Foi a brincar… o Carnaval?

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

 



Na Quarta-feira de Cinzas, recebi uma mensagem da minha irmã mais nova, que me perguntava: “quando é que vestir de Mandinga no Carnaval, vai virar politicamente incorrecto?” (sic)

Por sinal, este assunto já mereceu um pequeno texto neste blog há já algum tempo.  Além disso, o escritor angolano Eduardo Agualusa já havia revelado também o seu espanto (leia-se: a sua indignação pelo facto).

Porém, podem trazer as justificações que quiserem, e acharem por bem, mas que não é correcto, já não é! Até, atendendo aos valores que mais tarde abraçámos e que dizem respeito à forma como hoje encaramos o Continente africano. Estamos em pleno século XXI os valores serão outros e o convívio com culturas e com povos diferentes deverão basear-se no respeito mútuo.

Na minha opinião, ao se proceder assim pelo Carnaval, poderá revelar e significar uma grande falta de respeito por uma etnia populosa, um grupo humano, transnacional que vive na Guiné-Bissau, na Guiné-Conacri, no Níger, no Senegal, no Mali, no Burkina Fasso, entre outras regiões do Continente africano. E mais, alguns imigraram para Cabo Verde. Estão cá, vivem entre nós, em número assinalável, vêem e possivelmente, sentir-se-ão magoados por um grupo carnavalesco os caricaturar. Acham bem? Que gozemos connosco mesmos, com os das ilhas, até é bom, é salutar, e revela inteligência! Façam isso. Agora, coisa outra e bem diferente é “gozar” com uma comunidade estrangeira e que está ainda por cima, entre nós a viver imigrada nas ilhas.

Daí ter sido pertinente, a pergunta da minha irmã:  “Quando é que vestir de Mandinga no Carnaval, vai virar politicamente incorrecto?”

 Uma situação que também foi igualmente criticada - como já aqui referi - na frase bem achada de Agualusa que terá dito, algo aproximado, quando assistiu ao desfile dos blocos de Carnaval no Mindelo: “Negros, pintados de preto" e a troçar do mandinga? Já não me recordo exactamente das palavras proferidas pelo escritor, (Li-as num livro de Crónicas do escritor, intitulado «Paraíso e Outros Infernos» há já algum tempo) mas terá sido com esse sentido, a imagem por ele definido.

Bem sei que o não fazem conscientemente, por mal. Na realidade, em São Vicente, houve um facto, que levou ao aparecimento deste bloco carnavalesco.

Conta-se que na década de 40 do século XX, terá passado por Mindelo, a bordo de um dos barcos que à época fazia a carreira – Bissau – Praia – Mindelo – Funchal e Lisboa, um grupo de guineenses da etnia mandinga que viajava para Portugal, com a finalidade de ser apresentado naquela que foi a grande Exposição do “Mundo Português” em 1940 e que decorreu em Lisboa.

Ora bem, - vamos imaginar o que terá acontecido - os integrantes do grupo desembarcaram com a sua vestimenta tradicional e terão percorrido a cidade do Mindelo, alguém, um local, tê-los-á observado e terá tido a ideia de gozar com eles, naquele jeito que era bem mindelense de tudo, ou quase tudo caricaturar, mascarando pelo Carnaval um grupo. Acredito que na altura  deve ter tido muita piada.

Deste facto terá ficado a tradição de, anualmente, e durante os festejos carnavalescos, desfilar o bloco dos “Mandingas”, mas já é mais do que tempo de se atinar no significado disso, à luz da actualidade, ou seja, de se pensar que fazendo isso se pode estar a ofender uma comunidade viva.

Pois bem, todos sabemos que o Carnaval é uma festa para brincar, para se satirizar, troçando de factos do quotidiano, de assuntos sociais na moda, e de fazer galhofa com figuras políticas ou históricas, antigas e actuais e Mindelo sabe fazê-lo, para além dos belíssimos desfiles de foliões e das alegorias  a que já nos habituou  entre outras formas de brincar ao Rei Momo que é o Deus da sátira e do riso. Bem-haja o Carnaval!

 Mas passados 83 anos, e tendo em conta que Cabo Verde comunga hoje de outros valores e que possui um outro olhar sobre o Continente africano, não devia caricaturar - ainda que seja naquela toada de que “é Carnaval não se leva a mal” - uma comunidade, da qual, parte dela encontra-se imigrada neste Arquipélago.

Sei que é uma opinião, e que vale exactamente apenas isso. Outros, analisarão e abordarão o facto de maneira diferente.

 

 

 


1 comentários:

Adriano Lima disse...

O "fenómeno mandinga" é coisa recente e mais produto de exploração comercial do que expressão de uma autenticidade. Lembro-me de que antigamente era uma manifestação que se limitava a uma ou duas pessoas. Reconheço que talvez não faça qualquer sentido e é susceptível de criar ressentimentos nas comunidades da África ocidental que vivem em Cabo Verde. Satirizar tem de ter em conta os limites impostos pelo bom senso e respeito pelo outro.
Aliás, sem o pretender, os promotores e organizadores da iniciativa podem estar a suscitar sentimentos racialistas. O racismo é um fenómeno que no plano biológico parece comum a todo o Homo sapiens, consistindo basicamente em traduzir uma reacção ao que é diferente. Diferentes são as suas implicações no plano social. Não se pode afirmar que o cabo-verdiano, povo de etnia africana na sua procedência, não seja racista no plano biológico. Lembro-me de que, por volta dos meus 10 ou 11 anos, uma selecção de futebol de um país da África ocidental (creio que da Gâmbia) foi a S. Vicente disputar uma eliminatória com a selecção cabo-verdiana. Vinha eu da escola e reparei que os rapazes da equipa visitante foram em conjunto dar um passeio pelas ruas da cidade, enquadrados pelos seus dirigentes. Os atletas eram de um fenótipo que os diferenciava do cabo-verdiano comum: eram bem mais escuros de pele e muitos eram bastante altos e esguios. Reparei que raparigas do povo que com eles se cruzaram (algumas com latas de água à cabeça) riam-se e troçavam deles, inclusive com gritinhos soezes. Os rapazes reagiam rindo com discrição, aparentemente sem levarem a mal. Mas na minha cabecinha de criança tive o primeiro contacto com uma atitude de suposta natureza racista. Os tempos evoluem e hoje vivem em Cabo Verde muitos emigrantes chamados "manjacos" de tipo semelhante ao dos rapazes daquela equipa de futebol visitante, e idêntico fenómeno provavelmente não acontece.
Pois bem, tudo isto para sugerir que talvez seja conveniente rever o espectáculo mandinga do nosso Carnaval.

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