Caro Leitor: o texto que aqui se publica da autoria do Jornalista Nuno Pacheco, convida-o a reflectir e a tomar parte na critica que o autor faz a certos modismos linguísticos, os quais, só empobrecem a nossa Língua.
O caso mais visível, mais emblemático das questões levantadas no texto, é o caso do vocábulo "resilência". O falante de português parece ter esquecido ou, posto na prateleira do esquecimento, a palavra "resistência." Na verdade, há um uso e um abuso desmesurado do vocábulo "resilência" que já causa saturação a quem o ouve e o lê nos Média .
E a propósito de anglicismos, parece que ninguém quer fazer um mínimo de esforço para encontrar os correspondentes em português. Vejamos dois exemplos: o "Task-Force e... ultimamente até o "Drive-thru ( o que apetece dizer: directamente importado do Mac-Donald, não? comprar o produto sem sair do carro. Literalmente: "através do carro".
safa! que já cansa tanta falta de respeito à nossa bela Língua!
Leia o texto de Nuno Pacheco que na minha opinião vale a pena, pois o Leitor vai reconhecer a sua indignação, ao identificar-se com o conteúdo.
Recepcionou
suporte para experienciar a sua resiliência?
Por Nuno Pacheco*
É habitual, e é verdade, dizer-se que
as línguas evoluem, que vão absorvendo novos termos, ou dando significados
novos a palavras antigas (como documentam, aliás, os dicionários, desde as
edições mais vetustas às actuais), mesmo contra o gosto e a vontade de
filólogos e linguistas. Mas há, como sempre houve, “modas” que não correspondem
a qualquer evolução, antes a um retrocesso, até porque afectam a clareza do
discurso. Há dias, no PÚBLICO, Manuel Monteiro (autor, revisor e formador de
revisão de textos) alertava para o abuso da palavra “colocar”, em vez de,
simplesmente, “pôr”. “Coloque-se na fila” em vez de “ponha-se na fila”, por
exemplo.
Mas há mais palavras que têm vindo a
substituir, automaticamente, outras bem mais simples, e muitas vezes sem
atender ao seu real significado. Por exemplo: agora já não se recebe nada,
recepciona-se (ou “receciona-se”, usando o estranho termo que o Acordo Ortográfico
de 1990 inventou só para Portugal e que mais ninguém usa); e também não se
percebe nada, percepciona-se; quanto a viver, começa a ser raro, hoje
vivencia-se; a palavra entender vai pelo mesmo caminho, substituída pelo
anglicismo realizar; gerir, então, surge cada vez mais como gerenciar; coisa
rara é também experimentar, já que a moda é experienciar (outro escusado
anglicismo); e se precisamos de apoio nalguma coisa (como apoio técnico), o
mais certo é darem-nos suporte. Os acontecimentos vividos passam a
acontecimentos “vivenciados” e as experiências de qualquer tipo hão-de ser
“experienciações” ou “experienciamentos” (sabe-se lá o que o futuro nos
reserva).
O que se ganha com tais trocas? Mais
letras, mais sílabas, menor clareza. Imaginem estas frases, caso tais modas se
tornem regra: “Já experienciou o bife da casa? É muito bom!” Ou: “Posso
experienciar este par de sapatos?”; “Recepcionou o meu livro? Percepcionou o
que escrevi?”; “Como vivenciou a sua semana de férias?”; “Concederam-lhe o
suporte que solicitou?”; “Quem está a gerenciar esta loja?”; “Explicaram-me
tudo, mas não realizei o que queriam dizer”. Ou, como ironicamente sugere
Manuel Monteiro no seu texto, “Posso colocar-lhe mais vinho no copo?”,
concluindo: “Só me resta desejar que o ‘pôr-do-sol’ não se transforme no
‘colocar-do-sol’. E que quem citar Camões não diga que Inês estava linda
COLOCADA em sossego.”
Convém notar que, exceptuando
“realizar” no sentido de “entender”, tais termos existem e os que não constam
de dicionários portugueses já ganharam registo no Brasil, como “experienciar”
ou “gerenciar”. A TAP, por exemplo, tem uma página em português do Brasil (e
ali escreve, como deveria, “registre-se” por “registe-se” e “planejar” por
“planear”) com o título “Preparar e gerenciar viagem”; e há no Brasil uma
agência de turismo intitulada “Vivenciar” e frases do género “Vem vivenciar
grandes momentos com a gente!”. Mas também por cá se apela a “vivenciar
momentos únicos”, como se lê na página da Câmara de Vila Nova de Gaia. Será mesmo
atendendo ao significado da palavra? Ou será “vivenciar” “mais giro” do que
“viver”?
É porque convém sempre atender ao
contexto. Não é a mesma coisa afirmar, em Portugal, “eu não apoio esse
candidato” [não lhe dou aval] que “eu não suporto esse candidato” [não posso
nem vê-lo]; tal como não é igual afirmar “vivi não sentindo que vivi” ou
“vivenciei não sentindo que vivi”, porque “vivenciar” significa, segundo a
generalidade dos dicionários, “viver algo, sentindo intensamente”. Mas será
mesmo isso que querem dizer os que usam e abusam de tal palavra?
O pior não é ouvir e ler
‘resiliência’ a torto e a direito; o pior mesmo é vê-la escrita e ouvi-la onde
devia estar ‘resistência’
Nesta moda entra ainda a palavra
“resiliência”. Há umas décadas, os dicionários em Portugal só registavam o seu
sentido na Mecânica ou na Física. A edição de 1981 do Grande Dicionário da
Língua Portuguesa (de José Pedro Machado) falava apenas em “valor ou número
característico da resistência ao choque de um material e que representa a
energia absorvida pela rotura de uma barra de secção unitária”; e o Dicionário
da Academia das Ciências até ignora a palavra (passa directamente de
“resignatário” para “resina”, pág. 3217). Mas, seguindo o inglês “resilience”,
outros acrescentaram-lhe um novo sentido, figurado: “Capacidade de superar, de
recuperar de adversidades” (Priberam), “Capacidade de se recobrar facilmente ou
se adaptar à má sorte ou às mudanças” (Houaiss), “Capacidade de defesa e
recuperação perante fatores [sic] ou condições adversos [sic]” (Infopédia, que
lhe acrescenta ainda significados na Ecologia e na Psicologia).
O pior não é ouvir e ler
“resiliência” a torto e a direito; o pior mesmo é vê-la escrita e ouvi-la onde
devia estar “resistência”. E são tantas vezes! Assim haja “resiliência” para
suportá-las.
*Jornalista – In “Público” de
08 de Julho de 2021
0 comentários:
Enviar um comentário