Há uns anos, quase toda a imprensa internacional dava
largo destaque ao facto de o violonista Joshua Bell ter sido ignorado quando
tocava anonimamente numa estação de metro de Washington. O nosso Jornal de
Notícias, por exemplo, relatava assim:
“Numa experiência
inédita, Joshua Bell, um dos mais famosos violinistas do Mundo, tocou incógnito
durante 45 minutos, numa estação de metro de Washington, de manhã, em hora de
ponta, despertando pouca ou nenhuma atenção. A provocatória iniciativa foi da
responsabilidade do jornal 'Washington Post', que pretendeu lançar um debate
sobre arte, beleza e contextos. Ninguém
reparou também que o violinista tocava com um Stradivarius de 1713 ̶ que
vale 3,5 milhões de dólares. Três dias antes, Bell tinha tocado no Symphony
Hall de Boston, onde os melhores lugares custam 100 dólares, mas na estação de
metro foi ostensivamente ignorado pela maioria. A excepção foram as crianças,
que, inevitavelmente, e perante a oposição do pai ou da mãe, queriam parar para
escutar Bell, algo que, diz o jornal, indicará que todos nascemos com poesia e
esta é depois, lentamente, sufocada dentro de todos nós”.
E Joshua Bell
desabafaria assim, conforme o jornal atrás citado: “Foi uma sensação muito
estranha ver que as pessoas me ignoravam. Num concerto, fico irritado se alguém
tosse ou se um telemóvel toca. Mas no metro as minhas expectativas diminuíram.
Fiquei agradecido pelo mínimo reconhecimento, mesmo um simples olhar”.
Esta ocorrência
deveras singular abre-nos de facto a possibilidade de pensar e discutir sobre o
conceito de arte ou o que as sociedades modernas consideram como tal. A arte,
no seu verdadeiro significado, deveria corresponder à busca de uma expressão e
sentimento estéticos que promovam o encontro do homem consigo próprio, que lhe
instiguem a reflexão sobre a sua espiritualidade e, em última instância,
alavanquem o seu aperfeiçoamento intelectual e cultural, permitindo-lhe uma
visão superior da vida e do seu equilíbrio com o meio em que vive.
A arte primitiva
(rupestre) quase certo que estaria genuinamente mais próxima daquela definição,
ainda que numa expressão rudimentar. Encantaria o homem daqueles primórdios da
racionalidade e não seria de molde a suscitar-lhe outra reacção que não fosse a
fruição pura e simples da representação estética da realidade. As crianças dos
tempos primevos das cavernas olhariam para as figuras rupestres com um
interesse equivalente ao daquelas que foram os poucos transeuntes a deterem-se
num gesto tão espontâneo como sincero para escutar Bell. Como diz o jornal,
“todos nascemos com poesia e esta é depois, lentamente, sufocada dentro de
todos nós”. Se a arte indiscutivelmente provém da mais pura emoção,
dela se alimentando e nela se reinterpretando continuamente, isto significará
que o embevecimento da criança perante o belo, brotando da verdura dos seus
sentimentos, é a primeira e mais genuína reacção humana face à
arte.
Só que o sentido
da arte passou, com a evolução e o progresso do mundo material (não
diria espiritual), a entrar nos meandros da sofisticação e da especulação, no
sentido em que factores estranhos à emoção passaram a influenciar a
interpretação do conceito de arte, tais como a introdução de modismos, a
afirmação de egos, as tendências sociais, o comércio especulativo de
obras de arte, etc. Alguns borrões ou traços numa tela valem milhões
não porque se criará um consenso universal e intemporal sobre o seu valor
artístico mas porque um determinado contexto histórico-social elege os seus
autores como produtores de símbolos e referências de modas e épocas, que, nessa
qualidade, e numa escala de valores relativos, passaram a ostentar preços
avultadíssimos e só ao alcance das elites endinheiradas. Interrogar-se-á sempre
sobre o conceito que preside ao cálculo do seu valor artístico e monetário.
Assim, forçoso é
concluir que, no caso em apreço, a arte de Joshua Bell só é socialmente mais considerada
pelo homem de hoje se revestida da sofisticação do espaço e do enquadramento
cénico em que ela é apresentada, ainda que seja, efectivamente, de
primeiríssima qualidade. Portanto, creio que a razão de tudo o que se passou
naquela estação de metro se deve ao abastardamento espiritual que o homem vem
consentindo dentro de si mesmo, subordinando-se a códigos sociais aferidos mais
pela artificialidade dos valores materiais que enformam a civilização
contemporânea, do que por um património intangível, imutável e
eterno, pertença do domínio exclusivo do espírito.
Com efeito, e infelizmente, com a evolução dos tempos, a
arte deixou de ser vista na sua pureza autêntica para se tornar um simples
objecto de consumo. As longas filas de visitantes ao Museu do Louvre para ver a
Mona Lisa estão lá mais para registar a visita nos seus roteiros turísticos
pessoais do que para apreciar verdadeiramente essa pintura de Leonardo da Vinci.
As pessoas que pagam bilhetes de 100
dólares para ver tocar Joshua Bell no Symphony Hall de Boston, na sua
maioria certamente não vão lá porque apreciem ou alcancem a verdadeira dimensão
da música do violonista, mas mais porque é chique e fará bem ao ego quando o contarem aos amigos.
E no entanto a arte verdadeira continua viva e corre estuante e
silenciosa como um rio subterrâneo, mas só perceptível por quem se deslumbra
com a vibração da natureza.
Tomar, Junho de 2015
Adriano
Miranda Lima
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