Os Rebelados ou os Mitos que fazem História?...

quinta-feira, 3 de abril de 2014


Embora se trate de um texto já publicado em 2008, voltei a repescá-lo e a trazê-lo para o “Blogue”, pois tenho ficado verdadeiramente pasmada, cada vez que vejo e leio o acervo de teses, monografias, fantasticamente efabuladas, que se têm vindo a tecer sobre os ditos “Rebelados” da ilha de Santiago! E tudo isso com ampla cobertura pseudo/histórica…
Do meu ponto de vista, o livro: Os Rebelados de Santiago, de Cabo Verde da autoria de Júlio Monteiro, Jr. continua a ser a melhor fonte histórica para se conhecer o caso dos chamados “Rabelados” da ilha de Santiago.
Recorde-se que foi editado em 1974, pelo Centro de Estudos Cabo-verdianos, a partir do Relatório elaborado pelo autor, entre 1962/64.
Pois bem, os “Elementos para o estudo sócio-religioso de uma comunidade” como o próprio autor viu o assunto e classificou o seu excelente ensaio, constituem no meu entender, o mais abrangente e o que melhor tratou a questão.
De facto, não conheço, até agora, nenhum outro registo escrito com a mesma amplitude e profundidade analítica e histórica sobre o assunto, como a que encerra o livro de Júlio Monteiro.

Nos primeiros capítulos, o autor fornece-nos uma informação muito completa sobre os vários elementos constitutivos e estruturantes de algumas formas de parceria, de arrendamento de parcelas de terra, até da forma de actuar, de agir e de reagir do cabo-verdiano rural, quando perante relações e interacções com a propriedade agrícola. O caso/exemplo do livro, focaliza o homem rural de Santiago, ilha de que traça uma acabada descrição etnográfica de muito préstimo.
O objecto de estudo da obra de J. Monteiro permite-nos recuar no tempo e, sermos confrontados com os relatos de alguns acontecimentos que desabaram em simultâneo, sobre as pobres cabeças e conflituaram o entendimento dos homens, quase todos analfabetos, no dizer de Júlio Monteiro, de algumas comunidades desse interior então recôndito, montanhoso, alcantilado e isolado da ilha de Santiago.
Habituados de há muitos anos, através da doutrinação dos padres de “batina preta e de barrete próprio,” a auto-suprirem as suas necessidades em orações e enterros, actos indispensáveis ao fiel católico, dada a dificuldade que até os próprios curas sentiam em chegar àquelas zonas inóspitas e perdidas nos confins, sobretudo, da região do Tarrafal, eles terão reagido mal aos sinais dos tempos, como sói dizer-se.
Estamos nos finais dos anos 50 e inícios dos anos 60 do século XX, quando os habitantes desses lugares, nem todos, se rebelaram, contra as novidades trazidas na prática dos novos padres “de batina branca, sem chapéu ou com boina, (… )".

Note-se que a princípio eles não eram chamados de «rabelados». O povo chamava-os de “incrente” cuja descodificação para as autoridades teria sido de “incrédulo.” E, se calhar, nada teria acontecido. Quem sabe? Talvez o conflito ter-se-ia mantido apenas na esfera estritamente religiosa.
Mas coisa outra, e bem diferente, foi terem sido apodados de «rabelados» o que em português se traduziu por «revoltosos». Embora no crioulo, e para o contexto, a palavra «rabelado» tivesse uma significação ambígua e mais abrangente. Assim se compreende a entrada em força das autoridades.
Veja-se o papel da semântica neste particular, e no que deu para o caso!
Ora, quem os denominou pela primeira vez, por escrito, de «Rabelados» foi Pe. Moniz – de acordo com o autor – que também se apercebera da rebeldia desses homens aos rituais inovados da Igreja católica. Comunicou o caso ao Administrador do Tarrafal, em 1959. É bom que rememoremos que a religião católica era a religião oficial do Estado Novo. Logo, interagia a sua acção com a autoridade instituída.
Não bastando este cenário, e para complicar ainda mais a situação dos «increntes» primeiro, na voz do povo, e mais tarde, consagrados «rabelados», no registo da autoridade, sucederam-se em simultâneo, vários acontecimentos que acabaram por dar ao caso uma configuração particular. Ei-los:

1 – A já referida chegada dos padres da Ordem ou Congregação do Espírito Santo que envergavam outros hábitos que não os que eles estavam habituados a ver nos antigos padres que os visitavam. Para além disso, vinham munidos e sabedores dos novos postulados da Igreja face às transformações da sociedade de então, insertos nas importantes Cartas pastorais do Papa João XXIII e, proximamente, das orientações saídas do Concílio Ecuménico Vaticano II que renovou o «modus operandi» da liturgia e da actuação da Igreja.

2 – As próprias orientações do Concílio Ecuménico Vaticano II, muito celebradas e aplaudidas pelos sectores mais desenvolvidos da Igreja Católica que, de entre interessantes e profundas transformações na sua ecleosologia, trazia a nova de a missa poder ser rezada nas línguas nacionais e locais. Recorde-se que até aí a missa era celebrada em Latim. As mulheres já podiam entrar no templo, sem véu ou lenço a cobrir-lhes a cabeça. Os padres, alguns deles, conforme as ordens, então autorizados a trajar-se de modo quase civil. Tudo isto afinal, com a benéfica intenção de a igreja estar mais perto do crente e ser parte da comunidade.

3 – A instalação naquela época, da Missão de Estudo Permanente de Combate de Endemias e da Erradicação da Malária em Cabo Verde que teve um imensurável papel no combate à malária no Arquipélago e que actuou com rapidez e muita eficácia em quase todos os recantos das ilhas.
Ora, da noite para o dia, sem terem sido devidamente informados do que se estava a passar e já em conflito com as autoridades, os “Rabelados”, vêm-lhes entrar, pela casa e pelo quintal adentro, o “diabo” sob forma de agentes de desinfecção, ainda por cima munidos de uma almotolia com que pulverizavam o desinfectante – D. D. T. – recusaram-se a continuar a viver nas habitações desinfectadas por lhes parecer mais uma obra provocatória do demónio.

4 – De se registar também, seguindo de novo Júlio Monteiro, os conflitos surgidos, na mesma época, com a lei da demarcação da propriedade rústica, ordenada desde 1955 e só aplicadas em 1961. “Encarada com a suspeição do pagamento de contribuições (…) os ânimos da população rural estavam excitados” (…) transcrito do livro. E de novo, as suas zonas “invadidas” pelos marcos e pela presença dos técnicos e dos funcionários das Brigadas de Estudo e Construção de Obras Hidráulicas de Cabo Verde (B.E.C.O.H.).
Coloquemo-nos, se possível, no tempo e nas condições do ser e do estar desses homens e mulheres chamados de «Rabelados», para os entender e também lhes dar as devidas limitações e o enquadramento em que se devem manter, a bem da História.
Sem acessos, sem estradas, sem informações, vivendo em zonas alcantiladas e perdidas, nas fragas das serras do interior, então bem interior, da ilha de Santiago, como claramente o autor nos informa; os seus “cabecilhas ou chefes” eram quase todos analfabetos. Alguns, os que sabiam ler e decifravam a Bíblia, eram de facto, os mentores religiosos da comunidade. Foram presos e mandados quase desterrados para o Fogo e para a Brava, longe dos seus. Nas palavras críticas do Dr. Júlio Monteiro: «uma carga desnecessária, um procedimento excessivo» de quem nada tinha entendido do problema e que «queria transferir para o caso, os acontecimentos recentes de Angola» (1961).

Teremos de convir que tudo isso lhes terá sido assemelhável a um quase “Fim do Mundo”! Situemo-nos no tempo histórico e no espaço destes homens isolados dentro da ilha!
Ora bem, Dr. Júlio Monteiro balizou na sua obra e de forma lapidar no levantamento que fez, as causas dessa rebeldia, ao classificá-las de sócio-religiosas.
Daí que voltaria a recomendar a leitura do livro, «Os Rebelados de Santiago de Cabo Verde» de Júlio Monteiro (sobretudo aos Orientadores dos trabalhos académicos e de fim de Curso) para que não se continue a ler e a ouvir ficções com pretensões históricas sobre o assunto. Desde apelidá-los de nacionalistas/independentistas que tinham recebido instruções, até tentando explicar as causas da rebeldia, fazendo-as parecer, no tempo, motivadas sob mobilização e influência do PAIGC. Convenhamos que de mitos e de fantasias, muito se tem contado! De tudo um pouco também, se tem vindo a ler sobre este assunto.

A impressão com que se fica algumas vezes, é a de que o «tampão» político de pretensão nacionalista é usado com demasiada ligeireza, entre nós, em alguns trabalhos escritos e ditos, para suprir lacunas que uma investigação séria e científica propiciaria, se fosse feita. Será?...

Aceite-se sim, e nisso estaremos de acordo, que os preceitos de vida desse grupo tenham tido impacto sócio-cultural quando os seus membros reagiram e passaram a constituir-se uma espécie de «bolsa» comunitária que se fechou sobre si própria e desenvolveu hábitos e costumes específicos. Sucedeu assim uma quase ruptura que originou uma forma de estar e de agir, distinta do grupo maior, ou seja, da população integrada e homogénea, (seja-me permitida a utilização do conceito, por oposição à auto-marginalização dessa comunidade) de que se constitui Cabo Verde.

Logo, por uma vez, vamos ser honestos com a nossa História recente, – neste caso dos «Rebelados» – pelo respeito que lhe devemos.
Para finalizar, acrescentaria que um dos grandes méritos do trabalho, então Relatório, feito pelo Dr. Júlio Monteiro – para além de ter prevenido, de ter alertado as autoridades para as verdadeiras causas do conflito – foi sem dúvida o facto, de ele ter concorrido ainda e em tempo, para atenuar e até mesmo impedir que actos mais violentos e continuados fossem cometidos contra os «Rebelados».
Afinal, o Dr. Júlio Monteiro, acabou por ser um advogado “pro bono” dos ditos “Rebelados” ou melhor dos “Increntes,” como foram originariamente chamados pela vizinhança que os denunciou ao Padre Moniz em 1959, pelo facto de não querem aderir à então nova liturgia. Reconheça-se ao autor, o muito mérito que teve na defesa dos ditos «Rebelados».

















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