Proponho-me
falar do que aconteceu à força militar que rendeu, em Maio de 1974, em Mecula, Niassa Oriental /Moçambique,
a companhia que eu comandei no local e região durante 2 anos.
O
depoimento que se segue não é determinado por qualquer motivação política ou
ideológica. Apenas busca uma certa perspectiva da História para lograr a
explicação e o entendimento para alguns factos da vida colectiva portuguesa.
Toda
a nossa geração e a dos nossos pais nasceram e/ou viveram sob o regime do
Estado Novo, sem vislumbrar outro horizonte político senão aquele que Salazar
nos binoculava na solidão do seu gabinete em S. Bento. A trindade
Deus, Pátria e Família regulava o nosso quotidiano e balizava o nosso destino.
Os princípios que o regime nos instilava desde berço procuravam convencer-nos
de que Portugal era “uno” e não se
limitava ao território continental europeu. Tudo, na aparência, assemelhava-se
a um sonho lindo e legítimo, orgulho da Nação.
Contudo,
veja-se que não foi o regime de Salazar o construtor dessa visão e o mentor da
sua perpetuação. Essa ideia é de séculos e remonta à época quinhentista, em que o Portugal
pequenino entrou para a história universal, descobrindo terras pelo mundo fora
e revolucionando a visão que a Europa tinha então do espaço universal.
Construiu um império com domínios
territoriais em África, na América do Sul, na Ásia e na Oceânia. Houve alturas
em que deu cartas ao mundo, dominando o comércio marítimo internacional até ser
destronado por potências de maior envergadura geográfica e demográfica. Mas
cometeu erros graves e de consequências irreversíveis, como a perseguição e a expulsão da comunidade
judaico-portuguesa nos reinados de D. Manuel I e D. João III, e mesmo mais
tarde, depois da restauração da independência. Ora, os judeus eram os
controladores do comércio nacional e da banca de então, com ramificação de
interesses em toda
a Europa. Além disso, os judeus detinham grande parte do
conhecimento científico no domínio da arte de navegação e da cartografia. Foram
durante o auge da nossa História uma massa crítica importantíssima.
Expulsámo-los e foram colocar os seus serviços a favor de potências que
eram nossas adversárias ou concorrentes
no comércio mundial, como a Inglaterra e os Países Baixos. E é a partir daí que
começa a decair a grandeza a que Portugal se alcandorara.
Todo
este intróito serve apenas para dizer que quando integrámos as primeiras forças
expedicionárias à África, íamos convencidos de defender legitimamente parcelas do
território nacional. E por elas dar a vida se necessário, como é lema da
condição militar. No entanto, a seguir a II Guerra Mundial, as potências
europeias colonizadoras haviam iniciado um processo de descolonização, coisa
que não passava então pela cabeça de Salazar e do seu Regime. Em fins da década
de 1950, começaram a surgir os movimentos de libertação das nossas colónias,
encabeçados por nacionalistas, convictos dos seus ideais, uns, ou simples
instrumentos de interesses estrangeiros, outros. A partir da década de 1960,
intensificou-se a pressão internacional contra Portugal, que, no entanto, não
desistia da sua visão unilateral sobre o problema das colónias, jamais
aceitando qualquer negociação com os movimentos de libertação.
Os
militares dos quadros permanentes e os militares de conscrição (milicianos e
praças) que integraram as primeiras unidades mobilizadas para Angola embarcaram
nos navios Vera Cruz e Niassa imbuídos de um espírito de missão
alicerçado no sentimento de patriotismo, até porque a princípio a crença
radicada nos espíritos mais lúcidos e esperançosos era a de que a missão das
forças militares seria aguentar a posse das colónias, mantendo a ordem e a
segurança das populações, enquanto o Governo gizaria uma solução política para
o conflito. Isto porque era e é dos livros que as guerras subversivas não têm
solução militar, como a História o demonstra à saciedade.
Combati
em Angola, como alferes, entre 1965 e 1967, e posso garantir que de um modo
geral os militares aceitavam o sacrifício que lhes era imposto.
Mas,
a partir de 1970, o panorama começou a modificar-se sob vários ângulos. Os
quadros permanentes começaram a dar sinais nítidos de exaustão física e
psicológica, desesperando-se por uma solução política, à medida que o tempo passava
e o Regime mantinha o mesmo discurso de renitência, cavando cada vez mais fundo
o seu isolamento internacional. A oposição política ao Regime fazia o que
podia, sobretudo no exílio estrangeiro, erguendo a voz cada vez mais
altissonante contra o sufoco das
liberdades e contra uma guerra colonial
sem sentido e contrária aos ventos da História. Nas unidades militares da
Metrópole, comecei a notar, sobretudo a partir de 1970, que alguns oficiais
milicianos recém-incorporados não se coibiam de emitir, em conversas privadas,
a sua opinião contra a guerra colonial. Devo confessar que eu próprio, embora
já oficial do quadro permanente, compartilhei uma ou outra vez de alguns
desabafos e opiniões, tendo criado
cumplicidade, e até amizade, com um colega miliciano, cujas qualidades
humanas e atributos intelectuais muito eu apreciava. Ou seja, o estado moral
entre as tropas já não era o de outrora. Desde há alguns anos, começara a
diminuir consideravelmente a entrada de cidadãos para a carreira das armas,
quer para oficiais quer para sargentos. A partir de 1970, em virtude da falta
de capitães do quadro permanente para comandar as companhias operacionais (alguns
já iam na segunda ou terceira comissão), iniciou-se um processo de formação de
capitães milicianos para o comando das companhias. Entre os cadetes dos cursos de oficiais milicianos,
seleccionavam-se os mais aptos e bem classificados e, após uma instrução de
especialidade mais apurada, iam fazer um estágio de 6 meses numa companhia
operacional em qualquer das colónias em conflito. Regressados à Metrópole,
frequentavam um curso para capitão miliciano, após o que eram mobilizados a
comandar uma companhia, graduados no posto de capitão.
No
nosso Batalhão, em Moçambique, um dos comandantes de companhia era oficial
miliciano dessa formação, tendo eu, por coincidência, sido seu instrutor no
primeiro ciclo da sua formação. Refira-se que, embora a sua visível
inexperiência, procuraram fazer o seu melhor. Julgo que não será impertinente considerar
que, mau grado a boa vontade e dedicação manifestadas em muitos casos, os capitães milicianos graduados (de proveta,
como então se dizia, por graça) jamais poderiam deter o mesmo capital de
experiência e de formação que normalmente reúne um profissional. Nem tal seria
de esperar, conquanto justo é reconhecer que muitos desses capitães souberam
dignificar o seu posto e a sua missão. Todavia, não fosse esse recurso a que se
lançou mão nos últimos 3 anos da Guerra, o Exército ou claudicaria notoriamente
ou entrava num processo de acelerada
degradação por manifesta carência de quadros
para o preenchimento da função de comandante de companhia. Vale dizer
que esse recurso pode ter servido para adiar a revolta militar de 25 de Abril,
já que esta foi, numa primeira fase, a expressão de um descontentamento
corporativo, por esgotamento físico e psicológico dos quadros permanentes,
agravado por total perda de confiança no poder político. Este parecia apostar
numa derrota militar, para poder atribuir culpas do insucesso político às suas
Forças Armadas.
Quando
integrámos e formámos em Évora as unidades do nosso Batalhão, em 1971, o
cenário era mais ou menos o que acabei de caracterizar. Predominava um caldo de
cultura político-social em que já
boiavam indisfarçáveis os germes da dissolução de um Regime que fora avesso
a acertar o passo com a História do
Mundo. Um Regime desacreditado internacionalmente, incapaz de fazer uma autognose e de ler os sinais do
tempo. E que, sobretudo, parecia relutante em reconhecer o extremo limite de
depauperação a que tinham chegado as suas Forças Armadas.
No
entanto, apesar do cenário atrás esboçado, lá embarcámos para o Niassa Oriental/Moçambique,
convencidos de que a nós, militares, não compete tecer juízos e conjecturas
sobre razões de Estado que são
prerrogativa de quem governa, de quem detém o poder político. Ontem como hoje,
é este o sentimento de que são imbuídas as Forças Armadas de um qualquer país democrático. Todavia, o regime não era
democrático, dirão alguns. É certo, mas a mentalidade institucional das Forças
Armadas estriba-se em princípios éticos que lhes são sagrados e não podem
admitir outra postura, a menos que se chegue a um ponto extremo de degradação e
corrosão político-social em que elas não
terão outro recurso senão intervir para salvar a dignidade da Nação. E foi isso
mesmo que esteve na origem da revolta militar de 25 de Abril, que evoluiu
acto-contínuo para uma revolução no sentido literal, como todos sabemos.
Deixámos o Niassa em Maio
de 1974, sendo a minha companhia rendida por outra que tinha participado em
Lisboa em patrulhamentos de rua que se seguiram ao golpe militar do 25 de Abril.
Essa e outras companhias destinadas a render unidades no Ultramar tomaram parte
nesse tipo de missões em Lisboa, mas ficaram irremediavelmente marcadas pelos
germes da revolução, tanto no bom como no mau sentido. Do mau apercebi-me logo
quando a recebi onde estava, no mato profundo. Os soldados e alguns quadros
inferiores apresentaram-se com pouco aprumo militar e denotando um comportamento
a descambar para a indisciplina, não tardando a reparar que o comandante da
companhia e os subalternos estavam aparentemente fragilizados. Na véspera de
deixarmos o local, um soldado, minha ordenança, disse-me: “Sabe, meu capitão,
os gajos desta companhia andam a dizer que quando saírem os “velhinhos” vão
mostrar ao seu capitão e oficiais como é que vão ser as regras”. Fiquei
estupefacto e não me surpreendeu, um ano depois, tomar conhecimento de um
inacreditável episódio ocorrido com essa companhia, que passo a narrar.
Um certo dia, e quando as negociações para a descolonização
estavam ainda em curso, uma força da FRELIMO aproximou-se dos arredores do
quartel dessa companhia, com intenções não muito claras mas em que talvez não
houvesse qualquer propósito bélico. Os furriéis e os soldados, na sua maioria
já “revolucionários”, temeram o pior e resolveram o inconcebível. Prenderam o
seu capitão e os oficiais subalternos e, precipitadamente, embarcaram em todas
as viaturas disponíveis, fugindo desordeiramente em direcção à localidade mais
próxima, uma povoação chamada Marrupa, onde havia um comando de Batalhão. A
população local, temendo o pior, optou também pela debandada, ela que antes
depositara toda a confiança na força militar antiga e suas antecessoras, com as
quais, aliás, conviveram sempre em harmonia e sem incidentes. Os que puderam
enfiaram-se no espaço sobrante das viaturas militares, outros fugiram mesmo a
pé, nomeadamente os guardas cipaios (guardas administrativos), que mais do que
ninguém teriam razões para recear represálias da FRELIMO, visto que não só
serviram o administrador civil local
como foram os guias no terreno da maior parte das operações militares. O
administrador ficou no seu posto, aguardando o desfecho dos acontecimentos.
Muitos anos mais tarde, viria a encontrá-lo em Lisboa e contou-me mais
pormenores do acontecimento, que agora não vêm a propósito. Disse-me que não
foi molestado pelos homens da FRELIMO e que estes confessaram a sua
perplexidade pela debandada dos militares
e de grande parte da população. Ao ouvir tudo isto, fui invadido de uma
enorme tristeza ao lembrar-me daqueles guardas cipaios que nos guiavam pelo
mato dentro nas operações militares, numa relação de mútua confiança e
lealdade. Como foi possível abandoná-los? Em Moçambique como na Guiné ou
Angola? Então pronunciei intimamente esta sentença: um povo que se respeita e
se orgulha da sua História jamais poderia cometer semelhante ingratidão e
cobardia. Uma vergonha!
Isto que acabo de contar é, de facto, um minúsculo exemplo das
razões que levaram o insuspeito historiador António José Saraiva
(1917-1993) a escrever estas palavras no
artigo que publicou no Diário de Notícias em 1979, intitulado “O 25 de Abril e
a História”:
“Se alguém quisesse acusar
os portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de
brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos
acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril. Na perspectiva de então havia
dois problemas principais a resolver com urgência. Eram eles a descolonização e
a liquidação do antigo regime. Quanto à descolonização havia trunfos para a
realizar em boa ordem e com a vantagem para ambas as partes: o Exército
Português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das
populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha
eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a
exposta no livro Portugal e o Futuro do general Spínola, que tivera a aceitação
nacional e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de
negociações. As possibilidades eram ou um acordo entre as duas partes, ou, no
caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada
e honrosa. Todavia, o acordo não se realizou e retirada não houve mas sim uma
debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. Os militares portugueses, sem
nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado,
abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha
de que há memória desde Alcácer Quibir. Pelo que agora se conhece, este
comportamento inesquecível e inqualificável deve-se a duas causas:
Uma foi que o PCP,
infiltrado no Exército, não estava interessado num acordo nem numa retirada em
ordem, mas num colapso imediato que fizesse cair esta parte da África na zona
soviética. O essencial era não dar tempo de resposta às potências ocidentais.
De facto, o que aconteceu nas antigas colónias portuguesas insere-se na
estratégia africana da URSS, como os acontecimentos subsequentes vieram
mostrar;
Outra causa foi a
desintegração da hierarquia militar a que a insurreição dos capitães deu início
e que o MFA explorou ao máximo, quer por cálculo partidário, quer por
demagogia, para recrutar adeptos no interior das Forças Armadas. Era natural
que os capitães quisessem voltar depressa para casa. Os agentes do MFA
exploraram e deram cobertura ideológica a esse instinto das tripas,
justificaram honrosamente a cobardia que se lhe seguiu.”
O que é dito por António José Saraiva, ou apenas insinuado, faz-me
lembrar as seguintes palavras do general Franco quando lhe deram a notícia do
golpe militar ocorrido em Portugal: “Ah, não vai acontecer nada de importante
porque eles são cobardes”. Ou foram estas as palavras do Caudilho ou foram
outras similares, mas a acusação de cobardia era bem explícita e intencional.
Ora, se tem algum cabimento a afirmação, caberia a alguém mais
capacitado passar em revista este libelo de cobarde e encontrar-lhe possíveis
causas psicológicas, sociológicas ou antropológicas, ao passo que o desabafo de
Franco poderemos também ter de o pôr na conta de um qualquer insanável
recalcamento que a história do conflito entre os dois povos peninsulares
explica sem margem para dúvidas. Penso que qualquer historiador isento poderá
fazer toda a sorte de extrapolações, mas certamente que o apodo de cobarde em
lugar nenhum encontrará razões para se colar ao povo português.
Dito isto, e uma vez que, para António José Saraiva, o 25 de Abril terá feito eclodir as
nossas fraquezas, inclusivamente a da cobardia, parece assim implícito que a
“longa noite fascista” teve ao menos o mérito de uma domesticação psicológica,
a ponto de obnubilar debilidades congénitas porventura ignoradas ou
simplesmente adormecidas. Retrocedendo aos tempos do ante-Liberalismo, séculos
e séculos sucessivos, e por análogo
raciocínio, será lícito perguntar se não foi a ausência das liberdades
políticas que permitiu páginas da
história portuguesa em que tudo se pode encontrar menos cobardia, pusilanimidade
ou conformismo com o destino.
Bem, pode ser prematura a extrapolação, mas é bem possível que
tenhamos uma certa dificuldade genética em lidar com a democracia e as
liberdades cívicas, pois que é a partir do Liberalismo que os nossos problemas
parecem começar a agudizar-se, pela simples razão de, no confronto livre e
aberto de ideias, raramente alcançarmos a percepção de que para lá das
divergências ideológicas prevalece inapelavelmente o interesse nacional.
Salazar percebeu isso e se não colocou o país entre os mais prósperos da Europa
teve ao menos o mérito de reorganizar uma casa que a I República deixara em
fanicos. Nenhum historiador pode negá-lo.
Pois, cabe perguntar por
que razão os mesmos militares, filhos do mesmo povo que, estoicamente, aguentou
durante 13 anos uma guerra em 3 teatros de operações, viriam a ter
comportamentos tão indignos de si próprios como da sua História? Culpa dos militares e do povo? E podemos rotular de cobardes muitos
comportamentos indignos que macularam a honra de alguns sectores das Forças
Armadas naqueles acontecimentos que já se perdem na memória dos 35 anos já
decorridos?
É muito complicado psicanalisar certos comportamentos gerados pela
confusão e complexidade dos fenómenos sociais, mas não evito denunciar esta
tríade de razões: imaturidade cívica; ausência de um vincado sentimento
nacionalista; inaptidão genética para viver responsavelmente em democracia.
Porém, o que posso assegurar é que em duas comissões em África, uma em Angola e
outra em Moçambique, nenhum soldado meu evidenciou alguma vez atitudes ou
comportamentos sintomáticos de cobardia. Medo da morte todos o temos, em maior
ou menor grau, pois faz parte do instinto de sobrevivência. Mas o soldado
português, dum modo geral, segue atrás do seu superior se ele for o primeiro a
dar o exemplo perante o perigo. Era eu um jovem alferes, e ouvi a um coronel
velhote (de outros tempos) dizer que o soldado português
não morre pela pátria, mas sim pelo seu superior. Penso que esta afirmação diz
tudo sobre certa idiossincrasia nacional.
Ora, o que aconteceu em Mecula, região onde soubemos honrar a
nossa condição militar, é que essa companhia que nos rendeu já não tinha
qualquer exemplo a seguir. Nem provavelmente entre os seus quadros, nem,
sobretudo, na estrutura hierárquica das forças armadas. Tudo ruiu estrondosa e
repentinamente. Não sei ao certo, mas presumo que ninguém dessa companhia foi
julgado por cobardia, traição e deserção, e que tudo ficou em águas de
bacalhau. Pois claro, a partir de certa altura, quem ainda tinha moral para
julgar as fraquezas de outrem? Os casos de vergonha nacional foram então
muitos, e o do Timor foi um dos que mais nos fizeram corar.
Em 25 de Abril, o Partido Comunista português, conforme disse e
bem o António José Saraiva, achou que devia hipotecar os interesses do seu país
às estratégias expansionistas da União Soviética. Com isso, influenciaram e
conspurcaram a mente de alguns militares e a mancha depressa se propagou
contaminando as Forças Armadas, até que um rebate de consciência institucional
e nacional permitiu trazer de novo a ordem para onde se instalara a confusão e
o desnorte (25 de Novembro).
Hoje, passados 35 anos desde a restauração das liberdades,
compete-nos reflectir, discutir, escrever. É o que fez o António José Saraiva
nesse seu artigo. Disse ele ainda: “as
nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo,
merecemo-las, moralmente. Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos
capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos
considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de Nação
independente”.
Penso que, se analisarmos a história do século XX, o seu último
quartel poderia porventura oferecer-nos razões para algum optimismo e esperança,
pelo simples exercício de comparação e sopeso de factos e acontecimentos vistos
na sua relação causal e sequencial. A I República soçobrou e justificou um
longo regime autoritário, adiando as esperanças de uma democracia liberal como
as outras europeias. O 25 de Abril abriu uma porta e por ela lobrigámos
caminhos que vêm sendo trilhados com erros de percurso, sim, mas seguramente
com alguns sucessos. Trinta e cinco anos de vida democrática é já um tempo de
continuidade que nos dá um certo conforto e confiança, ainda que não possamos
deixar de o pôr na conta da salvaguarda que é a integração europeia. Golpes
militares e aventuras antidemocráticas ficaram assim mais afastados do nosso
horizonte doméstico.
No entanto, reconheço que permanecem ainda alguns sintomas da nossa
histórica dificuldade em lidar com a democracia, sendo prova disso o uso
desmedido e irresponsável que alguns continuam a fazer das liberdades, assim
como a radicalização das querelas e conflitos partidários. Mas estou seguro de
que estes 35 anos que passaram são irreversíveis na sua marcha. Com as
dificuldades normais de percurso, com as crises e as conjunturas adversas,
vamos por certo aprender continuamente, amadurecer a nossa consciência
colectiva, corrigir os erros, tornar cada vez mais sólidos os ganhos e as
conquistas, rumo ao futuro. E, sobretudo, é tempo de parar de lastimar e lamber
feridas constantemente.
Tomar, Abril de 2009
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