Tenho seguido, há umas semanas, por mero acaso, um diferendo de certa forma interessante, entre um finalista, em fase de estágio dos Complementos de Licenciatura de uma das instituições de ensino superior nacional e as suas orientadoras e supervisoras responsáveis pelos trabalhos finais que lhe conferirão o grau académico perseguido.
Andam as duas partes – de um lado o Formando e do oposto, os Formadores – verdadeiramente de “candeias às avessas” por causa da aceitação e da não-aceitação da existência formalizada do conceito de “Língua literária.”
Ora bem, o diferendo/debate que até podia ser deveras construtivo e interessante, pois que obriga as duas partes a estudarem mais atentamente o assunto e, de caminho abrir pistas a outras reflexões linguísticas/literárias; infelizmente, embora parcialmente, o caso já está a ganhar contornos tais, que o finalista – que me parece aplicado e com uma preocupação que já vai sendo muito rara entre nós, (formadores e formandos) que é o de se argumentar com base em pesquisas feitas, em estudos de autores abalizados na matéria em apreço – já receia uma “reprovação.” A acontecer será de certo modo “revanchista” do ponto de vista dele, porque, e continuo com a opinião dele, apenas por não concordar pontualmente com as professoras orientadoras sobre a não existência de “língua literária” enquanto conceito e registo como nível de Língua.
O que para mim é certo e muito claro, é que não quero e nem devo julgar, ou tomar partido, uma vez que apenas ouvi e escutei as razões de uma das partes.
De qualquer forma, ganhei um “mote” para escrevinhar umas linhas, o que tentarei fazer neste texto breve. Apenas isso. Longe de mim qualquer veleidade extra que não a de acrescentar mais uma opinião que nem sequer foi pedida, e que nem terá qualquer validade decisória. E ainda bem!
Mas vamos por partes que assim será melhor entendido o caso.
De uma maneira geral, entre os especialistas que sobre os níveis da língua arregimentaram conceitos, existe alguma unanimidade. Isto é, uma língua viva possui, e isso pode ser registado em termos da sua oralidade e da sua escrita, diversos níveis de língua, que se agrupam também em variações socioculturais da linguagem e variações geográficas da língua.
É assim que distinguimos numa mesma Língua, o nível corrente, o nível cuidado, o nível familiar e o nível popular. Também se observa nessa mesma língua a existência do calão, da gíria e das variantes regionais. Tomemos para exemplo, a nossa língua portuguesa que pode ser um exemplar perfeito do que se acabou de afirmar.
Fazendo agora um pouco a história da origem destes níveis de língua, a sua “paternidade” é atribuída de forma partilhada, ao “fundador” da Linguística como ciência, o suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913) ao «Círculo Linguístico de Praga» (1930) e a Roman Jakobson notável linguista russo (Moscovo, 1896 - Boston, 1982). Estes mestres históricos, estruturaram a Língua, criaram modelos hoje universais das funções da linguagem e fizeram aproximações entre os domínios da linguística e os da teoria literária. Todos eles fizeram escola, ganharam discípulos teorizadores, dos níveis de língua e das funções da linguagem.
Ora bem, existem também alguns autores que aceitam a conceptualização da chamada “língua literária” apenas como registo escrito, não oral, configurando-a como apresentando: “as características da língua cuidada, mas assume desvios da norma mais arrojados: figuras de estilo e palavras estudadas para criar ambientes emotivos e poéticos.” (fim de transcrição).
É minha opinião que a definição de uma “língua literária” como nível de língua – não como linguagem que a meu ver ela tem cabimento – talvez esteja mais assente, enquanto tese, entre os estilistas brasileiros da língua portuguesa, uma vez que os falantes desta variante da língua portuguesa possuem uma oralidade muito diferenciada e distinta da língua escrita. É muito mais notória a “décalage”, o desnivelamento entre a oralidade e a escrita do português, variante brasileira do que entre a oralidade e a escrita entre nós, falantes do português (euro-africano) em que, por vezes, as fronteiras entre o nível da oralidade e o nível da escrita são bem ténues.
Daí talvez tenha havido entre alguns estudiosos e estilistas da língua, a necessidade do acentuar uma existência de «língua literária» enquanto nível de língua. O que é bem capaz de eventualmente poder enriquecer, porque aumenta as variações, a distinção entre os níveis de língua, mas não deixa de ser “uma abstracção” dado que à linguagem literária concorrem e podem concorrer ao mesmo tempo, vários níveis de língua por ela absorvidos, fundidos, neutralizados e recriados. Consequentemente, pode parecer “redutora” e “limitativa” a existência de “per si” da língua literária enquanto registo autónomo como nível de língua.
Com efeito, na nossa permanente e vital necessidade de comunicação, estamos sempre a usar um nível de língua, ora o familiar, ora o cuidado, ora o corrente, e até mesmo a gíria e/ou o calão, importando apenas o contexto em que nos encontremos, os interlocutores de ocasião e a natureza e o conteúdo do assunto a tratar.
Por vezes, nos nossos actos elocutórios, em que, a “linguagem pensa o discurso e articula a fala” – que me seja permitida esta espécie também de abstracção aparentemente confusa – juntam-se num mesmo acto elocutório, o nível cuidado (culto) e o nível corrente (informativo) da língua. Imagine-se, por exemplo, o cenário de uma conferência, ou de um debate científico, entre outros, em que o rigor do pensamento e a formulação das ideias são chamados a par. Nestes casos usamos mais do que um registo da língua veiculada e com alguma ênfase no nível cuidado, na língua culta que acabam por ser sinónimos e que engloba também a linguagem científica e técnica.
Por outro lado, se se está perante um texto literário – prosa ou poesia – está-se perante um consciente “desvio” de tudo isto na perspectiva de uma linguagem criativa, original, simbólica perfigurativa, artística e poética, sem perder os limites, por vezes em última instância, da linguagem comunicativa. Por isso é que se fala em “literariedade” de um texto enquanto ficcional, poético e fundamentalmente criativo e estilístico.
E o texto literário é, por vezes, um ponto de chegada, uma convergência reelaborada, transformada, em que se encontram os vários registos dos níveis de língua, da cuidada à popular, passando pela familiar, pela gíria, numa perfeita simbiose distintiva em contexto, ora nas falas das personagens socioculturalmente distintas, ora nos descritivos do narrador e/ou no expressar emotivo do sujeito poético.
Eu fico-me – falando o nível corrente da língua – pela suposição de que existe em grau acentuado, alguma existência virtual e não verificável – enquanto nível de língua – da chamada “língua literária” sobretudo se agrupada aos níveis já aqui referidos. Mas é apenas a minha opinião.
Voltando ao início deste escrito, espero e faço votos sinceros de que o diferendo entre o estagiário e as supervisoras, responsáveis pela finalização do seu percurso académico, seja bem resolvido, com bom senso, com abertura na análise dos pontos de vista de cada lado e que haja uma discussão paritária com aceitação e compreensão na divergência de opiniões divergentes. Pelo contrário, não desejaria que o assunto fosse resolvido transmitindo algum sinal, alguma suspeição de que a solução esteve do lado da “força” de quem tem (?) a superioridade conferida do alto do estrado da sala de aula, ou da irreverência por se ter acesso a variadas informações hoje disponibilizadas pelas novas tecnologias de informação.
Finalizo reiterando o desejo que neste caso, impere a abertura intelectual e o saber, mas um saber baseado numa argumentação séria e honesta conferida através do estudo e da pesquisa sobre a matéria.
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