"Essa coisa estranha da responsabilidade individual" ganha enorme sentido nestes tempos conturbados, alterados e perturbados pela pandemia. Daí o interesse da publicação do texto que se segue da autoria do Historiador Pacheco Pereira. Embora o contexto espacial seja Portugal, é minha convicção de que o conteúdo se pode também estender e aplicar-se com oportunidade, ao nosso contexto ilhéu.
Aqui se transcreve o Artigo publicado no Jornal "Público" de 31de Outubro de 2020, com a devida vénia ao seu autor.
Essa coisa estranha da responsabilidade individual
Por José Pacheco Pereira*
Se Portugal tivesse uma cultura de responsabilidade,
seria possível decidir excepções caso a caso, como seria racional
A
ideia de que existe uma coisa chamada “responsabilidade individual” não é muito
popular. Por muitas razões, educação, formas actuais de sociabilidade, atrasos
económicos e sociais, culturas de desresponsabilização, paternalismo estatal,
falhanço familiar, desagregação dos saberes e das profissões, pobreza, crise
das mediações, o empobrecimento do discurso público e das narrativas cívicas e
políticas, a ignorância agressiva das redes sociais, o ascenso de egoísmo
gerado pelas ideias de “sucesso”, protagonismo, e pelo “yuppismo”, tudo leva a
que a ideia de responsabilidade esteja em recuo. Não é a única a recuar, vai a
par com a crise do valor da privacidade, com uma simples noção de honestidade,
com aquilo a que se costumava chamar “princípios”.
Tenho
consciência de que todas estas questões de moral e ética não são simples, são
até bastante complicadas. Mas fico-me com o sentido corrente das palavras, que
correspondem ao entendimento comum — ou seja, toda a gente entende do que estou
a falar. As polémicas recentes sobre a “educação cívica”, toda a discussão
sobre a corrupção para além da legalidade, são apenas um exemplo de debates
imperfeitos, mas que tocam questões de responsabilidade individual.
O
que significa esta responsabilidade individual? Mais uma vez sem complicações,
e no contexto da pandemia, é comportarmo-nos de modo a proteger-nos a nós
próprios e aos outros, mesmo que isso signifique algum desconforto. Como se faz
essa protecção? Alegar ignorância não é razoável, porque toda a gente sabe o
que é, a começar pelo uso de máscaras, distanciação social, lavagem das mãos e
ajudar-nos uns aos outros na medida das possibilidades, dirigida a todos os que
têm dificuldades e necessidades a que não podem responder. Alegar pretextos
ideológicos e políticos é quase sempre uma justificação para a preguiça e para
o desleixo, tanto mais que quem os alega não recusa os tratamentos e os custos
gerados pelo seu comportamento. Já para não falar do sofrimento que causam aos
outros. Já ouvi vários jovens dizer que não têm de cumprir regras para uma
doença que só afecta os “velhos”. Ou argumentos absurdos sobre a “liberdade” de
não usar máscara por quem tem um capacete de mota debaixo do braço. Na verdade,
é tudo bastante simples, precisa é de vontade e sentido de dever e da recusa de
pretextos para a preguiça e o egoísmo.
Uma
coisa é a responsabilidade colectiva, do governo, dos partidos, das corporações
da saúde e outra é a das pessoas. Por muito que se possam tomar medidas — e o
Governo é o principal responsável por essas medidas —, o controlo da pandemia
só vai ser possível com duas coisas — responsabilidade individual e vacinas.
Vacinas é uma questão de tempo, um ano talvez, até começarem a ter um papel.
Mas a responsabilidade é para agora, não tem tempo para ser adiada.
O
caos da resposta governamental, por exemplo, com as excepções aos ajuntamentos,
acentua a desresponsabilização. O único ajuntamento que deu polémica foi o da
Festa do Avante!, mas não foi a covid que esteve nas preocupações dos que se
indignaram em alta voz, foi ser o PCP o alvo. Aliás, as comparações entre o que
o Governo estava a permitir em eventos laicos de carácter político eram sempre
contrastadas com as proibições que afectavam eventos religiosos, missas,
Fátima, agora o Dia de Finados.
Não
é uma comparação inocente. Depois, foi o laxismo em eventos desportivos de que
o melhor exemplo, pela sua dimensão, foi a Fórmula 1 em Portimão, que serviu
logo a seguir de justificação para os ajuntamentos para ver as ondas gigantes
na Nazaré. O raciocínio justificativo é este: “Então se se pode juntar milhares
num autódromo, porque não para ver a fúria do mar?” Ou seja: faço que me
apetece.
Acresce
que, como toda a gente sabe que não será penalizada pelo seu comportamento
individual, se alguém tiver sido infectado numa festa estudantil ou a ver as
ondas, e que em particular não verá barrada a sua entrada num hospital e o
acesso aos tratamentos, muitas vezes caríssimos, pagos por todos nós, o
sentimento de impunidade aumenta.
Se
Portugal tivesse uma cultura de responsabilidade, seria possível decidir
excepções caso a caso, como seria racional, em função dos interesses em causa,
do valor e do retorno do que se permite. Mas, cá, isso apenas serve para justificar
a asneira, quer de quem decide, quer de quem encontra aí uma justificação para
o seu egoísmo. Por isso sobram apenas dois métodos: ou proíbe-se tudo sem
excepções ou permite-se tudo. Nenhuma das opções vai acontecer, pelo que vai
continuar o caos.
Muitos não estão a fazer a sua parte de comportamento
responsável; por isso, precisam que se lhes fale grosso e feio. Fazer isso é
também uma questão de responsabilidade individual
Valorizar
o papel da responsabilidade individual significa desresponsabilizar o Governo?
Nem pensar. Trata-se apenas de falar de duas coisas que deveriam ser
complementares e que não se substituem uma à outra. Pode-se vociferar contra o
Governo todo o dia, e a maioria das vezes com muita razão, mas nenhum governo
pode controlar uma pandemia com estas características de facilidade de contágio
e proximidade sem que os cidadãos assumam sua parte de comportamento
responsável.
E a
verdade é que muitos não o estão a fazer; por isso, precisam que se lhes fale
grosso e feio. Fazer isso é também uma questão de responsabilidade individual.
*Historiador
- Público de 31.10.2020
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