Estava-se nos inícios dos anos sessenta e o Liceu da Praia ainda era um belo edifício – inaugurado em 1960 – com o seu relógio certeiro e a sineta accionada pontualmente nos toques de entrada, de tolerância e de saída. Revejo os painéis em azulejos ao longo das escadas, representando cenas dos épicos portugueses, quer históricos, quer saídos dos Lusíadas de Camões. Igualmente reconfiguro as salas amplas com carteiras ainda de brilho novo; o grande pátio circundante – onde passeávamos, brincávamos e jogávamos nos intervalos das aulas – o jardim defronte com o marco dos Descobrimentos, os canteiros floridos e regados. Enfim, para nós adolescentes e entrados no então terceiro ano do liceu, o Liceu Nacional da Praia primeiro, e poucos anos depois, Liceu Adriano Moreira, perfilava-se imponente e bonito.
Respeitosos e temerosos éramos nós os alunos – creio que sobretudo as alunas – quer do Reitor, quer de professores, quer ainda dos Contínuos, estes últimos tinham muita autoridade sobre o aluno, a uma participação ou a uma queixa por eles feita acabava-se intimado ao gabinete do Reitor. Ninguém o desejava, pois a reprimenda em casa ainda seria pior…
Mas no meu baú de memórias, queria reviver alguns bons momentos aí passados nessa escola que instruiu gerações.
Recordo-me das disciplinas de que mais gostava e que por vezes também coincidia com o professor que a ministrava.
Assim foi para mim a disciplina de História e do professor Mário Santos. Interessante no meu ponto de vista, a forma como ele leccionava os factos ou os mitos históricos. Por um lado, desdramatizava ou retirava alguma carga solene ou mesmo “super-heróica” como eram narrados determinados factos históricos – em que ele pressentia ou sabia retocados por alguma propaganda do regime vigente – e por outro lado, acrescentava ainda mais beleza poética à mitologia greco-romana, quando discorria sobre isso, o que tornava apetecível escutá-lo. Isto acontecia quer com a História de Portugal, quer com a História Universal.
Lembro-me de um episódio de aula quando foi o estudo do capítulo da “Restauração” ou da “4ª Dinastia” da História de Portugal; nele apresentava-se muito solenemente a parte em que o novel rei – o primeiro depois da denominação espanhola sobre Portugal (1580-1640) – D. João IV perguntava à mulher, D. Luísa de Gusmão se devia aceitar o cargo, a então duquesa de Bragança teria respondido de forma grave e épica: “Mais vale ser rainha uma hora do que duquesa toda a vida!” E isto era narrado com igual grandiloquência descritiva de uma terrível e decisiva batalha guerreira.
Ora Mário Santos, o nosso professor, fazia algum “gozo fino” com factos similares e sobre este particularmente, disse aos nossos ouvidos ingenuamente escandalizados, mas ao mesmo tempo divertidos: “Ah! Isso! Isso ele (o rei) terá dito à mulher quando se iam deitar: - “Olha lá, tu queres ser rainha ou não?”
Era assim que ele tornava coloquiais e engraçados certos “chavões” históricos que o nosso manual de História continha.
Outras boas memórias me acodem, são as amizades que se forjaram nas turmas e algumas que perduraram inesquecíveis com o passar do tempo e das vicissitudes da vida de cada um de nós.
Há outra recordação boa que guardo do Liceu da Praia, fazia-se teatro e eu tomava parte quase sempre nas peças. A par de outros colegas, fui também algumas vezes protagonista feminina do auto ou do texto dramático e, adorava representar. Eram obrigatórias pelo menos, duas peças de teatro por ano. No final do primeiro período, antes do Natal e por ocasião do 10 de Junho, a coincidir com o término do último período, antes das férias grandes. O nosso ensaiador, encenador era também o professor Mário Santos e os autores dos textos dramáticos invariavelmente da Literatura portuguesa: Almeida Garrett, Gil Vicente, entre outros.
Os ensaios tinham o seu encanto de camaradagem sã e o seu quê de risadas quando nos enganávamos ou atrapalhávamos nas “deixas” ou nas “falas” das personagens a nós cometidas. O ensaio-geral era normalmente de muitos nervos e vivido por vezes, mais intensamente do que a estreia da peça. Era aí que o encenador queria certificar-se de que estávamos à-vontade na “pele” das personagens. O Salão nobre do Liceu era o nosso palco, quer para as peças teatrais, quer para os saraus, quer ainda para os jograis de poemas.
Não vá esta oportunidade passar em branco, alguns nomes de então colegas – “actores e actrizes” que nós éramos no Liceu – Alda Macedo, Ercília Camacho, Eurícles Barros, o saudoso Lico Barros, Francisco dos Reis Brito (carinhosamente tratado por nós, seus antigos colegas: “Chico actor” seria ele quem participava em mais peças) Hedy Fonseca, Hulda Fernandes, Jorge Carlos Fonseca, Mafalda Carvalho entre outros. Creio que Carlos Veiga era quem, regra geral, apresentava o nosso espectáculo. Tinha boa dicção, dizia o professor. Espero que a memória me não esteja a atraiçoar e as sinceras e antecipadas desculpas aos não mencionados por falha gravíssima minha…
Em matéria de teatro e de saraus, vinha de tempo bem recente da então chamada “Secção de Gil Eanes da Praia,” algum lastro, bem fresco e muito comentado entre nós, sobre os trabalhos artísticos apresentados pelo famoso grupo da inesquecível professora Maria Luísa Blanqui.
Voltando às récitas teatrais que no Liceu novo, em meados da década de sessenta se fizeram, acredito que datasse desse tempo também um certo gosto pelo Teatro que me acompanhou muitos anos da minha adolescência e juventude, a ponto de como primeiro curso, ter querido fazer o então Conservatório Nacional em Lisboa, e a minha progenitora suavemente me ter dissuadido da ideia.
Eis em resumo – e de acordo com o título deste escrito, baixar agora a “tampa do baú” – o que a memória me trouxe de volta e me transportou ao antigo Liceu da Praia, veneranda instituição no seu todo, que atingiu meio-século de existência e que nos transmitiu conhecimentos e valores de que os livros são dos principais repositórios.
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