Este texto vem na sequência directa de uma interpelação em jeito de queixa de que fui alvo da parte de um jovem indignado com aquilo que ele considera ser “falta de apoio” efectivo do Estado aos jovens para aquisição de habitação própria.
O tema habitação pode ser encarado de vários ângulos. Nenhum está verdadeiramente incólume de polémica não obstante quase todas as constituições, incluindo a nossa, se referirem ao “direito a uma habitação condigna”. Mesmo este “direito” não é universalmente consagrado e aceite, inclusive por alguns subscritores da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Antes de entrar naquilo a que me proponho abordar vou contar, de passagem e muito resumidamente, um pequeno episódio para ilustrar o que acabei de afirmar.
Nos anos 70, mais precisamente em 1976, as Nações Unidas através da sua Comissão para os Assentamentos Humanos organizou em Vancouver, Canadá, a Conferência Habitat I com vista a estudar e sustar o fenómeno do êxodo rural que inúmeros constrangimentos estavam causando à gestão das grandes cidades – as megalópoles – que se encontravam literalmente a rebentar pelas costuras, impotentes para enfrentar e resolver os novos desafios que se lhe punham de carácter físico em termos de habitat – alojamento, energia, água, transporte, saneamento, acessibilidades, entre outros – perante um crescimento exponencial inesperado das suas populações provocado pela avalanche migratória campo - cidade.
Em 1996, vinte anos depois, organizou o mesmo organismo a Conferência Habitat II em Istambul para fazer o balanço da Conferência de Vancouver (Habita I) e “corrigir” o rumo. Tive a oportunidade de participar nas reuniões de preparação deste último evento.
A última reunião geral preparatória (depois houve uma outra, restrita, em Nova Iorque) em Nairobi, sede da Comissão das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos, teve lugar em 1995 e visava aprovar os documentos que seriam levados à Conferência.
Tudo parecia pacífico até que um documento que, aparentemente, não fugia muito do teor dos restantes cria uma polémica que absorveu todos os restantes dias do Encontro sem que se tivesse chegado a um entendimento. Tratava-se de um item que se referia ao “direito à habitação condigna”. Precisamente o ponto que na generalidade não se esperava qualquer contestação. Eis que surge um dedo no ar – a delegação dos E.U.A logo seguida da do Japão e depois por outras dando início a um debate muito interessante que ocupou todos os restantes dias da reunião. As diversas posições mostraram-se irreconciliáveis para um texto consensual. E, para ser breve, a questão central era esta: Os Estados Unidos não reconhecem a habitação como um direito. Mais tarde, no jornal da Comissão, numa entrevista, o embaixador dos EUA explicou que a Constituição do seu país não consagra esse direito e subscrever essa cláusula, ironizou, significava que no dia seguinte teriam todos os “homeless” do país a reclamar uma habitação condigna. Os direitos dos cidadãos são para respeitar.
Na Conferência de Istambul (Habitat II – 1996) os EUA e o Japão mantiveram as suas posições e não subscreveram esse item.
Voltando a questão inicial, quero realçar que o direito à habitação condigna referido na nossa Constituição é, muitas vezes, confundido com o “direito à habitação própria” por um elevado número de pessoas onde pontificam os carenciados e uma boa gama de jovens. É bom aqui registar que se trata de um direito programático, portanto de um compromisso do Estado, abrangendo todos os cidadãos, em o ir resolvendo. Mas quase todos os governos, sobretudo os dos países em que a juventude constitui a força dos votos dão especial ênfase à política habitacional para jovens fazendo dela uma bandeira eleitoral para a conquista desse estrato sem se debruçar sobre a eventualidade da (in)justiça social.
Nem sempre foi assim e não tem que ser como foi. A habitação própria condigna constitui o sonho de uma vida. Não é um exclusivo da juventude. Não me parece que a condição de ser jovem torne um cidadão mais merecedor do contributo do erário público para a aquisição de um património. A habitação própria não é apenas um alojamento, um abrigo, é um património. E é também como tal que deve ser analisado.
Pergunto se é justo conceder à juventude, que praticamente ainda não contribuiu para a produção da riqueza, “facilidades” (leia-se contribuição do Estado) para a aquisição de um bem material duradouro que os pais também perseguem em prejuízo destes últimos que toda a vida também sonharam em ter casa própria condigna? Falo no âmbito de hipóteses e prioridades.
Não quero, de forma alguma, que se pense que estou contra o direito dos jovens a uma habitação condigna. De maneira nenhuma. Estou sim contra o contributo do erário para a aquisição de um bem material transaccionável, a menos que seja uma política generalizada sem discriminação, tout court, para resolver a questão habitacional globalmente.
Como princípio, não sou defensor de qualquer tipo de discriminação, com particular incidência na que diz respeito ao género e à idade (entre adultos, entenda-se) e, por isso, não a qualifico. Normalmente ela constitui um atentado ao mérito e, objectivamente, quase sempre fere a dignidade.
Há que encontrar a solução para habitação para jovens por outras vias, inclusive a do desenvolvimento de políticas criativas que poderão nomeadamente passar pelo fomento do desenvolvimento efectivo de um mercado de arrendamento que salvaguarde com equidade os interesses dos senhorios e dos arrendatários e promova a justiça social. Não é fácil, mas é possível. O financiamento, ainda que de juros, para aquisição não me parece justo.
A casa é um bem material duradouro. Só a deve adquirir quem pode. O que não impede que em circunstâncias muito especiais possam ser outorgadas para usufruto, apenas usufruto, ainda que vitalício.
Mas compreendo que a estratégia política pode conduzir a uma lógica e a um “timing” que nem sempre são consentâneas com opções justas.
Como nota final quero aqui registar que esta foi sempre a minha posição que sei, ser muito pouco simpática. Enquanto dirigente submeti-me ao consenso geral, pois que na política as regras são muito claras para quem tem ética: Acatamento da posição da maioria quando ela é legítima e legal. Ou então não se entra no jogo.
A.Ferreira
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