sábado, 31 de maio de 2025

 

 

Por ocasião do 1º Fórum Mulher e o Desenvolvimento.

 Praia, Cabo Verde, 29, 30 e 31 de Maio de 2025.

A Homenagem a 50 mulheres. O número escolhido coincidiu com a comemoração dos 50 anos de independência de Cabo Verde

 

Antes de mais permitam-me em nome das homenageadas, e em meu nome, expressar o nosso agradecimento pela honrosa distinção que aqui nos foi conferida.

Creio que nós, as homenageadas sentimo-nos e apercebemo-nos como parte de uma comunidade que aqui representamos - as mulheres destas ilhas – e que ainda tem um enorme caminho a percorrer, com inúmeros desafios à espreita, para a realização do seu potencial de cidadania efctiva,

O facto de coincidir com os cinquenta anos da independência deste país arquipelágico e parte integrante dos arquipélagos da Macaronésia, carreia a homenagem de um simbolismo singular no percurso social, familiar da mulher cabo-verdiana. Aproveitaria a oportunidade para recordar que um dos primeiros projectos realizados no pós-independência em 1977, foi dirigido especificamente à mulher. Refiro-me à Protecção materno/Infantil, ao Planeamento Familiar, mais conhecido pela sigla PMI/PF da cooperação sueca ao tempo, realizado com a Agência sueca para o Desenvolvimento Internacional, cuja sigla era ASDI. Um projecto de longo alcance que melhorou significativamente a condição materna da mulher cabo-verdiana.

Logo, e doravante, a saúde reprodutiva da mulher passou a ser cuidada por profissionais da Saúde e ela ficou menos ocupada e preocupada, com as questões de saúde dela e a dos filhos.

Ora bem, mais tarde, com o “boom” das construções de escolas básicas perto dos aglomerados populacionais, tornaram interessante as estatísticas escolares pois que revelararam que no nosso caso específico, a parte feminina da população, bem cedo, foi e é afinal, percentualmente mais numerosa nas escolas do que os rapazes e assim tem sido desde aí. A parte escolar feminina representa 52% e a contraparte masculina 48%. Aliás, não sou eu que o digo, isto está confirmado, creio eu, pela UNESCO. E esse percentual feminino mais numeroso, repercutiu-se tanto no ensino secundário, como no ensino superior.

Ora, aí está o quão importante é a Educação da mulher para a sua construção como Ser pensante, e cidadã activa, através do saber, e do saber fazer. E aqui chegados, falamos em escolhas da mulher e na contribuição que ela vem dando no desenvolvimento sustentável do nosso país. Elas são hoje, empresárias de sucesso, comerciantes dinâmicas, estão na indústria, no Turismo, na hotelaria, na restauração, no desporto; são Quadros superiores e Quadros dirigentes da Educação e da Saúde, da Administração pública e privada, são membros do Governo, Deputadas no Parlamento, nas autarquias. Enfim, os patamares hoje alcançados pela mulher cabo-verdiana, situam-na em lugar honrado, como sói dizer-se.  

Mas mais, com o advento da democracia, 1990, para além de ter ganho, tal como a sua contraparte masculina, o direito à livre escolha através do voto, dos seus representantes no parlamento, e nos outros órgãos de soberania, e nas autarquias; a mulher concorreu também, ao lado do homem para a edificação democrática do país, como sujeito-activo para o implemento e o sucesso do processo democrático, nestas ilhas atlânticas.

Mas meus senhores e minhas senhoras, este retrato quase perfeito que aqui apresentei, tem também, e infelizmente, o seu negativo. Refiro-me às mulheres que vivem e sofrem no meio da violência, às mulheres chefes de família numerosa, monoparental, pobres e iletradas que constituem uma ainda muito significativa, franja populacional do país, que estão muito longe das luzes que o desenvolvimento traz. Elas são também nossas companheiras nesta jornada que aqui celebramos e necessitam com premência de um olhar muito atento das instituições governamentais e as da sociedade civil cabo-verdiana para se tornarem igualmente cidadãs activas e contributivas para o desenvolvimento sustentável do nosso país.

Nesta linha, aproveitaria a ocasião para destacar o empenho e o trabalho dedicado das instituições e das Associações que um pouco por todas as ilhas, e com o foco na mulher, e na família, vêm fazendo para a valorização e para a participação cidadã da mulher oriunda da camada populacional mais desfavorecida.

E termino, reiterando os nossos agradecimentos enquanto homenageadas, à Organização do Fórum, por esta distinção que tocou e sensibilizou todas nós.

 

sábado, 17 de maio de 2025

 

Com a devida vénia ao autor, tomámos a liberdade de publicar este texto que aborda a importância que hoje é dada à qualidade da educação, nas instituições de ensino.

 

A educação é o motor das Sociedades

 

Por: Nuno Crato*

Ficamos contentes com o aumento da escolarização – e é justo que isso se faça. Mas poucas vezes pensamos na qualidade da educação. Que aprendem de facto os nossos jovens?

Há muitas décadas que se discute se a educação pode mudar as sociedades e, em particular, se é causa do crescimento económico. A resposta afirmativa era quase um dogma até que alguns sociólogos questionaram se não seria o contrário, se não seria o crescimento económico que permitiria a criação de um melhor sistema educativo.

Se foi o ovo se foi a galinha tornou-se um puzzle em que se digladiaram vários estudiosos. Os estatísticos não conseguiam sequer evidenciar a existência de uma correlação entre os indicadores educativos e o crescimento. As coisas mudaram na transição de século, quando alguns economistas de educação, um campo de estudo que começou a surgir, começaram a estudar outros indicadores. Em vez de estudar a escolaridade média da população, o número de estudantes, a redução do abandono escolar, a média de horas passadas na escola, o número de graduados e outras estatísticas, passaram a estudar indicadores cognitivos, isto é, o que os estudantes e os jovens tinham aprendido. Esta mudança tornou-se possível pela realização de inquéritos internacionais de larga escala, tais como os estudos PISA e TIMSS. Em termos simples, as coisas mudaram quando em vez de analisar a educação pela quantidade se passou a analisar a educação pela sua qualidade.

Os dados mostraram aquilo que até então tinha resistido à análise estatística. Ou seja, os dados de qualidade de educação explicam parte significativa do crescimento económico. Tudo indica que a qualidade da educação – não a sua quantidade – é importante fator de desenvolvimento.

Passaram quase três décadas desde que essa descoberta estatística começou a ser evidenciada e sucessivamente confirmada. No entanto, muitos de nós ainda pensamos em termos de quantidade. Ficamos contentes com o aumento da escolarização – e é justo que isso se faça. Ficamos contentes por saber que há menos jovens a abandonar os estudos – e também é justo que isso aconteça. Mas poucas vezes pensamos na qualidade da educação. Que aprendem de facto os nossos jovens?

Quando olhamos a educação nessa perspetiva, os dados recentes não nos devem satisfazer. Mais, devem-nos preocupar. Desde 2016 que todos os inquéritos internacionais aos conhecimentos e capacidades cognitivas dos nossos jovens mostram um declínio grave. As médias baixaram – e desde antes da pandemia – , e o número de jovens com deficiências cognitivas graves a matemática, leitura e ciências aumentou. E aumentou para níveis preocupantes. Cerca de 30% dos nossos jovens de 15 anos têm hoje um baixíssimo desempenho em matemática. Cerca de 23% dos mesmos jovens têm dificuldades extremas de leitura. Ou seja, uma percentagem grande dos nossos futuros adultos tem o seu futuro comprometido. Não nos deveria isso preocupar?

Perante esta realidade, há sempre coisas bonitas a dizer: tornar o ensino mais interessante, acelerar a digitalização, introduzir jogos nas escolas… pode não fazer mal…, mas não vai resolver os problemas. Enquanto as políticas públicas não regressarem a um tripé de medidas comprovadas, nomeadamente um currículo ambicioso, uma avaliação rigorosa e um apoio estruturados aos jovens com mais dificuldades, enquanto isso não acontecer, o progresso não se registará. E é possível fazê-lo? Sem dúvida! Foi o que fizemos desde princípio deste século até 2015, ano em que obtivemos os nossos melhores resultados de sempre nos inquéritos internacionais. Atentemos nesses anos e atentemos nos erros que de 2016 a esta parte se fizeram.

 

*Professor-Investigador e antigo Ministro da Educação de Portugal.

domingo, 11 de maio de 2025

 

Eis quatro poemas de Joaquim Saial.

Joaquim Saial para além de ser Historiador de Arte e da estatuária pública portuguesa e cabo-verdiana, é igualmente ensaísta, ficcionista e poeta. E é como poeta que hoje figura aqui, através dos poemas: “A Cidade que foi,” “A Loja,” “O Homem que escrevia para ser lido” e “Travessia do Tejo.”

Convido os leitores a lerem os poemas que se seguem com a convicção de que certamente apreciarão o lastro poético que os enformam, nos simbolismos, nas transfigurações e na beleza das descrições das gentes, das paisagens, dos ruídos e dos ecos e, das complexas singularidades do rio, da cidade e da loja.

É muito provável que, para os leitores que seguem este blogue, ele não careça de qualquer apresentação, uma vez que Joaquim Saial também tem um blogue muito conhecido – «Praia de Bote».

 

A cidade que foi

 

As janelas fecharam-se uma a uma.

Não há roupa a secar ao vento,

não há vozes a discutir nas varandas.

As portas trancadas não escondem segredos,

apenas o silêncio de quem partiu.

 

Onde antes se vendia café moído na hora,

onde as montras guardavam histórias,

há agora vis fachadas todas iguais,

e lojas sem nome, rosto ou alma.

 

Lisboa desfaz-se em hotéis sem memória,

onde ninguém chega para ficar.

Os que vinham para nela viver,

dão lugar a quem chega por três noites

e parte sem saber onde esteve.

 

Nas ruas, há filas para entrar,

repetidas nos museus e monumentos.

Há turistas a fotografar turistas,

olhares que se perdem em espelhos.

 

E Lisboa, aquela que era nossa,

tornou-se mero cenário,

tornou-se vitrine,

lugar onde já não se vive,

apenas se passa.

 

 

A loja

 

As portas abrem-se todas as manhãs,

pontualmente, sem pressa,

como se houvesse alguém do outro lado a esperar.

Mas ninguém espera.

Nem ontem,

nem há uma semana,

nem desde aquele dia que não tem data.

O sino, pendurado no alto da ombreira,

toca com o vento,

não com a entrada de pés humanos.

E mesmo assim ele sorri.

Sempre sorri.

Na montra, o reflexo do sol brinca

com o pó que se acumula em silêncio.

Ali não há promoções,

nem letreiros a gritar urgência.

Há apenas o espaço vazio,

entre o que é e o que poderia ser.

A loja tem prateleiras,

tem um balcão gasto por esperas antigas,

tem uma luz que vacila, mas nunca se apaga.

E ele tem o hábito de acender todas as lâmpadas,

de varrer o chão com esmero,

como se limpasse um templo.

Às vezes, fala sozinho,

não por loucura,

mas por amor às palavras

que ecoam melhor entre paredes caladas.

Quem passa, estranha.

Os olhos escorregam pela vitrina

como se procurassem sentido.

Mas ali, o sentido está ausente,

ou talvez demasiado presente.

Um dia, uma criança entrou,

perguntou o que havia para vender.

Ele respondeu:

“Tudo o que não se vê.”

E a criança saiu a sorrir,

sem nada nas mãos,

mas com os bolsos cheios de mistério.

Ele não quer fechar.

Não por teimosia,

mas porque há um fio invisível

que o prende à madeira da porta,

ao cheiro a tinta antiga,

à ranhura na parede que lembra uma árvore.

Houve tempos em que teve vizinhos,

outras lojas, outras vozes.

Agora, é o último.

O bairro mudou de pele,

mas ele ficou,

como uma ruga que resiste ao tempo.

À noite, senta-se num banco pequeno,

olha para os frascos vazios,

para as caixas sem rótulo,

e ouve, com atenção,

como se as paredes tivessem algo a contar.

E contam.

Histórias sem fim,

de gestos que nunca chegaram a acontecer,

de mãos que hesitaram na maçaneta,

de promessas que ficaram presas à entrada.

Não quer fechar.

Porque a loja é mais do que um lugar,

é um fôlego entre dois silêncios,

é um abrigo para o inútil,

para o sagrado,

para o que não precisa de nome.

Dizem que é um fracasso.

Que um negócio sem vendas

é um barco sem leme.

Mas ele sabe:

há ventos que sopram só por dentro.

No inverno, a loja cheira a madeira molhada,

no verão, a tempo parado.

E em todas as estações,

há um rumor de eternidade

a repousar nos cantos.

Ele espera.

Não por clientes,

mas por um instante.

O instante em que o mundo

perceba o valor

de uma loja que não quer vender

porque já tem tudo.

E quando partir,

ninguém herdará a loja.

Ela fechará sozinha,

como uma flor cansada.

Mas até lá,

permanece aberta,

para quem tiver olhos

e não apenas desejos.

 

O homem que escrevia para ser lido

 

Veio tarde,

como a chuva no fim de Agosto,

o dom de escrever.

Não lhe veio pelos livros,

nem por mestres ilustres,

mas por uma inquietação antiga,

calada por décadas

sob a rotina.

Viveu de ofícios sem nome,

de horas sem história,

de cidades onde ninguém o esperava.

Na velhice,

quando o corpo já era casa frágil,

as palavras começaram a bater à porta.

E ele abriu.

Começou com frases breves,

escondidas em margens de jornais,

em folhetos de supermercado,

em toalhas de café.

Não falava delas a ninguém.

Não por vergonha,

mas porque sabia

que o mais precioso nasce em silêncio.

Escrevia como quem pede perdão,

como quem regressa

a um sítio que nunca soube existir.

Não queria aplausos.

Não queria que o nome

brilhasse nas montras.

Dizia:

"A fama é uma luz que cega.

Prefiro ser lido na sombra."

Os outros achavam-no estranho,

velho demais para sonhos,

esquisito como um pardal

a cantar fora da estação.

Mas ele continuava.

 

Escrevia sobre gente comum,

sobre a vida que passa sem legenda,

sobre amores que ficaram por dizer

e saudades que nunca tiveram nome.

Deixava os textos em paragens de autocarro,

entre os livros das bibliotecas,

na caixa de correio de estranhos.

Nunca assinava.

Não precisava.

O que importava era ser lido.

Um parágrafo que tocasse alguém,

um verso que acendesse

o lume de uma dor adormecida.

Não vendia livros.

Recusava editores.

Oferecia palavras

como quem oferece pão.

Muitos riram-se dele.

Chamaram-lhe tolo,

poeta de becos,

escritor sem proveito.

Mas um dia,

uma criança leu um dos seus contos

num banco de jardim,

e sorriu pela primeira vez em semanas.

Noutra cidade,

uma mulher encontrou um poema

dentro de um livro usado

e chorou com gratidão desconhecida.

Ele não soube disso.

Mas continuava.

Porque acreditava

que a leitura é um acto sagrado,

e que ser lido — mesmo por um só —

vale mais do que um milhão de aplausos.

Viveu com pouco.

Morreu com menos.

Mas deixou sementes

onde poucos ousam semear.

Hoje, ninguém sabe o seu nome.

Mas há frases suas

penduradas no coração de quem leu.

E isso, para ele,

sempre foi suficiente.

 

Travessia do Tejo

 

O rio estende-se, largo e paciente,

como um cristal que guarda

os reflexos das margens inquietas.

Os cacilheiros deslizam,

pintando rastos brancos na água,

carregando histórias e silêncios,

passageiros apressados,

olhares que atravessam o tempo.

 

No alto, as pontes abraçam o céu,

gigantes de ferro e betão,

suspensas entre partidas e regressos:

a 25 de Abril ruge com os motores,

o seu corpo vibra com o vento e o aço,

enquanto a Vasco da Gama,

serena e distante,

parece tocar o infinito.

 

Na margem norte, os telhados brilham,

as colinas respiram história,

o casario inclina-se sobre a água,

num sussurro que atravessa a brisa.

Navios de cruzeiro adormecem na doca,

catedrais errantes de outros oceanos,

estranhos no ventre do rio,

segredos de portos longínquos,

ali, no cais do Jardim do Tabaco.

 

Na margem sul, o Ginjal espraia-se,

velhas paredes espreitam o rio,

memórias desfeitas no tempo,

sons de passos que se perdem na brisa.

A Boca do Vento chama quem parte,

o elevador ergue-se sobre o azul,

um olhar sobre Lisboa,

uma promessa de regresso.

Mais adiante, Almada desperta,

ruas que sobem e descem sem pressa,

janelas que espreitam a outra margem.

No Alfeite, vasos de guerra descansam,

fundeados entre passado e futuro,

vigias silenciosas do Tejo imenso.

O Tejo, sempre o Tejo,

testemunha de travessias e retornos,

memória líquida de quem parte

e de quem fica.

 

 

S.O.S. Telemóvel! Não queremos ouvir conversa alheia!

segunda-feira, 5 de maio de 2025

 

Antes de começar ao que hoje me traz aqui, peço ao leitor e de forma antecipada que me releve o “post” que se segue, pois, trata-se de algo que à primeira vista, pode ser considerado  um não assunto.

Ora bem, apanhei-me a regozijar com a lei, recentemente criada em Portugal, que proíbe e multa conversas de telemóvel em altos decibéis, nos espaços e nos transportes públicos. Ainda bem! Aplausos!

Em boa hora, saiu esta lei porque estava a tornar-se verdadeiramente exasperante nos comboios e nos outros transportes públicos, ter de levar com conversas alheias o tempo todo!

 Eu, confesso-me: muitas vezes, tapei os ouvidos (e fui chamada atenção - com um subtil gesto de desaprovação - pelo Armindo) nos transportes, para não ter de ouvir inconfidências ditas pelo próprio em alto som. Mas o pior é que eu entendia a maior parte destas conversas assim feitas – ora no crioulo das ilhas, ora no português do outro lado do atlântico - desagradável e incomodativo.

Faço votos de que por cá, nestas ilhas, (imitemos também os bons exemplos) e brevemente, haja uma lei que mande baixar o volume de voz (mas baixar mesmo!) das conversas ao telemóvel em espaços públicos.

De facto, não importa o local (até no cemitério!) seja nos serviços do Estado, seja nos bancos, nas clínicas e nos hospitais, levámos, para mal da nossa sorte, com gente a gritar literalmente ao telemóvel, isto é, utentes e funcionários que atendem ao balcão. Todos falam alto ao telefone, como se estivessem na intimidade das suas casas. Tornou-se insuportável!

Infelizmente, criei uma espécie de síndrome de mal-estar quando vejo alguém à espera de ser atendido, tal como eu, num serviço público ou privado, a falar ao telemóvel, pois já sei de antemão, que vou escutar sem o querer, assuntos alheios, o que me indispõe…até cheguei a pensar em recorrer aos bons serviços de algum Psicólogo, pois eu é que devia estar mal, já que quase toda a gente acha normal e não reage aos surtos decibélicos (a palavra não existe, mas apeteceu-me fazer a junção dos vocábulos decibél e bélico)  altíssimos, que por vezes dá a impressão de que os interlocutores estão a brigar um com o outro e não a ter uma conversa amiga ou civilizada.

Para terminar este meu desabafo, de novo reitero os votos de que as autoridades daqui e rapidamente, criem também uma lei similar ao que entrou em uso recentemente em Portugal, de modo que todos possamos ter algum silêncio e sossego, ufa! Nas ruas, nos transportes e nos serviços públicos.

P. S. – Antes de editar este escrito, dei-o a ler a um leitor especial, cujo juízo de análise muito prezo e que me aconselhou a não o publicar, justificando-se da seguinte forma:

1 – É de facto um não assunto.

2- Não constitui tema para os teus escritos.   

Mas apesar do seu - se calhar, prudente e assisado - parecer, decidi publicá-lo mesmo assim..

Viagem a bordo da palavra «mãe»

domingo, 4 de maio de 2025

 

Viagem a bordo da palavra «mãe»

Por Marco Neves

Neste dia, decidi passear pelas «mães» que se escondem nas línguas do mundo. Não posso chegar a todas, claro — as línguas são mais do que as mães. Posso, no entanto, começar por olhar para o globo, rodar o planeta com o dedo e aterrar do outro lado do mundo...

1. Kōkara / Mother

Comecemos o nosso périplo pela Nova Zelândia, terra de belas ilhas e muitas ovelhas (dizem-me). Por lá, há duas línguas oficiais: a língua maori, falada por esse povo que deu ao mundo a dança guerreira com que os neozelandeses assustam os seus adversários no râguebi; e o inglês, língua que veio doutras ilhas aqui mais para os nossos lados e deu a volta ao mundo para invadir a terra das ovelhas.

Pois, «mãe» é «kōkara» para os maoris e — surpresa! — «mother» para os descendentes dos ingleses. Num só país, duas palavras bem distantes — uma delas está presa àquele arquipélago, a outra já se ouve pelo mundo inteiro.

2. Mother > Mōdor > *Méhtēr

Viajemos agora para trás no tempo: hoje em dia os ingleses dizem «mother», é verdade. Mas, há uns bons séculos, no tempo do inglês antigo, essa «mother» era «mōdor», o que me soa a nome de reino da Terra Média — essa mesma que foi reinventada, há uns anos, precisamente na Nova Zelândia.

Ora bem: há uns 1000 anos os ingleses diziam «mōdor». E há 5000 anos? Por essas alturas, ingleses era coisa que não havia — e a escrita estava ainda a dar os primeiros passos, o que nos impede de saber como se dizia «mãe». No entanto, os linguistas, nos últimos 200 anos, através de complexas comparações entre línguas, descobriram que muitas línguas da Europa e da Ásia pertencem a uma só família: a família indo-europeia.

Ora, através dessas comparações, chegou-se a uma forma provável para a palavra «mãe» tal como seria dita nessa língua muito antiga: «*méhtēr» (o asterisco serve para mostrar que a palavra é uma reconstrução e o h não é nenhuma fórmula química, mas antes uma forma de representar um certo som para o qual não temos nem letra nem certezas).

Essa palavrinha reconstruída deu origem à «mother» inglesa — mas não só. Deu origem à «mâdar» persa, por exemplo. Deu também origem à «mãe» grega («mitéra»), russa («matʹ»), letã («māte»), irlandesa («máthair») e por aí fora.

Curiosamente, deu também origem à «motër» albanesa, com a peculiaridade que, nessa língua, a palavra acabou por significar «irmã». Mistérios das línguas humanas...

3. *Méhtēr > Mater

Ah, pois! A tal língua indo-europeia desfez-se com o tempo. Lá pelo Norte da Europa, entre florestas antigas e alguma escuridão, transformou-se na guerreira «mother» inglesa, na carinhosa «Mutter» alemã, na abreviada «mor» sueca...

Pois, a mesma língua, mais a sul, deu origem à «mater» latina, que se foi transformando na «mamă» romena, na «madre» italiana e espanhola, na «mère» francesa, na «mare» catalã e, claro, na nossa palavrinha...

4. Mãe

E chegámos, por fim, à nossa língua-mãe (língua cujo dia, aliás, se comemora amanhã...). A «mater» latina, aqui a um canto da Europa, acabou por se tornar nesta palavra toda ela nasal, feita do inevitável «m» e, depois, do ditongo «ãe», que aflige os estrangeiros interessados em falar português. Quem não sabe, tem de aprender a controlar a saída do ar pelo nariz — nós fazemos isso sem dificuldade, mas peçam lá a um inglês para dizer «mãe» e verão como é difícil dizer as vogais nasais. Temos uma língua muito senhora do seu nariz, é o que é.

Ah, mas a palavra, mesmo dentro da nossa língua, muda. Já se escreveu «mãy» (e não só). Dizemos «mãe», mas também «mamã», «mãezinha» e todas as outras formas que multiplicam o carinho e o amor pela mãe. A mesma palavra, quando se ouve na boca dum filho a chamar a mãe ao longe, transforma-se noutra coisa: numa «mã-iiiiihn». E não nos esqueçamos da «mamãe» do outro lado do oceano…

Ainda não acabou a viagem. Mesmo por cima de nós, temos a «nai» ou a «mai» galegas, a mostrar que as nossas palavras andam sempre ali na vizinhança das palavras dos vizinhos do Norte — e, como as línguas não param, a mesma «mai» aparece no cabo-verdiano, uma língua que nasceu do nosso português, continuando o mesmo eterno processo que nos trouxe até aqui a partir da tal palavra antiga que se dizia há 5000 anos.

Há 5000 anos, algures na Europa, uma criança dizia «*méhtēr» quando tinha fome; uma criança maori, do outro lado do mundo, chama hoje mesmo a sua «kōkara»; o meu filho diz «mãe», assim, com as três letrinhas apenas... As palavras mudam no tempo e no espaço, mas neste gesto de chamar a nossa mãe há qualquer coisa que nos une a todos.

 

 

P. S.  – Com a devida vénia ao autor, tomámos a liberdade de aqui publicar o texto oportuno e bem enquadrado para a efeméride que hoje se celebra.

Feliz Dia da Mãe!