Vinha eu da minha caminhada matinal de regresso à casa, ainda a manhã ia no seu início, quando um dístico impresso num automóvel, que circulava, chamou a minha atenção. Dizia o seguinte: “O Sabor da Vida”. Dei comigo à procura do produto que estaria eventualmente a ser publicitado no mesmo carro. Nada vi que o indicasse. Mais, os tais dizeres situavam-se um pouco acima da matrícula do carro, o que normalmente não acontece quando se trata de publicidade de algum bem de consumo. Então interroguei-me se não seria uma advertência subtil e bem achada do condutor aos companheiros de estrada para que conduzissem com cuidado?
De facto, o “sabor da vida”…é único!
Com estes pensamentos fiz o resto da caminhada sob a luz bonita e radiosa que Lisboa possui no mês de Maio.
Entretanto, por associação de ideias ou não, sobre o(s) sabor(es) da vida, e da liberdade que dela deve emanar, fui levada igualmente aos seus desencontros, para uma conversa havida recentemente com familiares e amigos próximos sobre uma época do nosso passado histórico recente.
No grupo da tertúlia ocasional, encontravam-se amigos e familiares; nem todos de Cabo Verde e que recordavam os tempos de Partido único - enformado numa ideologia igualmente de sentido único - nos respectivos países então recém-independentes. Da ausência de liberdades, algumas fundamentais - e inscritas há muito nos grandes “Canhenhos universais” que sobre isso faziam e fazem leis - mas que infelizmente ainda as não havíamos “saboreados.”
Ora bem, a “máquina do tempo” levou-nos a meados dos anos setenta e toda a década de oitenta do século XX em que, por exemplo, para se viajar era necessário ter-se (a célebre e de má memória) Autorização de Saída, emanada da Autoridade - que era um misto de polícia de segurança do Estado e de controlo do cidadão. De qualquer forma sem esse documento ou similar, não se podia deixar a fronteira nacional e, por vezes, o próprio local em que se vivia como chegou a acontecer na Guiné. E aqui entrava aquilo que é comummente chamado de “pequeno poder.” Numa palavra, algumas vezes estávamos nas mãos de “tiranetes” que a seu bel-prazer decidiam se se era “merecedor” ou, não de viajar. Tudo isto acrescentado de pormenores menos correctos em que um certo ajuste de contas, sobretudo de natureza social, entrava também nos parâmetros de aferição para o sim do carimbo do malfadado papel. Enfim, por vezes eram autênticas peripécias por que passava o comum dos cidadãos que queria sair para umas simples férias ou passeio com a família.
Isto contado hoje aos mais novos nem dá para acreditar! Mas a verdade é que a era da democracia e do pluri-partidarismo afigurava-se longínqua no nosso calendário histórico. Isso só chegaria até nós, na década de noventa do já referido século.
Já definia - um dos mais notáveis pensadores e historiadores portugueses do século XX Vitorino Magalhães Godinho - «(…) a democracia como uma organização em que os conflitos se resolvem nas instituições (…) » E como elas na altura, não existiam ou não funcionavam - como foi o caso dos nossos países - muita coisa andou mal, até se atingir o estatuto de cidadão.
Dito e narrado deste jeito, ao leitor poderá parecer desgarrado e sem unidade temática o conteúdo deste escrito. E interrogar-se-á mas o que isto tem a ver com o “Sabor da vida” que inicia este escrito? Então? E até poderá concluir: «não bate a bota com a perdigota!»… Mas é que aqui que a associação de ideias se cruza e se toca. Olhemos à nossa volta e interroguemo-nos: qual seria o “Sabor da vida” sem os direitos mínimos do cidadão respeitados? Sim, qual seria o “Sabor da vida”?
Assim é, por vezes, a narração de factos historicamente ocorridos, ainda que sob forma de crónica breve e ligeira como esta.
0 comentários:
Enviar um comentário