João
partiu como sempre viveu: discreto e silencioso. Na sua boémia e folia como no
seu trabalho e profissão ele apunha sempre o seu timbre de discrição. Homem de
fino trato, elegante e cordato assumia sempre com as pessoas, um comportamento
em que a ética e a cordialidade presidiam o relacionamento mesmo quando era
fugaz e transitório. Desde muito novo teve funções que lhe conferiam alguma
visibilidade. Visibilidade esta que não só se realizava pelo empenho e eficiência
mas também e sobretudo, pela integridade e honestidade com que desempenhava
essas suas funções. Pelo trabalho feito.
Tinha
com ele, quase semanalmente, conversas longas sobre a família que ele adorava e
fazia questão de o dizer de forma expressa com um certo ar de beatitude como
sendo a sua principal razão de viver. Falávamos também de política. A maior
parte das vezes. Discordávamos quase sempre nos caminhos a seguir. Não nas
metas e nos objectivos. O país acima de tudo. Recordo-me da maneira elegante e
sorridente com que contornava as suas concordâncias substantivas comigo quando
estas punham a descoberto a linha oficial do seu partido, sem as expressar
explicitamente. Era uma questão ética de compromisso em relação ao seu partido
da qual não abdicava nem na privacidade.
Os muitos
e bons anos que tivemos, Ondina e eu, o enorme privilégio de com ele convivermos
de muito perto conferiram-nos a autoridade de o considerar um excelente pai, um
carinhoso e babado avô, um fiel e leal amigo e um grande cidadão. Alguém que, com
toda a propriedade, se pode chamar um Homem Bom. Seguramente teria sido também
um bom marido, di-lo-iam os quase 50 anos de casado; mas a sabedoria popular
não aconselha que se “meta a colher”.
Em
apenas quarenta dias perdemos, a Ondina e eu, dois irmãos: um biológico (meu)
outro de adopção. Ambos de coração e no mesmo patamar. A nossa vida está ligada
de forma indelével aos dois. Com o primeiro, o Daniel, as primeiras dezenas
anos de vida caracterizadas por um certo nomadismo, protecção, irrequietismo
(meu) e vicissitudes que teve que aturar com a paciência e tolerância de um bom
irmão mais velho; o segundo as últimas, obviamente em sobreposição. Quiseram as
circunstâncias da vida que vivêssemos mais continua e intensamente com o
segundo. Dos dois permanece uma SAUDADE imensa, indescritível, que o tempo irá
dissipando sem nunca extinguir.
Tenho
uma concepção de morte que considero, talvez pretensiosamente, de pragmática: respeito-a
profundamente, mas é algo que reputo de muito
íntimo. Diz respeito apenas àqueles que sentiram de facto a perda do seu
ente querido. E não há que exibi-lo – esse sentimento. E muito menos com
romarias protocolares que, na sua maior parte, não passam de manifestações superficiais
de um sentimento que não existe e de uma solidariedade manifestada de uma forma
que poderá ser incomodativa e inoportuna. Ou de uma homenagem deslocada e intempestiva.
Os
pêsames devem ser um sentimento de facto e não uma obrigação, um ritual de
circunstância imposto pelas convenções sociais sem se avaliar da oportunidade e
das crenças sociais e religiosas dos envolvidos.
O
respeito por aquele que nos deixou começa e termina no respeito pelos seus
entes queridos. Pelo direito destes ao “choro” na intimidade; à meditação; ao recato
e muita privacidade. Tudo isto exige àqueles que nos visitam e que o fazem com
sincera amizade e pesar, e não no cumprimento de um simples ritual, contenção e
alguma sobriedade no próprio acto de visita.
Hoje,
nos tempos actuais, com as tecnologias de comunicação ao dispor de toda a
gente, a solidariedade e a homenagem podem ser prestadas em tempo real, e
registadas, sem importunar ou incomodar.
Não
pretendo, de maneira nenhuma constituir-me em referência de qualquer natureza.
Cada um sabe como há-de agir. Eu, por mim, também respeito a tradição. Mas
procuro fazê-lo com algum bom senso, isto é, sem rigidez nem fundamentalismo.
Tínhamos
combinado, o João e eu, beber um whisky quando ele voltasse. A esperança era
grande pois tinha ido com os seus próprios pés. Não quis o destino que isto
acontecesse.
Para
o João é um adiamento. Ele acreditava…
A. Ferreira
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