Escola de Padre e Escola de Rei

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Aproveitando a efeméride do centenário do nascimento do médico, escritor e ensaísta, Henrique Teixeira de Sousa (1919); e porque o assunto contido no texto que ora se (re)publica, não perde actualidade, fomos a um número do Jornal «Terra Nova» do ano 2000 e seleccionámos este texto que nos transporta ao passado da  literacia nas ilhas. 


Por H. Teixeira de Sousa*

A gente jovem de Cabo Verde já não deve saber o que significa a designação escola de rei. A época colonial vai-se esfumando na memória colectiva; quem tinha zero anos de idade já hoje conta com vinte e cinco primaveras, quem fizera dez anos na ocasião de independência nacional, é actualmente um adulto de trinta e cinco anos. A moderna geração possui outras referências, novos valores, os quais não se enquadram nos cânones do passado. Nem por isso, porém, se pode dispensar a retrospecção dos factos e acontecimentos, exercício que é de suma importância para o conhecimento rigoroso do que agora somos.
Daí que desta vez a minha crónica se debruça um pouco sobre o ensino em Cabo Verde, desde os primórdios do respectivo povoamento. É assunto já abordado por alguns estudiosos, por exemplo, António Carreira, mas que não é de mais reabordar, com vista à informação da juventude.
Folheando uma colectânea de Boletins Oficiais de Cabo Verde, de entre 1849 a 1850, volume já bastante danificado pela traça, da minha biblioteca pessoal, deparei com o texto oficial que criava na ilha Brava a Escola de Instrução Superior, Primária e Secundária. E porquê nesta ilha? Por uma de duas razões, ou por causa da salubridade daquela estância, ou porque nela se achava sediado o governo da província. Ou talvez ainda pelas duas razões juntas. Esta escola funcionou durante dez anos. Antecedeu-lhe o Liceu Nacional, sediado na Praia, em 1846, tendo tido uma efémera duração, com certeza neste caso, por motivo da malária que em Santiago fustigava todo o ano a população, mais intensamente nos meses chuvosos. Ainda nos anos 50 e primórdios de 60 o panorama palúdico não era nada famoso, como provaram as prospecções levadas a efeito pela Missão de Estudo e Combate de Endemias, sob chefia do Dr. Manuel Meira. Havia zonas com índices parasitários e esplénico assustadores. Era rara a criança com idade inferior a 12 anos que não exibia esplenomegália (baço aumentado de volume). O insecto vector era (e continua a ser) o anopheles gambiae, mosquito que não encontramos na ilha Brava, onde portanto não existia, nem existe, o paludismo endémico. O curioso é que em Santo Antão encontrámos anopheles gambiae, mas nenhum caso de malária autóctone, situação que se designa por anophelismo sem paludismo. Mas não interessa agora esmiuçar.
As matérias ensinadas nessa escola da Brava, ao longo dos quatro anos de frequência, iam desde a leitura, passando pela escrita, aritmética, geometria, gramática, história portuguesa, doutrina cristã, até ao estudo dos produtos naturais do arquipélago, ou que nele se fabricavam, e que fossem, ou pudessem ser objecto de indústria ou de comércio, ou ainda dignos de terem lugar na economia doméstica. Este último período, com tantas disjuntivas e copulativas, até se parece com a prosa do século dezoito. Adiante. Semelhante atenção dada aos produtos naturais constitui facto de estranhar, numa época em que o ensino era demasiado centralizado em relação ao reino. Os textos falavam em castanheiro, nogueira, pinheiro, etc., omitindo a flora local. Ainda foi assim no meu tempo e no dos meus filhos mais velhos. A história era a do reino da metrópole, sucessivamente. A geografia era a corografia de Portugal continental e das ilhas adjacentes dos Açores e da Madeira.
Recuando um século, em relação à data da criação da Escola da Brava, temos que em 1772, ao surgirem as primeiras escolas oficiais em Portugal (escolas régias, chamadas escolas de rei em Cabo Verde), o Conselho Ultramarino autorizou a abertura de estabelecimentos de ensino semelhantes no nosso arquipélago. Mas esta autorização não teve andamento por falta de verba. A pequeníssima percentagem da população que conseguia aprender a ler e a escrever, ficava a deve-lo aos mestres particulares ou à escola da paróquia. Os mestres-escola e os párocos de freguesia tiveram um papel relevante na alfabetização das gentes do arquipélago. Em 1811 a situação mantinha-se a mesma, isto é, as escolas régias (escolas de rei) achavam-se apenas no papel, facto que mereceu severo reparo por parte da Corte no Rio de Janeiro. Na altura a realeza encontrava-se sediada no Brasil. O orçamento de Cabo Verde não suportava a difusão de escolas, pelo que ainda no ano lectivo de 1837-38 não funcionavam mais do que dez estabelecimentos de ensino em toda a Província. Em 1842 o número de escolas primárias alcançou a cifra de trinta e três.
Convém recuar ainda mais no tempo para ver quão meritória foi a intervenção da Igreja Católica na esfera do ensino. De tal maneira que podemos afirmar que o ponto de partida da literacia em Cabo Verde se situou à sombra da batina eclesiástica.
Em 1546 o rei permitiu que homens pretos e mestiços pudessem entrar em cargos públicos. Estes pretos e mestiços alfabetizados, eram os que iam sendo ensinados nas chamadas escolas de ler e escrever, escolas ministradas pelos clérigos.
Em 1555 começou a ordenação de sacerdotes entre os nativos. Mas a instalação dum Seminário como tal, levaria alguns séculos para se concretizar. A Igreja já não se conformava com a existência de tonsurados suficientes para fazer a cobertura religiosa do arquipélago. Daí que fosse muito importante a criação do Seminário de São Nicolau, pelo qual se bateu denodadamente o bispo D. José Alves Feijó. Finalmente o decreto de 1866 criava o Seminário-Liceu da Ribeira Brava. E porquê Seminário-Liceu e não Seminário tout court? Semelhante gemenismo foi uma estratégia do bispo. Como não tinha dinheiro para sustentar um seminário, propôs a inclusão do ensino laico no dito estabelecimento, ao lado da preparação eclesiástica, em ordem a obter a verba do Estado para o objectivo em vista.
Como a gente sabe, foi desse alfobre que começaram a surgir os primeiros quadros do funcionalismo público, devidamente qualificados, os primeiros poetas e prosadores do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, os primeiros indícios duma intelligentsia local que haveria de evoluir até à eclosão do movimento cultural da Claridade. Não fora a Igreja católica, o nosso percurso histórico teria sido outro, mais sombrio naturalmente.
*Publicado no “Terra Nova” de Novembro de 2000

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