Destino!?...

sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Antes de entrar no tema que faz supor o título deste escrito, abro um parêntesis para contar o seguinte: o Armindo costuma, dizer-me a brincar, que eu escrevo por qualquer pretexto, «pronto, lá vai ela escrever!» comenta ele. Quem dera que assim fosse! E respondo-lhe também meio a brincar, meio a sério, que algumas vezes, os meus escritos são para “despistar” o terrível “senhor alemão” e mantê-lo o mais afastado, tanto quanto me for possível. Fecho o parêntesis.
Mas o assunto que aqui me traz nem é feliz, bem pelo contrário, faz-nos ver a vulnerabilidade humana e a sua degradação conduzidas algumas vezes pelo próprio sujeito.
Foi assim: aqui há dias a minha Empregada, acabado o trabalho, despediu-se e ouvi-a fechar a porta após um: «até amanhã, se Deus quiser!» Passados nem dois segundos, volto a ouvir um toque da campainha da porta, pensei com os meus botões: «Deve ser o David! mal pressente que estou sozinha, vem bater-me à porta!». Desço para a abrir e era de novo a empregada que se havia esquecido do telemóvel. Digo-lhe: «Ah! Julguei que fosse o David!» resposta dela: «Ah! D. Ondina! Esqueci-me de lhe dizer, o David foi a enterrar no fim-de-semana. Morreu numa valeta de uma rua qualquer. Diz-se com ataque de coração».Fiquei meio perplexa, que é como se fica normalmente com uma notícia desta e apenas comentei: «Coitado! Paz à sua alma!»Hão-de me perguntar quem é ou, quem era o David?
Ora bem, comecemos pelo princípio. Conheci o David na década de oitenta, meados ou finais, já não posso bem precisar, só sei que ele era então ainda um jovem homem, artesão e que me vinha bater à porta para vender as suas peças acabadas de fazer. Eles eram candeeiros de casca de coco, quinquilharias de tartaruga (ainda não havia a boa proibição da caça a esta espécie marinha) ícones de barro, entre outros objectos. Eu comprava-lhe as peças mais para o incentivar a continuar com o ofício do que propriamente porque as queria. Embora seja apreciadora de um bom artefacto.
A determinada altura, apercebi-me de que o artesão já não andava bem, bebia ou drogava-se, não posso afirmar, mas que me parecia isso, parecia. Falava alto, sozinho, alterado. Passou a vir bater à porta quase todos os dias. Por vezes mais do que uma vez por dia. Gritava pelo meu nome quando lhe diziam que eu não estava ou estava ocupada.
Por fim já trazia peças inacabadas, e algumas que me pareciam não serem dele, mas sim subtraídas por ele a algum colega.
Enfim começara a sua degradação, a desgraça e a sua queda. Deixou de trabalhar a sua arte. A desleixar-se no vestir e na higiene pessoal. Passou a pedinte, a vagabundo de rua, parecia mesmo um quase sem-abrigo. Vinha já pedir comida e, sobretudo, dinheiro. Dava-lhe ou, mandava dar-lhe algum leite, pão, bolacha, ou sopa, pois que me parecia que cada vez mais se reflectia no corpo muito debilitado, os efeitos devastadores da bebida e da droga. Igualmente pelo Natal, oferecia-lhe sempre uma prenda em dinheiro. Mas o seu comportamento piorava de dia para dia em termos de boas maneiras. Passou a exigir em alta briga (como se fosse um direito adquirido) à empregada, a todos da casa, dizendo que eles não estariam a cumprir as minhas ordens em dar-lhe o que estava a pedir. O que é certo é que tantas fez que já ninguém tinha paciência para o ouvir quando cá vinha à porta de casa. Numa palavra: passou a “abusar” da dita “bondade do próximo.”
Voltando ao passado do David, do tempo em que ainda novo e artífice (promissor); do tempo em que participava com as suas peças em feiras e em pequenas exposições de artesanato e em que ele estava enquadrado no Centro de Artesanato. Era um tempo de intensa cooperação com países (sobretudo europeus) que ajudavam Cabo Verde. Havia cooperantes de várias nacionalidades. Eles e elas, franceses, suecos, suíços, italianos, portugueses -embora estes últimos não fossem considerados propriamente “estrangeiros” – entre outros. Mas que os havia em notável quantidade e de diversas nacionalidades, era então um facto.
Contaram-me – não posso garantir a veracidade disso – que ele se envolvera numa relação amorosa com uma cooperante e que quando esta terminou a missão – assim se denominava na época, o serviço prestado pela cooperação dos países que ajudaram Cabo Verde nos primeiros anos após a independência – quis “levá-lo” com ela de regresso ao país de origem. Ela estava no ramo e saberia como enquadrá-lo no seu ofício. Segundo a minha relatora, ela pediu, suplicou-lhe, lágrimas pelo meio, mas David ter-se-á recusado, pois começara a beber e a usar alucínogenios (?). Enfim!...
Conta-se que, inclusivamente, isso foi mote de uma coladeira muito em voga nessa época. Ficou na terra e não tardou a processar-se (não por este motivo) a auto-destruição do homem.
Um dia em que ele me pareceu mais sóbrio, perguntei-lhe timidamente, pois sabia que estava a “invadir território muito pessoal” o porquê dessa recusa, que certamente lhe teria mudado – para melhor – quem sabe! O rumo da vida? Ele apenas me respondeu: «Destino!?...Olhe nem sei! …»E ao saber a notícia da sua morte, veio-me à memória esta espécie de presságio/sentença de vida, dita pelo próprio.

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