VERGONHOSA E INACREDITÁVEL DEBANDADA

domingo, 18 de janeiro de 2015

 Adriano Miranda Lima

Proponho-me falar do que aconteceu à força militar que rendeu, em Maio de 1974, em Mecula, Niassa Oriental/Moçambique, a companhia que eu comandei no local e região durante 2 anos.
O depoimento que se segue não é determinado por qualquer motivação política ou ideológica. Apenas busca uma certa perspectiva da História para lograr a explicação e o entendimento para alguns factos da vida colectiva portuguesa.
Toda a nossa geração e a dos nossos pais nasceram e/ou viveram sob o regime do Estado Novo, sem vislumbrar outro horizonte político senão aquele que Salazar nos binoculava na solidão do seu gabinete em S. Bento. A trindade Deus, Pátria e Família regulava o nosso quotidiano e balizava o nosso destino. Os princípios que o regime nos instilava desde berço procuravam convencer-nos de  que Portugal era “uno” e não se limitava ao território continental europeu. Tudo, na aparência, assemelhava-se a um sonho lindo e legítimo, orgulho da Nação.
Contudo, veja-se que não foi o regime de Salazar o construtor dessa visão e o mentor da sua perpetuação. Essa ideia é de séculos e remonta à época quinhentista, em que o Portugal pequenino entrou para a história universal, descobrindo terras pelo mundo fora e revolucionando a visão que a Europa tinha então do espaço universal. Construiu  um império com domínios territoriais em África, na América do Sul, na Ásia e na Oceânia. Houve alturas em que deu cartas ao mundo, dominando o comércio marítimo internacional até ser destronado por potências de maior envergadura geográfica e demográfica. Mas cometeu erros graves e de consequências irreversíveis, como a  perseguição e a expulsão da comunidade judaico-portuguesa nos reinados de D. Manuel I e D. João III, e mesmo mais tarde, depois da restauração da independência. Ora, os judeus eram os controladores do comércio nacional e da banca de então, com ramificação de interesses em toda a Europa. Além disso, os judeus detinham grande parte do conhecimento científico no domínio da arte de navegação e da cartografia. Foram durante o auge da nossa História uma massa crítica importantíssima. Expulsámo-los e foram colocar os seus serviços a favor de potências que eram  nossas adversárias ou concorrentes no comércio mundial, como a Inglaterra e os Países Baixos. E é a partir daí que começa a decair a grandeza a que Portugal se alcandorara.
Todo este intróito serve apenas para dizer que quando integrámos as primeiras forças expedicionárias à África, íamos convencidos de defender legitimamente parcelas do território nacional. E por elas dar a vida se necessário, como é lema da condição militar. No entanto, a seguir a II Guerra Mundial, as potências europeias colonizadoras haviam iniciado um processo de descolonização, coisa que não passava então pela cabeça de Salazar e do seu Regime. Em fins da década de 1950, começaram a surgir os movimentos de libertação das nossas colónias, encabeçados por nacionalistas, convictos dos seus ideais, uns, ou simples instrumentos de interesses estrangeiros, outros. A partir da década de 1960, intensificou-se a pressão internacional contra Portugal, que, no entanto, não desistia da sua visão unilateral sobre o problema das colónias, jamais aceitando qualquer negociação com os movimentos de libertação.
Os militares dos quadros permanentes e os militares de conscrição (milicianos e praças) que integraram as primeiras unidades mobilizadas para Angola embarcaram nos navios  Vera Cruz e  Niassa imbuídos de um espírito de missão alicerçado no sentimento de patriotismo, até porque a princípio a crença radicada nos espíritos mais lúcidos e esperançosos era a de que a missão das forças militares seria aguentar a posse das colónias, mantendo a ordem e a segurança das populações, enquanto o Governo gizaria uma solução política para o conflito. Isto porque era e é dos livros que as guerras subversivas não têm solução militar, como a História o demonstra à saciedade.
Combati em Angola, como alferes, entre 1965 e 1967, e posso garantir que de um modo geral os militares aceitavam o sacrifício que lhes era imposto.
Mas, a partir de 1970, o panorama começou a modificar-se sob vários ângulos. Os quadros permanentes começaram a dar sinais nítidos de exaustão física e psicológica, desesperando-se por uma solução política, à medida que o tempo passava e o Regime mantinha o mesmo discurso de renitência, cavando cada vez mais fundo o seu isolamento internacional. A oposição política ao Regime fazia o que podia, sobretudo no exílio estrangeiro, erguendo a voz cada vez mais altissonante contra o sufoco  das liberdades  e contra uma guerra colonial sem sentido e contrária aos ventos da História. Nas unidades militares da Metrópole, comecei a notar, sobretudo a partir de 1970, que alguns oficiais milicianos recém-incorporados não se coibiam de emitir, em conversas privadas, a sua opinião contra a guerra colonial. Devo confessar que eu próprio, embora já oficial do quadro permanente, compartilhei uma ou outra vez de alguns desabafos e opiniões, tendo criado  cumplicidade, e até amizade, com um colega miliciano, cujas qualidades humanas e atributos intelectuais muito eu apreciava. Ou seja, o estado moral entre as tropas já não era o de outrora. Desde há alguns anos, começara a diminuir consideravelmente a entrada de cidadãos para a carreira das armas, quer para oficiais quer para sargentos. A partir de 1970, em virtude da falta de capitães do quadro permanente para comandar as companhias operacionais (alguns já iam na segunda ou terceira comissão), iniciou-se um processo de formação de capitães milicianos para o comando das companhias. Entre os cadetes  dos cursos de oficiais milicianos, seleccionavam-se os mais aptos e bem classificados e, após uma instrução de especialidade mais apurada, iam fazer um estágio de 6 meses numa companhia operacional em qualquer das colónias em conflito. Regressados à Metrópole, frequentavam um curso para capitão miliciano, após o que eram mobilizados a comandar uma companhia, graduados no posto de capitão.
No nosso Batalhão, em Moçambique, um dos comandantes de companhia era oficial miliciano dessa formação, tendo eu, por coincidência, sido seu instrutor no primeiro ciclo da sua formação. Refira-se que, embora a sua visível inexperiência, procuraram fazer o seu melhor.  Julgo que não será impertinente considerar que, mau grado a boa vontade e dedicação manifestadas em muitos casos,  os capitães milicianos graduados (de proveta, como então se dizia, por graça) jamais poderiam deter o mesmo capital de experiência e de formação que normalmente reúne um profissional. Nem tal seria de esperar, conquanto justo é reconhecer que muitos desses capitães souberam dignificar o seu posto e a sua missão. Todavia, não fosse esse recurso a que se lançou mão nos últimos 3 anos da Guerra, o Exército ou claudicaria notoriamente ou entrava num processo de  acelerada degradação por manifesta carência de quadros  para o preenchimento da função de comandante de companhia. Vale dizer que esse recurso pode ter servido para adiar a revolta militar de 25 de Abril, já que esta foi, numa primeira fase, a expressão de um descontentamento corporativo, por esgotamento físico e psicológico dos quadros permanentes, agravado por total perda de confiança no poder político. Este parecia apostar numa derrota militar, para poder atribuir culpas do insucesso político às suas Forças Armadas.
Quando integrámos e formámos em Évora as unidades do nosso Batalhão, em 1971, o cenário era mais ou menos o que acabei de caracterizar. Predominava um caldo de cultura político-social  em que já boiavam indisfarçáveis os germes da dissolução de um Regime que fora avesso a  acertar o passo com a História do Mundo. Um Regime desacreditado internacionalmente, incapaz de  fazer uma autognose e de ler os sinais do tempo. E que, sobretudo, parecia relutante em reconhecer o extremo limite de depauperação a que tinham chegado as suas Forças Armadas.

No entanto, apesar do cenário atrás esboçado, lá embarcámos para o Niassa Oriental/Moçambique, convencidos de que a nós, militares, não compete tecer juízos e conjecturas sobre  razões de Estado que são prerrogativa de quem governa, de quem detém o poder político. Ontem como hoje, é este o sentimento de que são imbuídas as Forças Armadas de um qualquer  país democrático. Todavia, o regime não era democrático, dirão alguns. É certo, mas a mentalidade institucional das Forças Armadas estriba-se em princípios éticos que lhes são sagrados e não podem admitir outra postura, a menos que se chegue a um ponto extremo de degradação e corrosão político-social  em que elas não terão outro recurso senão intervir para salvar a dignidade da Nação. E foi isso mesmo que esteve na origem da revolta militar de 25 de Abril, que evoluiu acto-contínuo para uma revolução no sentido literal, como todos sabemos.

Deixámos o Niassa em Maio de 1974, sendo a minha companhia rendida por outra que tinha participado em Lisboa em patrulhamentos de rua que se seguiram ao golpe militar do 25 de Abril. Essa e outras companhias destinadas a render unidades no Ultramar tomaram parte nesse tipo de missões em Lisboa, mas ficaram irremediavelmente marcadas pelos germes da revolução, tanto no bom como no mau sentido. Do mau apercebi-me logo quando a recebi onde estava, no mato profundo. Os soldados e alguns quadros inferiores apresentaram-se com pouco aprumo militar e denotando um comportamento a descambar para a indisciplina, não tardando a reparar que o comandante da companhia e os subalternos estavam aparentemente fragilizados. Na véspera de deixarmos o local, um soldado, minha ordenança, disse-me: “Sabe, meu capitão, os gajos desta companhia andam a dizer que quando saírem os “velhinhos” vão mostrar ao seu capitão e oficiais como é que vão ser as regras”. Fiquei estupefacto e não me surpreendeu, um ano depois, tomar conhecimento de um inacreditável episódio ocorrido com essa companhia, que passo a narrar.
Um certo dia, e quando as negociações para a descolonização estavam ainda em curso, uma força da FRELIMO aproximou-se dos arredores do quartel dessa companhia, com intenções não muito claras mas em que talvez não houvesse qualquer propósito bélico. Os furriéis e os soldados, na sua maioria já “revolucionários”, temeram o pior e resolveram o inconcebível. Prenderam o seu capitão e os oficiais subalternos e, precipitadamente, embarcaram em todas as viaturas disponíveis, fugindo desordeiramente em direcção à localidade mais próxima, uma povoação chamada Marrupa, onde havia um comando de Batalhão. A população local, temendo o pior, optou também pela debandada, ela que antes depositara toda a confiança na força militar antiga e suas antecessoras, com as quais, aliás, conviveram sempre em  harmonia e sem incidentes. Os que puderam enfiaram-se no espaço sobrante das viaturas militares, outros fugiram mesmo a pé, nomeadamente os guardas cipaios (guardas administrativos), que mais do que ninguém teriam razões para recear represálias da FRELIMO, visto que não só serviram o administrador civil  local como foram os guias no terreno da maior parte das operações militares. O administrador ficou no seu posto, aguardando o desfecho dos acontecimentos. Muitos anos mais tarde, viria a encontrá-lo em Lisboa e contou-me mais pormenores do acontecimento, que agora não vêm a propósito. Disse-me que não foi molestado pelos homens da FRELIMO e que estes confessaram a sua perplexidade pela debandada dos militares  e de grande parte da população. Ao ouvir tudo isto, fui invadido de uma enorme tristeza ao lembrar-me daqueles guardas cipaios que nos guiavam pelo mato dentro nas operações militares, numa relação de mútua confiança e lealdade. Como foi possível abandoná-los? Em Moçambique como na Guiné ou Angola? Então pronunciei intimamente esta sentença: um povo que se respeita e se orgulha da sua História jamais poderia cometer semelhante ingratidão e cobardia. Uma vergonha!

Isto que acabo de contar é, de facto, um minúsculo exemplo das razões que levaram o insuspeito historiador António José Saraiva (1917-1993)  a escrever estas palavras no artigo que publicou no Diário de Notícias em 1979, intitulado “O 25 de Abril e a História”:

 “Se alguém quisesse acusar os portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril. Na perspectiva de então havia dois problemas principais a resolver com urgência. Eram eles a descolonização e a liquidação do antigo regime. Quanto à descolonização havia trunfos para a realizar em boa ordem e com a vantagem para ambas as partes: o Exército Português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a exposta no livro Portugal e o Futuro do general Spínola, que tivera a aceitação nacional e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de negociações. As possibilidades eram ou um acordo entre as duas partes, ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada e honrosa. Todavia, o acordo não se realizou e retirada não houve mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. Os militares portugueses, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir. Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e inqualificável deve-se a duas causas:

Uma foi que o PCP, infiltrado no Exército, não estava interessado num acordo nem numa retirada em ordem, mas num colapso imediato que fizesse cair esta parte da África na zona soviética. O essencial era não dar tempo de resposta às potências ocidentais. De facto, o que aconteceu nas antigas colónias portuguesas insere-se na estratégia africana da URSS, como os acontecimentos subsequentes vieram mostrar;

Outra causa foi a desintegração da hierarquia militar a que a insurreição dos capitães deu início e que o MFA explorou ao máximo, quer por cálculo partidário, quer por demagogia, para recrutar adeptos no interior das Forças Armadas. Era natural que os capitães quisessem voltar depressa para casa. Os agentes do MFA exploraram e deram cobertura ideológica a esse instinto das tripas, justificaram honrosamente a cobardia que se lhe seguiu.”

O que é dito por António José Saraiva, ou apenas insinuado, faz-me lembrar as seguintes palavras do general Franco quando lhe deram a notícia do golpe militar ocorrido em Portugal: “Ah, não vai acontecer nada de importante porque eles são cobardes”. Ou foram estas as palavras do Caudilho ou foram outras similares, mas a acusação de cobardia era bem explícita e intencional.
Ora, se tem algum cabimento a afirmação, caberia a alguém mais capacitado passar em revista este libelo de cobarde e encontrar-lhe possíveis causas psicológicas, sociológicas ou antropológicas, ao passo que o desabafo de Franco poderemos também ter de o pôr na conta de um qualquer insanável recalcamento que a história do conflito entre os dois povos peninsulares explica sem margem para dúvidas. Penso que qualquer historiador isento poderá fazer toda a sorte de extrapolações, mas certamente que o apodo de cobarde em lugar nenhum encontrará razões para se colar ao povo português.
Dito isto, e uma vez que, para António José  Saraiva, o 25 de Abril terá feito eclodir as nossas fraquezas, inclusivamente a da cobardia, parece assim implícito que a “longa noite fascista” teve ao menos o mérito de uma domesticação psicológica, a ponto de obnubilar debilidades congénitas porventura ignoradas ou simplesmente adormecidas. Retrocedendo aos tempos do ante-Liberalismo, séculos e séculos sucessivos,  e por análogo raciocínio, será lícito perguntar se não foi a ausência das liberdades políticas  que permitiu páginas da história portuguesa em que tudo se pode encontrar menos cobardia, pusilanimidade ou conformismo com o destino.
Bem, pode ser prematura a extrapolação, mas é bem possível que tenhamos uma certa dificuldade genética em lidar com a democracia e as liberdades cívicas, pois que é a partir do Liberalismo que os nossos problemas parecem começar a agudizar-se, pela simples razão de, no confronto livre e aberto de ideias, raramente alcançarmos a percepção de que para lá das divergências ideológicas prevalece inapelavelmente o interesse nacional. Salazar percebeu isso e se não colocou o país entre os mais prósperos da Europa teve ao menos o mérito de reorganizar uma casa que a I República deixara em fanicos. Nenhum historiador pode negá-lo.

Pois, cabe perguntar  por que razão os mesmos militares, filhos do mesmo povo que, estoicamente, aguentou durante 13 anos uma guerra em 3 teatros de operações, viriam a ter comportamentos tão indignos de si próprios como da sua História?  Culpa dos militares e do povo?  E podemos rotular de cobardes muitos comportamentos indignos que macularam a honra de alguns sectores das Forças Armadas naqueles acontecimentos que já se perdem na memória dos 35 anos já decorridos?
É muito complicado psicanalisar certos comportamentos gerados pela confusão e complexidade dos fenómenos sociais, mas não evito denunciar esta tríade de razões: imaturidade cívica; ausência de um vincado sentimento nacionalista; inaptidão genética para viver responsavelmente em democracia. Porém, o que posso assegurar é que em duas comissões em África, uma em Angola e outra em Moçambique, nenhum soldado meu evidenciou alguma vez atitudes ou comportamentos sintomáticos de cobardia. Medo da morte todos o temos, em maior ou menor grau, pois faz parte do instinto de sobrevivência. Mas o soldado português, dum modo geral, segue atrás do seu superior se ele for o primeiro a dar o exemplo perante o perigo. Era eu um jovem alferes, e ouvi a um coronel velhote (de outros tempos) dizer que o soldado português não morre pela pátria, mas sim pelo seu superior. Penso que esta afirmação diz tudo sobre certa idiossincrasia nacional.

Ora, o que aconteceu em Mecula, região onde soubemos honrar a nossa condição militar, é que essa companhia que nos rendeu já não tinha qualquer exemplo a seguir. Nem provavelmente entre os seus quadros, nem, sobretudo, na estrutura hierárquica das forças armadas. Tudo ruiu estrondosa e repentinamente. Não sei ao certo, mas presumo que ninguém dessa companhia foi julgado por cobardia, traição e deserção, e que tudo ficou em águas de bacalhau. Pois claro, a partir de certa altura, quem ainda tinha moral para julgar as fraquezas de outrem? Os casos de vergonha nacional foram então muitos, e o do Timor foi um dos que mais nos fizeram corar.

Em 25 de Abril, o Partido Comunista português, conforme disse e bem o António José Saraiva, achou que devia hipotecar os interesses do seu país às estratégias expansionistas da União Soviética. Com isso, influenciaram e conspurcaram a mente de alguns militares e a mancha depressa se propagou contaminando as Forças Armadas, até que um rebate de consciência institucional e nacional permitiu trazer de novo a ordem para onde se instalara a confusão e o desnorte (25 de Novembro). 
Hoje, passados 35 anos desde a restauração das liberdades, compete-nos reflectir, discutir, escrever. É o que fez o António José Saraiva nesse seu artigo. Disse ele ainda: “as nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo, merecemo-las, moralmente. Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de Nação independente”.
Penso que, se analisarmos a história do século XX, o seu último quartel poderia porventura oferecer-nos razões para algum optimismo e esperança, pelo simples exercício de comparação e sopeso de factos e acontecimentos vistos na sua relação causal e sequencial. A I República soçobrou e justificou um longo regime autoritário, adiando as esperanças de uma democracia liberal como as outras europeias. O 25 de Abril abriu uma porta e por ela lobrigámos caminhos que vêm sendo trilhados com erros de percurso, sim, mas seguramente com alguns sucessos. Trinta e cinco anos de vida democrática é já um tempo de continuidade que nos dá um certo conforto e confiança, ainda que não possamos deixar de o pôr na conta da salvaguarda que é a integração europeia. Golpes militares e aventuras antidemocráticas ficaram assim mais afastados do nosso horizonte doméstico.
No entanto, reconheço que permanecem ainda alguns sintomas da nossa histórica dificuldade em lidar com a democracia, sendo prova disso o uso desmedido e irresponsável que alguns continuam a fazer das liberdades, assim como a radicalização das querelas e conflitos partidários. Mas estou seguro de que estes 35 anos que passaram são irreversíveis na sua marcha. Com as dificuldades normais de percurso, com as crises e as conjunturas adversas, vamos por certo aprender continuamente, amadurecer a nossa consciência colectiva, corrigir os erros, tornar cada vez mais sólidos os ganhos e as conquistas, rumo ao futuro. E, sobretudo, é tempo de parar de lastimar e lamber feridas constantemente.



Tomar, Abril de 2009

Adriano Miranda Lima





0 comentários:

Enviar um comentário