O registo histórico e o discurso ficcionista - Ou quando o Escritor substitui o Historiador -

terça-feira, 29 de abril de 2014

Existe uma quase convicção de que determinados factos, episódios e histórias que se passaram – nas ex-Colónias africanas portuguesas – durante os processos tumultuosos e muitas vezes confusos que configuraram os momentos após o “25 de Abril” de 1974, o chamado “Movimento dos Capitães” em Portugal, não figurarão nos respectivos compêndios de História (a dita ciência objectiva de narração de factos acontecidos).
Não esquecer que se por um lado, a revolução de Abril de 1974, trouxe a descompressão psicológica e social nas antigas Colónias africanas portuguesas, pondo fim às lutas armadas nas três frentes de guerra, Angola, Guiné e Moçambique; por outro lado, foi seguido de episódios sangrentos vividos no período imediato às independências, com as guerras civis (Angola e Moçambique) e com actos de tortura, numa autêntica barbárie (Guiné-Bissau).
Esta quase convicção, repito, de que estes episódios não farão parte dos registos históricos, explica em parte, a necessidade que o escritor sentiu ao preencher um vazio que o historiador não realizou até esta.
Acredito mesmo que alguns escritores/ficcionistas, nomeadamente, alguns oriundos dos países do chamado PALOP. (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), intuíram o fenómeno com tamanha clarividência, e felizmente que tal aconteceu, pois que assim, qualquer leitor atento, poderá verificar que no entretecer do enredo dos seus romances, estes mesmos autores fixaram em quase paralelo, os dois registos escritos – o histórico e o ficcionista – numa autêntica necessidade de contar ao leitor a odisseia por que passaram alguns dos seus países e as sociedades dos mesmos, durante e imediatamente após o processo da independência e da descolonização.
De facto, descrevem os seus autores e de forma assaz referenciável, os mecanismos engendrados; as guerras civis; a violência psicológica e física exercida sobre os cidadãos que não estavam de acordo com determinados procedimentos dos novos senhores do mando. O permanente idealismo de alguns, o desejo de agarrar a vida mesmo em situações limites; as ditaduras dos partidos únicos. A falta de liberdade, a inexistência de democracia, as "intentonas" e as “inventonas;” o novo-riquismo da classe social mais abonada e ligada ao novo poder instalado com o advento da independência e os remoques à riqueza repentina demonstrada sem pudor por alguns dos seus membros; são entre outros, tópicos, os que esta literatura pós-moderna, pós-colonial, melhor consagrou.
Com efeito, de tudo isto, alguns romances de escritores angolanos, cabo-verdianos, guineenses, nos dão conta ao longo das histórias registadas e ficcionadas, como que com a nítida percepção, de que nada disso será talvez, registado na História recente pelos historiadores dos seus países de origem, cuja maioria se tem limitado a entoar loas aos feitos….
Neste capítulo, ganharam vanguarda em relação aos próprios historiadores, os quais, afinal, com o seu registo dito e tido por objectivo, poderiam e deveriam fixar para a posteridade os mesmos acontecimentos.
Daí que, os eventos históricos como parte integrante de muitas narrativas, acabam para nos tentar a classificá-los de romances históricos.
Passo a exemplificar, algumas obras demonstrativas, por ordem do ano de publicação do livro.
Comecemos pelo romance, «Entre Duas Bandeiras» de Teixeira de Sousa, publicado em 1994. Desfilam ao longo da sua leitura, os episódios que se passaram em Mindelo, na ilha de S. Vicente, logo após o 25 de Abril de 1974 e durante o período que o medeia e que vai até a data da independência do Arquipélago. A par da história do protagonista, “ Gaudêncio Pereira” que almejava (era o sonha da vida dele) ser sócio do Grémio Recreativo do Mindelo, e assim conviver com a fina-flor da cidade; conhece-se a movimentação política agitada que a cidade de Mindelo, vivia então. O narrador omnisciente, sobre isso vai transmitindo o seu ponto de vista ao leitor.
A existência da UDC (União Democrática Cabo-verdiana) cujos membros acabaram presos no Tarrafal (1974/75) e que pretendiam a independência das ilhas, mas não num quadro da unidade Guiné/Cabo Verde, o então “supremo e indiscutível dogma” do PAIGC, (o partido político que lutou pela independência, mas que não aceitava qualquer concorrência nas ilhas). Os confrontos por vezes carnavalescos nas ruas de Mindelo de então; os sucessivos comícios que se realizaram durante o mês de carnaval e que por vezes se confundiam e se fundiam com e/nos os desfiles dos blocos do rei Momo. Os comunicados constantes da Rádio Barlavento, ainda com liberdade de expressão plural, antes da sua “tomada” pouco democrática, pois que se tratou de um assalto à propriedade privada, pelos apoiantes do Partido mais forte. As ameaças físicas e psicológicas sobre algumas personalidades influentes de Mindelo que os novos senhores e os seus seguidores, apodavam de “burgueses”, de “alienados” e “aliados” do colonialismo. Tudo isto, foi transfigurado em ficção, em personagens que compõem o magnifico romance «Entre Duas Bandeiras», cuja metáfora do próprio titulo, remete o leitor para o tempo histórico da acção do livro.

Passando agora ao romance «Estação das Chuvas» de José Eduardo Agualusa, publicado em 1996.
Convinha situar-se o escritor Agualusa, na segunda geração, ou na nova geração de escritores angolanos, os da post-independência, do post “utopia” e já da fase do desencanto.
A narrativa do livro está historicamente datada, ou, melhor dito, apresenta vários acontecimentos datados, que configuraram quase toda a cadeia de episódios, desde a preparação ideológica; passando pela luta para a independência; indo até aos primeiros tempos do governo do MPLA.
Embora a obra focalize com maior ênfase, o longo período da dramática e destruidora guerra civil (1975-2004) e que no universo romanesco culmina com os trágicos acontecimentos de 1992, em que “desaparece” a protagonista da história, Lídia do Carmo Ferreira.
Ora, “Lídia do Carmo Ferreira, poetisa e historiadora b>angolana, misteriosamente desaparecida em Luanda em 1992, após o recomeço da guerra civil.” O romance de José Eduardo Agualusa “transporta-nos desde o início do século, até aos nossos dias através de um cenário violento e inquietante. Um jornalista (o narrador) tenta descobrir a história proibida do movimento nacionalista angolano; pouco a pouco >(…) compreende que o destino de Lídia já não se distingue do seu.” (transcrito da contra-capa do livro).
O autor fornece ao leitor uma admirável descrição histórica de Angola em diversos períodos da sua história mais recente, trazendo ligado também, o seu passado colonial.

Mais perto de nós, porque aqui nas ilhas, Armindo Ferreira publicou em 2002, «O Passaporte» narrativa, dramática, descrevendo a pungente saga, vivida pelo protagonista da história e que se passa em larga medida, em Bissau.
No universo da narrativa, temos a ponte entre uma Lisboa do imediatamente antes do “25 de Abril” e Bissau de 1974/75 já independente.
Pois bem, ao tempo, e nessa Lisboa, vivia, estudava e trabalhava uma franja significativa da juventude cabo-verdiana e guineense, constituída sobretudo por estudantes universitários, os quais ansiavam – embora com graus diferenciados e distintos de entendimento, de envolvimento – o futuro próximo e promissor que o projecto da independência sob o PAIGC, traria (supunha-se) aos dois países, à Guiné a às ilhas de Cabo Verde.
O leitor apercebe-se das discussões ditas “ideológicas” bastamente travadas entre as personagens mais salientes do texto.
Curiosamente, o protagonista do «O Passaporte» não é estudante universitário, e nem é “ideologicamente” marcado. Descobre-se que fora guerrilheiro, ferido em combate, feito prisioneiro pelas tropas portuguesas que o levaram para Portugal.
Trata-se de “Abdú Konté” que após a recuperação dos ferimentos de guerra, se tornou operário especializado numa oficina de metalurgia, onde era reconhecido pelo mérito com que desempenhava as tarefas. Casado, com uma filha pequena e com a vida a correr-lhe bem, sobrevieram-lhe entretanto as saudades da terra que o fizeram voar até Bissau. A partir da chegada à Guiné e até à “sua morte, Abdú” conhece um autêntico calvário de tormentos, de perseguições que quase o levam à loucura, por causa da retenção do seu passaporte pela então tenebrosa polícia guineense.
É uma história a um tempo, comovedora e revoltante.
«O Passaporte» de A. Ferreira é um “contundente e dramático relato dessa odisseia humana”.

Outro caso muito ilustrativo, do tema que vimos falando neste escrito, é o de Pepetela, reconhecido e premiado escritor angolano.
Trata-se de um autor que antes escrevera romances epopeicos, sobre a luta pela independência de Angola, em que destacaria «Mayombe», «As Aventuras de Ngunga» e «A Geração da Utopia»
Interessantemente, o escritor (re) cria no seu «Predadores» publicado em 2005, um dos seus romances mais emblemáticos deste novo discurso histórico/ficcionista.
Trata-se com efeito, de uma ficção, de um enredo envolvido em vários níveis do cómico literário, a saber: o de linguagem, o de personagem, o do narrador que imbrica na própria narração. Há um humor, que por vezes ganha assomos de corrosivo, a par de uma ironia sarcástica, os quais, enformam o comportamento indisfarçavelmente exuberante e de novo-rico, simbolizado no protagonista da história, “Caposso” empresário recente, que se dizia “natural de Catete,” terra de origem de Agostinho Neto, o que não sendo verdade lhe acrescentava – julgava ele – mais prestígio quando se apresentava às pessoas, em reuniões ou em festas. Falava alto ao “telemóvel de última geração,” e explicava, gabando-se ao interlocutor do outro lado da linha – não importando o sítio e a ocasião, ciente de que estava sendo escutado por quem estivesse à volta – da sua grande prosperidade material. O autor não poupa o comportamento de pouca ilustração e, volto a repetir, de novo-riquismo exibicionista da personagem “Caposso,” Quiçá! Aproveitando-se também, para nele transportar, transfigurar e simbolizar o “modus vivendi” de alguns membros da nova classe rica, habitante de Luanda e de outros centros urbanos de Angola.
Trata-se com efeito de um retrato sarcástico do comportamento dessa nova sociedade, luandense no caso. Para além da “estória” está presente a história mais actual, caricaturada embora, de uma certa Angola, prenhe de um deslumbrado novo-riquismo.
Lado a lado, os dois discursos, o histórico documentado, através de cenas da guerra colonial e da ainda mais longa, a guerra civil de Angola, e o discurso ficcionista – o universo, onde se movimenta “Caposso” – estão presentes, com igual força descritiva e narrativa, nesta obra de Pepetela.
Estes são alguns exemplos de obras interessantemente concebidas e realizadas por alguns escritores, nesta Literatura mais recente e que ao fim e ao resto, são demonstrativas da realidade histórico/social experimentada nos respectivos países, e transfigurada na ficção, sem perder o discurso histórico.
Afinal, nas obras aqui analisadas, diria que se complementam os dois perfis, o de ficcionista e o de cronista histórico dos seus autores, que legam para a posteridade testemunhos vividos dos acontecimentos narrados e efabulados.




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