tantos imigrantes. Mas não me preocupa nada, é a língua tal como ela é", salienta Margarita Correia. Vamos absorver novas palavras, expressões, a estrutura sintática vai sofrer mudanças. Mas, realça a linguista, já antes da grande vaga
de imigração do Brasil, ainda nos anos
1990, estavam a ocorrer
alterações sintáticas que nos aproximavam do português do país do samba.
Vejamos, excluindo os emigrantes, o
português europeu
tem
dez milhões de falantes, o do Brasil
tem mais de 200 milhões, e consumimos cada vez mais conteúdos produzidos na outra margem
do Atlântico, a influência parece inevitável. Mas não é
por entrarem duas ou três expressões do Brasil na nossa linguagem que
vamos perder a identidade", afirma José Teixeira, que
vai mais longe: "Se
queremos que o português seja
realmente uma língua internacional, tem de ser uma língua
misturada. Seria prestigiante
ser uma íingua mais internacional. Todas as grandes línguas internacionais são uma
mistura. O inglês que falamos
hoje
não é o de
Londres, mistura expressões
americanas, inglesas,
australianas. Não me importo nada que o português seja uma língua que tenha
contributos das várias zonas onde é falada, do Brasil, de Angola, de
Moçambique”. Até porque vale a pena
ressalvar, o português não é dos portugueses, é de quem o fala. E o português
do brasil é tão português como o meu, são variantes da mesma língua.”
Curiosamente,
diz o investigador, hoje temos até mais palavras do inglês no nosso vocabulário do que do português do Brasil. "E
não nos preocupamos tanto. Já usamos
a palavra tributo sem
ser no sentido de impostos, agora significa homenagem. Usamos realizar no
sentido de perceber. Nem nos questionamos. Quando a palavra futebol entrou no
português europeu, no princípio do século XX, houve um conjunto de escritores,
os académicos da época, que achavam que se devia proibir e propuseram pedibola.
Adiantou alguma coisa?Aliás, o futebol é parte da nossa identidade hoje.”
Se os falantes quiserem, as palavras entram,
a língua não se impõe
por decreto. E é inegável que o inglês
está cada vez mais presente. A professora Carmo Oliveira relata até que, nos corredores da escola, já há alunos
do secundário
a conversarem inteiramente
em inglês entre eles, e irrita-se com a subserviência a uma língua que não é
nossa. O professor de Ciências de linguagem, linguista Marco Neves diz mesmo
que "a grande pressão na língua não é do Brasil, é do inglês, que está a ter um impacto muito superior. Algo que não é novo, o que é
novo é ser uma proporção tão grande.”Por exemplo sabemos que as taxas de
leitura em Portugal não são maravilhosas, mas quem lê, lê cada vez mais em
inglês.”
Marco Neves não tem medo dos estrangeirismos, a questão
é que atingimos um novo patamar.
"Não é impossível pensar numa situação em que o inglês começa a ter uma presença
tão forte ao ponto de os próprios
pais falarem em inglês
com os filhos.
Podemos chegar a um ponto de substituição. Parece absurdo agora,
mas não é tão descabido assim. Claro que o inglês é um grande instrumento de
comunicação internacional, mas não como substituição da nossa própria língua.”
O caminho, para todos os que se afligem com as influências que estamos a receber, sugere, é tentar mostrar aos mais novos mais
música em português, programas de entretenimento, séries,
livros. " E evitar o pânico, a ideia de que isto está tudo mal." Há mais
de sete
mil línguas no Mundo e a
portuguesa está entre as dez mais faladas. Como diz José Teixeira, "uma língua só morre
quando os seus falantes morrerem, pode sofrer
alterações profundíssimas, mas continua sempre a funcionar'.
[i] Notícias Magazine de 08.06.2025
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