O LUGAR DA ARTE

sexta-feira, 3 de julho de 2015
Há uns anos,  quase toda a imprensa internacional dava largo destaque ao facto de o violonista Joshua Bell ter sido ignorado quando tocava anonimamente numa estação de metro de Washington. O nosso Jornal de Notícias, por exemplo,  relatava assim:
“Numa experiência inédita, Joshua Bell, um dos mais famosos violinistas do Mundo, tocou incógnito durante 45 minutos, numa estação de metro de Washington, de manhã, em hora de ponta, despertando pouca ou nenhuma atenção. A provocatória iniciativa foi da responsabilidade do jornal 'Washington Post', que pretendeu lançar um debate sobre arte, beleza e  contextos. Ninguém reparou também que o violinista tocava com um Stradivarius de 1713  ̶  que vale 3,5 milhões de dólares. Três dias antes, Bell tinha tocado no Symphony Hall de Boston, onde os melhores lugares custam 100 dólares, mas na estação de metro foi ostensivamente ignorado pela maioria. A excepção foram as crianças, que, inevitavelmente, e perante a oposição do pai ou da mãe, queriam parar para escutar Bell, algo que, diz o jornal, indicará que todos nascemos com poesia e esta é depois, lentamente, sufocada dentro de todos nós”.

E Joshua Bell desabafaria assim, conforme o jornal atrás citado: “Foi uma sensação muito estranha ver que as pessoas me ignoravam. Num concerto, fico irritado se alguém tosse ou se um telemóvel toca. Mas no metro as minhas expectativas diminuíram. Fiquei agradecido pelo mínimo reconhecimento, mesmo um simples olhar”.

Esta ocorrência deveras singular abre-nos de facto a possibilidade de pensar e discutir sobre o conceito de arte ou o que as sociedades modernas consideram como tal. A arte, no seu verdadeiro significado, deveria corresponder à busca de uma expressão e sentimento estéticos que promovam o encontro do homem consigo próprio, que lhe instiguem a reflexão sobre a sua espiritualidade e, em última instância, alavanquem o seu aperfeiçoamento intelectual e cultural, permitindo-lhe uma visão superior da vida e do seu equilíbrio com o meio em que vive.

A arte primitiva (rupestre) quase certo que estaria genuinamente mais próxima daquela definição, ainda que numa expressão rudimentar. Encantaria o homem daqueles primórdios da racionalidade e não seria de molde a suscitar-lhe outra reacção que não fosse a fruição pura e simples da representação estética da realidade. As crianças dos tempos primevos das cavernas olhariam para as figuras rupestres com um interesse equivalente ao daquelas que foram os poucos transeuntes a deterem-se num gesto tão espontâneo como sincero para escutar Bell. Como diz o jornal, “todos nascemos com poesia e esta é depois, lentamente, sufocada dentro de todos nós”. Se a arte indiscutivelmente  provém da mais pura emoção, dela se alimentando e nela se reinterpretando continuamente, isto significará que o embevecimento da criança perante o belo, brotando da verdura dos seus sentimentos, é a primeira e mais genuína  reacção humana face à arte.

Só que o sentido da arte passou, com a  evolução e o progresso do mundo material (não diria espiritual), a entrar nos meandros da sofisticação e da especulação, no sentido em que factores estranhos à emoção passaram a influenciar a interpretação do conceito de arte, tais como a introdução de modismos, a afirmação de egos, as tendências sociais,  o comércio especulativo de obras de arte, etc. Alguns borrões ou traços numa tela valem milhões não porque se criará um consenso universal e intemporal sobre o seu valor artístico mas porque um determinado contexto histórico-social elege os seus autores como produtores de símbolos e referências de modas e épocas, que, nessa qualidade, e numa escala de valores relativos, passaram a ostentar preços avultadíssimos e só ao alcance das elites endinheiradas. Interrogar-se-á sempre sobre o conceito que preside ao cálculo do seu valor artístico e monetário.

Assim, forçoso é concluir que, no caso em apreço, a arte de Joshua Bell só é socialmente mais considerada pelo homem de hoje se revestida da sofisticação do espaço e do enquadramento cénico em que ela é apresentada, ainda que seja, efectivamente, de primeiríssima qualidade. Portanto, creio que a razão de tudo o que se passou naquela estação de metro se deve ao abastardamento espiritual que o homem vem consentindo dentro de si mesmo, subordinando-se a códigos sociais aferidos mais pela artificialidade dos valores materiais que enformam a civilização contemporânea, do que por um património intangível, imutável  e eterno, pertença do domínio exclusivo do espírito.

Com efeito, e infelizmente, com a evolução dos tempos, a arte deixou de ser vista na sua pureza autêntica para se tornar um simples objecto de consumo. As longas filas de visitantes ao Museu do Louvre para ver a Mona Lisa estão lá mais para registar a visita nos seus roteiros turísticos pessoais do que para apreciar verdadeiramente essa pintura de Leonardo da Vinci. As pessoas  que pagam bilhetes de 100 dólares para ver tocar Joshua Bell no Symphony Hall de Boston, na sua maioria certamente não vão lá porque apreciem ou alcancem a verdadeira dimensão da música do violonista, mas mais porque é chique e fará bem ao ego quando o contarem  aos amigos.
E no entanto a arte verdadeira continua viva e corre estuante e silenciosa como um rio subterrâneo, mas só perceptível por quem se deslumbra com a vibração da natureza.


Tomar,  Junho de 2015

Adriano Miranda Lima


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