Caro Leitor, a entrevista
aqui transcrita versa um tema ainda muito complexo e polémico que é a Guerra
colonial.
O Historiador e
politólogo António Costa Pinto, traz-nos à memória ou à reflexão actual a sua
assisada e ponderada visão sobre um acontecimento – 60 anos passados – que marcou
e marca de forma indelével a História comum de Portugal e das suas ex-Colónias, do
século XX.
António Costa Pinto – entrevista ao “Público” (19.07.21) conduzida por Ana Sá Lopes
60 anos da guerra colonial (I)
Com a entrevista ao
historiador António Costa Pinto, o PÚBLICO inicia uma série sobre o Fim do
império português e os 60 anos do princípio da guerra colonial. O investigador
explica por que é que o luso-tropicalismo está profundamente enraizado na
sociedade portuguesa e nas suas elites políticas.
Ana Sá Lopes (texto) e Daniel
Rocha (fotografia)
António Costa Pinto
investiga há longos anos os sistemas autoritários. Em o O Fim do Império
Português, reflecte sobre vários aspectos da guerra colonial. Com esta
entrevista, o PÚBLICO dá início a uma série evocativa dos 60 anos do início da
guerra colonial, para a qual convidou 12 historiadores a escrever sobre o
período traumático que só terminou com o golpe de Estado do 25 de Abril. Costa
Pinto desmonta o mito do “orgulhosamente sós” enunciado por Salazar — o apoio
internacional a Portugal não era insignificante — e fala sobre como o luso-tropicalismo
foi adoptado pela sociedade portuguesa e por todas as instituições políticas.
Sessenta anos depois do início da Guerra
Colonial, já conseguimos falar sobre todo o processo?
Já
conseguimos falar, e até já há bastante tempo. Durante a transição democrática,
esteve mesmo no centro, com a descolonização. Simplesmente, o tema da guerra
colonial na sociedade portuguesa contemporânea diz-nos mais sobre o presente do
que sobre o passado. Mais de quatro décadas passadas sobre a descolonização, há
uma procura cultural de memória sobre o passado colonial. As democracias, e a
portuguesa não podia faltar à regra, discutem o seu passado através daquilo a
que chamamos políticas e erupções da memória, muitas vezes fenómenos de
contágio a propósito de dimensões mais globais que “activam” a memória e
provocam muitas vezes debates na opinião pública. Em alguns casos, mesmo acção
política. Mas o tema da guerra colonial e do sistema colonial, com altos e
baixos, tem sempre marcado e vai continuar a marcar Portugal, até por uma razão
simples: a identidade nacional e o espaço político pós-colonial são
determinantes na esfera pública em Portugal. Faça uma análise de conteúdo, por
exemplo, dos meios de comunicação social: há um ataque terrorista de
fundamentalistas islâmicos no Norte de Moçambique e o espaço público e as
instituições integram automaticamente este acontecimento com uma proximidade
simbólica impressionante. Bastava ser 40 quilómetros a norte da fronteira de
Moçambique com a Tanzânia e nem uma linha existiria. Existe um espaço público
pós-colonial na sociedade e uma política da sua elite que, passados quase 50
anos sobre a descolonização, está muito presente.
Em vez de uma ruptura, fizemos uma
transição?
Voltaremos sempre ao mesmo tema, que é muito
importante na construção da opinião pública sobre o tema da guerra colonial e
do império colonial. A democracia portuguesa ajustou contas com o passado
ditatorial. De uma forma, aliás, relativamente radical, quer sob o ponto de
vista simbólico, quer efectivo. A transição portuguesa utilizou quase todos os
meios conhecidos na década de 1970 para tentar erradicar o passado autoritário:
saneamentos, exílios da elite política, julgamentos da polícia política,
alterações da toponímia, etc. E tudo isso foi acompanhado por um discurso de
rejeição do passado ditatorial. A democracia portuguesa, ao contrário de muitas
outras, construiu-se tendo como elemento central de legitimação a rejeição do
passado ditatorial. As próprias instituições políticas criaram modelos
comemorativos oficiais de rejeição do passado que, aliás, até tiveram efeitos
duradouros. Mas não ajustou contas com o passado colonial por razões óbvias,
pelo facto de os libertadores terem sido simultaneamente os agentes militares
da guerra colonial. E ainda por cima com o trauma daqueles que regressam das
colónias após a descolonização e de o próprio processo de transferência de
poderes para os movimentos de libertação ter sido feito numa conjuntura de
grande crise em Portugal. Quando se dá a consolidação democrática, o clima
político é de reconciliação e mesmo tentativa de esquecimento, não sendo
propício ao tema. Aliás, a activação política dos retornados e da nostalgia
colonial à direita foi um falhanço. Acresce que a adesão à União Europeia como
destino pós-colonial foi um sucesso da elite política democrática portuguesa.
Mas a guerra não foi mais traumática do
que a ditadura?
A
guerra colonial teve algumas características importantes. Em primeiro lugar,
foi uma guerra desencadeada por um regime autoritário. Outros sistemas
coloniais sofreram guerras coloniais que tiveram efeitos traumáticos: a guerra
da Argélia foi traumática para França. Na Holanda, a guerra na Indonésia foi
dramática. Mas eram regimes democráticos. Os regimes autoritários não só têm
uma decisão política unificada como conseguem inicialmente eliminar a
diversidade não apenas ideológica, mas de interesses, e há sempre interesses
organizados que não apostariam numa guerra colonial. Ora, o salazarismo
conseguiu alguns “feitos” muito interessantes e alguns que ainda me despertam
vontade de investigar. Em primeiro lugar, a resistência da elite militar após a
tentativa de golpe de Estado de Botelho Moniz representou uma vitória de
Salazar, e uma enorme capacidade de mobilização da Forças Armadas Portuguesas,
conseguindo controlar a elite militar e colocá-la em três frentes de combate
com razoável sucesso ao longo da década de 60. Quando a vaga de emigração para
a Europa ameaça a gigantesca mobilização jovem para a guerra, a “africanização”
foi também um sucesso com 50% recrutados localmente. A sociedade portuguesa dos
anos 60, com o crescimento económico, já tem muito mais que ver com a Europa do
que com as colónias, mas aquilo a se pode chamar “modernização autoritária”
marcou um real desenvolvimento das duas principais colónias em guerra: Angola e
Moçambique. E aqui entramos no dilema da informação nos regimes autoritários. É
natural que os milhares de brancos que vão ou ficam em África aproveitando este
desenvolvimento sofressem assimetrias de informação, mas o mais interessante
analiticamente é que até alguns grandes grupos económicos portugueses
investissem no mesmo processo, eles que já tinham informação bem mais global.
Perdendo tudo dois ou três anos depois. O trauma está longe de ser apenas o da
experiência de guerra.
Nos anos 70, o regime estava a perder a
guerra da Guiné…
Já lá
vamos. A guerra colonial — ou as guerras coloniais, porque os contextos são
diferentes — foram guerras relativamente ‘low-cost’, em que a ditadura
consegue, no fundamental entre os seus aliados, material militar e tecnologia
que lhe permitem resistir com uma segurança bastante razoável. A história
inicial dos movimentos independentistas é complexa e a sua transformação em
organizações armadas com as inerentes tensões internas e com os países que lhes
servem de base também. Os movimentos de libertação lutam também com grandes
dificuldades para conseguirem o apoio dos países vizinhos e obter armamento dos
seus aliados. Na maior parte dos casos, os movimentos de libertação tinham uma
capacidade relativamente limitada. Como é evidente, a grande opinião pública do
presente e inclusivamente alguns estudiosos-activistas olham o passado com os
olhos do presente. E têm a ideia de que [a derrota] era inevitável. Claro que
as guerras coloniais são guerras perdidas sob o ponto de vista do colonizador.
Mas o mais interessante analiticamente não é isso. Antes pelo contrário. É
encontrar os factores de explicação para a resistência à descolonização da
ditadura, à medida que a sua elite ia observando o fim, um após um, dos
restantes impérios coloniais.
Mas a Guiné-Bissau…
A
Guiné-Bissau é um caso extremamente interessante porque o início do fim do
regime remete para uma alteração no âmbito da Guerra Fria que não é facilmente
explicável pelo facto de o PAIGC ter obtido justamente mísseis que a tecnologia
militar portuguesa não dispunha, mas que estavam à data do 25 de Abril na
República Federal Alemã à espera de chegarem a Portugal. A pressão
internacional mais forte para a descolonização de Angola veio da administração
Kennedy e foi curta. Quando acontece a “conjuntura crítica” da chegada de
Marcelo Caetano ao poder, com um poder autoritário mais vulnerável, Nixon tinha
outras preocupações. As alianças secretas com a África do Sul expressam já as
dificuldades do regime. Mas não vale a pena divulgar um modelo simplista a
preto e branco. Quer de um lado quer do outro havia grandes limitações. A
investigação já realizada aos consultores e formadores cubanos assim como os
documentos que temos da URSS expressam cepticismo em relação à capacidade
militar destes movimentos.
No seu livro O Fim do Império Português,
desmonta o mito do “orgulhosamente sós”. Portugal tinha o apoio de vários
aliados…
Na
década de 60, vivemos em guerra fria. Portugal é um aliado menor do bloco
ocidental, que tem uma capacidade de negociação com a principal potência, os
Estados Unidos, que é a utilização da base dos Açores e vai-se aguentando bem
com os europeus.
O “escudo protector”…
Os
relatos da NATO são muito interessantes. É uma ditadura que tenta estender a
NATO ao Atlântico Sul para incluir as colónias portuguesas e é evidente que os
países da NATO não autorizam… Mas há uma célebre frase de um embaixador
americano que, quando ouvia as críticas ao colonialismo português, dizia sempre:
“Vamos deixar isso aos dinamarqueses!” A pressão descolonizadora dos países
aliados não foi grande até ao 25 de Abril. Há dois episódios interessantes
sobre a relação da resistência do colonialismo português e a principal
potência. Kennedy, durante um curto período, realiza efectivamente uma pressão
descolonizadora sobre a ditadura e seria muito interessante ver quais teriam
sido as consequências se tivesse conseguido.
Terá sido o massacre de Wyriamu que muda
alguma opinião internacional?
A
dimensão internacional da guerra colonial portuguesa tem alguns pontos de
condenação. No seu início, em 1961, com Angola e as condenações das Nações
Unidas, mas sobretudo com o aparecimento do bloco afro-asiático. Em segundo
lugar, e talvez seja o ponto mais importante, com a decisão de os novos países
independentes limítrofes das colónias portuguesas oferecerem o seu território
como base para os movimentos de libertação. E depois o que poderíamos chamar
uma dinâmica muito importante dos anos “60 globais” que representa a emergência
de uma opinião pública, da sociedade civil dos países desenvolvidos da Europa
ocidental, dos Estados Unidos, de saliência do chamado “Terceiro Mundo”, das
lutas de libertação e obviamente da descolonização. Muito do que vamos assistir
nos países nórdicos, na Dinamarca, em França, na Inglaterra, remete para essa
dinâmica. Mas não vale a pena exagerar. As guerras coloniais da ditadura em
África são guerras relativamente secundárias e com escassa saliência na arena
internacional dos anos 60.
Já disse que o luso-tropicalismo não foi
apenas um sucesso do salazarismo e que foi transposto para a cultura política
das elites e das massas da democracia. Ainda é dominante?
O tema
do luso-tropicalismo é muito interessante. Está hoje na arena das “guerras
culturais” em Portugal, muitas vezes associado ao voluntarismo dos estudiosos e
activistas em desfazer esse mito (porque é um mito). E porque tem sido activado
politicamente, associado à chegada a Portugal de dimensões mais globais sobre
as políticas da memória, sobre o racismo dos sistemas coloniais, sobre o
racismo estrutural das sociedades democráticas contemporâneas. Mas o luso-tropicalismo
é um tema que os “guardiões da memória”, pese embora a sua importância, não vão
resolver nem de longe nem de perto. Uma nova consciência democrática para
Portugal em relação ao passado pede um número muito maior de actores, desde
logo os principais atingidos, o que ainda não é o caso.
O luso-tropicalismo é
um tema que ‘os guardiões da memória’, pese embora a sua importância, não vão
resolver, nem de longe nem de perto.
Porquê?
O luso-tropicalismo
é muito enraizado não apenas nas elites, mas também na sociedade. O facto de se
ter uma consciência implícita na sociedade portuguesa de que o império colonial
português foi algo que se tentou fazer sempre diferente porque era contra a
ameaça das outras potências coloniais. Em segundo lugar, porque os grandes
realizadores dos mitos coloniais portugueses foram genuínos republicanos
liberais de finais do século XIX, início do século XX. Convém não esquecer que
a maior parte dos críticos da chamada oposição democrática, praticamente até
aos anos 60, eram colonialistas antiautoritários. Ou seja, criticavam o modelo
colonial do Estado Novo, mas não eram a favor da descolonização. E, em terceiro
lugar, e eu creio que é este o factor mais importante, a elite política
democrática — todos os partidos políticos da direita à esquerda que governaram
Portugal a seguir ao 25 de Abril — fez uma política de reconciliação com os
movimentos de libertação dos novos países africanos de expressão portuguesa.
Repare-se: a descolonização portuguesa comporta uma ironia espantosa. A
resistência à descolonização de uma ditadura nascida na época do fascismo, que
faz da questão colonial o factor mais importante da sua identidade autoritária,
termina em colapso, e uma transição democrática, em plena guerra fria,
transfere imediatamente os poderes para movimentos de libertação que são
formalmente socialistas. Uma ditadura que se pretende legitimar pelo facto de
estar a lutar contra o comunismo em África… Não houve nenhum outro sistema
colonial europeu em África que, de uma assentada, transferisse o poder para
novos regimes de tipo socialista, com grande identidade entre si, repare-se. De
S. Tomé a Moçambique, os novos regimes são muito semelhantes em 1976.
O luso-tropicalismo
está muito enraizado não apenas nas elites, mas também na sociedade (...). Se
fizer uma análise dos discursos da elite política, da esquerda à direita, há
uma escassa activação política do tema.
Isso tem que ver com a revolução que se
declarou socialista?
A
democracia portuguesa foi consolidada em 1976 e foi uma democracia de guerra
fria, que se impôs contra o legado de 1975. Mas a elite política democrática
conseguiu, com sucesso, estabelecer uma relação pós-colonial de colaboração com
os países africanos de expressão portuguesa. Este factor é muito importante
para explicar porque não é fácil, em cada guerra de memória, convencer a elite
política a ajustar as contas com as dimensões do passado colonial e da guerra.
Repare-se: se fazer uma análise de conteúdo aos discursos da elite política
portuguesa, do Partido Comunista à direita democrática, passando pelo Partido
Socialista, o que observamos é uma escassa activação política do tema. Este é
espoletado politicamente por activistas, às vezes académicos, no espaço
público, mas repare na resistência dos partidos políticos a abordar esse tema.
Estamos a falar tanto da guerra como do
luso-tropicalismo?
Da
guerra colonial e do luso-tropicalismo. O que é que a elite política, da
esquerda à direita, não nos diz oficialmente, mas diz em particular? Se os
portugueses acham que não são racistas e que o império colonial português não
foi tão mau como os outros, sob o ponto de vista da qualidade e do funcionamento
do sistema político democrático, não vamos fazer guerras de memória. Isto não é
o que eles nos dizem publicamente — dizem em off the record.
Esse debate nunca se vai fazer?
Esse debate está a fazer-se, mas tem muitos
actores. A esfera pública é composta por muitas instituições e não apenas pelo
activismo académico-cultural. Por exemplo, as Forças Armadas e o cultivar da
memória dos antigos combatentes, com dezenas de monumentos em cada vila de
Portugal. A memória familiar dos retornados e dos portugueses de origem
africana e indiana que os acompanharam. A memória terá de ser sempre num regime
democrático um tema de activação política de diversas memórias. Há as memórias
familiares dos retornados, as memórias dos militares consagrados nos monumentos
aos antigos combatentes, as memórias de vocabulário — ultramar versus colónias,
e por aí adiante. Até agora, a resposta ao activismo de esquerda
radical-cultural era o silêncio. Agora, com um partido de direita radical
populista, a cada dinâmica de activação da memória simbólica deste sector,
vamos ter a activação de uma memória pós-colonial luso-tropicalista.
Aparentemente, vai ser o caso na sociedade portuguesa, mas creio que será um
fenómeno minoritário e com escassa mobilização social.
António Costa Pinto “Não
é fácil convencer a elite política a ajustar contas com o passado colonial”
Como viu o discurso do
Presidente no 25 de Abril?
O
discurso do Presidente cumpriu duas funções: em primeiro lugar, tentou, o que
não é fácil, ocupar o espaço político dos conflitos memoriais, reconhecendo os
crimes do colonialismo, mas simultaneamente, defendendo um modelo de
reconciliação e superação. Marcelo é um político que provém do centro-direita e
esse discurso foi muito importante. Basta comparar com os do seu antecessor.
Ele abre espaço e legitima uma memória oficial efectiva, mais de acordo com os
valores democráticos e do humanismo liberal.
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