terça-feira, 2 de agosto de 2016
SENTIMENTOS RETROACTIVOS

Aquela “rapariga branca”


     De vez em quando, acordo de madrugada e sou repentinamente assaltado pela recordação de episódios remotos da minha vida. Guardados na memória, de onde nunca saíram nem se deliram nos seus pormenores, estão arrumados em prateleiras que a mente constrói para não colapsar sob o peso do quanto vai sendo acumulado.
     Em Julho de 1967, era, desde há quase dois anos, comandante de um pelotão no Leste de Angola (Zona de Intervenção Leste), que se tornara de intensa actividade de guerrilha, a partir do momento em que o MPLA resolveu abrir a chamada “Frente Leste”, reduzindo a pressão no Norte. No decurso de várias acções, diferidas no tempo, o meu pelotão havia perdido em combate duas praças, um cabo e um soldado, e sofrido dois feridos com alguma gravidade, mas que regressaram à actividade depois de hospitalizados e recuperados. O pelotão, que era independente, isto é, não integrado em companhia, estava de reforço a um batalhão sediado num lugar que se chamava Gago Coutinho, hoje designado Lumbala Nguingo.
     Por essa altura da nossa comissão, entendendo os comandos superiores que as tropas da zona já tinham a dose suficiente de desgaste físico e moral, foi ordenada a sua rendição e transferência para região mais tranquila. O batalhão foi para as zonas de Benguela, Lobito e Moçâmedes, onde não havia guerra, e o meu pelotão para Luanda, integrando a Reserva da Região Militar de Angola. Foi assim que deixámos o mato e rumámos a Luanda, num percurso terrestre de quase dois mil quilómetros, tendo ficado aquartelados no Campo Militar do Grafanil, uma mega infra-estrutura militar localizada nos arredores daquela cidade. Para trás ficaram dezanove meses de isolamento e constante tensão psíquica.
     No Grafanil, ficámos disponíveis para a escala de missões de escolta a colunas de reabastecimento para a Zona de Intervenção Norte. Mas foi sol de pouca dura a permanência em Luanda. Um mês depois, éramos transferidos para a Fazenda Tentativa, um colossal empreendimento agro-industrial, cerca de sessenta quilómetros a norte de Luanda. A Fazenda Tentativa integrava uma extensíssima plantação de cana-de-açúcar, cujos canaviais se espraiavam pelas margens do rio Dande, e uma fábrica para a transformação no produto final – o açúcar. Tudo isso pertencia à Companhia de Açúcar de Angola, que exportava o produto para todos os cantos do império. Nunca tinha visto um empreendimento daquela extensão, possuidor de muitas valências e autónomo nas suas funcionalidades orgânicas e sociais. Com efeito, a Fazenda possuía apoio sanitário próprio, igreja, hospital, farmácia, laboratório de análises, escola, um cinema ao ar livre, e até um improvisado campo de futebol. A infra-estrutura fabril, com vários armazéns, era enorme e debitava continuamente na sua função de produzir açúcar e outros derivados, mas com o inconveniente de poluir o ar com a fuligem das suas chaminés, conspurcando as roupas de quem estava nas imediações. A cana crescia livremente nos extensos hectares formando um matagal intransponível, a qual, depois de cortada, era transportada em pequenos vagões que rolavam por carris de ferro puxados por tractores desde o local da colheita até à fábrica.
     A mão-de-obra agrícola era privativa, instalada num grande aldeamento tipo roça, constituído por modestas habitações de alvenaria para alojar os trabalhadores e suas famílias, que seriam de muitas centenas se não milhares. A direcção e os funcionários dos serviços administrativos viviam em moradias com os requisitos normais de conforto. Enfim, aquele complexo surpreendia pela sua grandiosidade e pela modernidade da sua concepção, embora se questione a óbvia exploração da mão-de-obra barata que era garantida pela população indígena, e também por cabo-verdianos, que suponho terão ido para Angola com contratos que não difeririam muito dos das roças de S. Tomé no que concerne à questão laboral. Tinham, é certo, habitação e assistência sanitária, e eram-lhes fornecidos alguns géneros alimentícios essenciais (farinha, peixe seco, óleos), mas a remuneração monetária era indubitavelmente de valor irrisório, como viria a saber.
     Em instalações adaptadas dentro do perímetro da Fazenda, encontrava-se sediado um comando de batalhão, apenas com uma das suas companhias orgânicas, estando as restantes três aquarteladas no Grafanil. Esse comando de batalhão exercia o comando de um subsector militar naquela região, o qual integrava ainda duas companhias de origem diferente, instaladas, respectivamente, na vila do Caxito e na localidade das Mabubas, onde havia uma barragem hidroeléctrica.
     Toda esta sucinta descrição serve para introduzir o que vem a seguir, que é do foro mais íntimo. Na Fazenda Tentativa, onde reencontrei alguns camaradas alferes que eu já conhecia, por terem embarcado comigo para Angola na mesma viagem do navio Vera Cruz, ao tempo transformado em transporte de tropas para a guerra do Ultramar, foi-me proporcionado algum retorno à “civilização”. No entanto, apesar da situação de descompressão que passámos a fruir, fomos empenhados em certas missões, como aconteceu com a protecção militar à safra do café na região de Uíge e a ocupação durante um mês do destacamento militar da Barra do Dande, junto ao mar.
     Depois da minha chegada à Tentativa, soube logo que havia dois cabo-verdianos funcionários dos serviços administrativos da Fábrica, ambos naturais de Santo Antão e pertencentes a duas famílias conhecidas da Vila da Ribeira Grande, respectivamente, de apelidos Medina e Benrós, com os quais viria a estabelecer contacto e relações pessoais, tendo, inclusivamente, sido convidado para o almoço do dia de Natal em casa do Benrós, que era casado. Ambos eram bem mais velhos que eu, pelo que não havia um conhecimento pessoal que remontasse ao tempo do liceu Gil Eanes.
     Certo dia, um alferes disse-me: − “Lima, há uma rapariga cabo-verdiana branca entre os pretos do aldeamento dos trabalhadores. Ela é mais ou menos da nossa idade e parece que vive com um deles. Destoa completamente naquele meio”. Respondi-lhe que podia, de facto, dar-se o caso que lhe atraiu a atenção, já que em Cabo Verde o processo da nossa miscigenação ocasionou e continua a ocasionar os mais diferentes tipos étnicos, embora com predomínio da cor escura. Mais adiantei que na nossa terra, dum modo geral, o comum das pessoas não interioriza a cor da pele como um factor de diferenciação social, sendo até vulgar verem-se pessoas de cor branca em condição muito modesta e outras de tez escura bem instaladas na vida. Prestado este esclarecimento, o tempo foi fluindo, entre as rotinas da vida militar e as horas de ócio. Um dos passatempos era o jogo de cartas, em que o tenente-coronel comandante participava. Bracarense, era homem de poucas palavras e pouco aberto a elucubrações, fossem elas de teor genérico ou, muito menos ainda, de natureza política. Mas um dia, a dado passo da conversa, teve este desabafo: “ Estamos aqui desterrados a guardar tudo isto, que não passa de um negócio de exploração de mão-de-obra barata para não dizer escrava. Os donos vivem principescamente nos seus palacetes no Estoril e em Cascais e estes desgraçados são pagos com uma macheia de farinha e um salário miserável”. Surpreendeu-me ouvir isso de quem ostentava um ar sisudo do alto da sua avantajada estatura.
     Aconteceu que, certo dia, estando eu em frente da instalação que funcionava como messe/bar para os oficiais, apercebi-me de uma jovem mulher que vinha na companhia de outra igualmente jovem. A diferença entre as duas é que uma era branca e outra escura, mas ambas descalças e com vestes modestas, em tudo denunciando-se a sua condição social. A branca poderia, como é normal em Cabo Verde, ser mestiça, mas as suas características pouco ou nada o denunciavam. A outra, embora de tez escura, pareceu-me do tipo cabo-verdiano, pelas feições regulares e até pela sua pose natural. A branca susteve o passo e simulou continuar a conversa com a companheira, mas ficando a olhar detidamente para a minha pessoa, pouco ou nada disfarçando a curiosidade. Tal como eu soube que havia uma cabo-verdiana “branca entre os pretos”, ela, provavelmente, terá tido conhecimento de que havia chegado um oficial cabo-verdiano à guarnição militar. Por momentos, senti-me algo confuso porque a mulher olhava-me da cabeça aos pés, ao passo que eu, pela discrição que me é própria, não correspondia com igual desfaçatez, mas sem deixar de notar que ela possuía um rosto atraente, de tez bem clara, feições regulares e cabelos castanhos lisos e corridos. Seria ela a tal cabo-verdiana “branca” de que me falara o meu camarada? Viria a saber que sim e que ela era do Fogo e vivia com um natural da sua ilha, de outra cor de pele. Admiti que ela poderia estar a trabalhar na Fazenda em trabalhos domésticos e não propriamente na actividade da fábrica ou da plantação.
     Tempos depois, estando eu no cinema da Fazenda a ver um filme dos que ali se projectavam regularmente, verifiquei que a jovem em causa e, supostamente, o marido, ou companheiro, estavam sentados mais à frente e obliquamente ao sítio onde eu me encontrava. De novo, ela voltou a incidir a atenção sobre a minha pessoa, virando constantemente a cabeça para me olhar, pouco se importando com a presença do par ao lado. Houve mesmo uma altura em que este se virou para olhar na mesma direcção, talvez estranhando que a mulher persistisse naquela sua curiosidade.
     Depois disso, não me recordo de ter voltado a encontrar a rapariga no meu trajecto dentro do imenso espaço da Fazenda. Até porque estive afastado da guarnição em duas missões diferentes e prolongadas, como atrás referi. De vez em quando, percorria de jeep a área do empreendimento, passando pelo vasto aldeamento dos assalariados, em tarefas ligadas à fiscalização da segurança militar do perímetro. Será que no meu íntimo a queria reencontrar, sabe-se lá movido por que instigações íntimas? Na verdade, não a esquecera. Sei que arrisco a que se veja nas minhas palavras o recalcamento de um inconfessável desejo secreto. Todavia, não houvera qualquer contacto entre nós, sequer uma conversa, apenas uma silenciosa e tensa curiosidade recíproca, ostensivamente assumida por ela e convenientemente mitigada por mim. Mas é aí que radica uma arreliadora ambiguidade no meu comportamento. Se lhe tivesse prestado uma especial atenção por causa da sua cor, estaria a cair na mesma armadilha mental que o meu camarada alferes. Ambas as raparigas que eu vi pela primeira vez frente à instalação da messe/bar eram cabo-verdianas. O interesse que me poderiam despertar a mim, um cabo-verdiano, só poderia ser em função do seu valor humano e não da cor da pele. Só que uma delas, a branca, é que aparentou uma atitude de interesse focalizado na minha pessoa, suscitado por mera curiosidade ou outro motivo. Daí eu admitir que talvez pudesse ter tido um comportamento diferente para com ela.
     A esse tempo, eu era um jovem tão discreto como hoje sou por natureza, contudo sem a actual capacidade de introspecção, fruto do posterior amadurecimento dado pelo tempo e de uma contínua reflexão sobre o sentido da vida. Hoje, com outro suporte interior, tento reproduzir, psicanaliticamente, e por mera hipótese, o que essa moça terá congeminado com os seus botões ao avistar o alferes conterrâneo. Oriunda de uma terra em que as diferenças étnicas eram quase irrelevantes nas suas consequências mais directas, terá encontrado nas paragens onde passou a viver, uma realidade diferente. Percebeu que havia discriminação pela cor da pele e que a estratificação social não era indiferente àquela condição. No entanto, ela, branca, ou quase, estava entre os “pretos”, sujeita ao mesmo fadário de pobreza e sonhos trancados. Com escassa instrução escolar, estava condenada a viver irremediavelmente no mais baixo patamar de vida, sem que a cor da pele lhe acrescentasse especial valia. Do outro lado, via alguém de tez semelhante à dela e no entanto possuindo um estatuto social diferente, vivendo entre os “brancos”. Porque é que, sendo ambos filhos de terra minguada de recursos, viviam em realidades opostas? Que oportunidades divergentes houve para justificar a deriva dos seus percursos de vida? Claro que as respostas a estas perguntas são do nosso conhecimento. Os trâmites da vida não são lineares, emaranham-se em teias que o destino tece ou o homem lhe proporciona com as suas acções.
     Pois, é pouco provável que a jovem foguense, espírito simples, tenha entrado nesse intrincado campo de cogitações. Naquela idade, os seus impulsos humanos seriam, certamente, tão instintivos e naturais quanto eram então os do jovem alferes. Uma simples curiosidade feminina apenas a terá movido, não a conseguindo conter dentro dos limites das conveniências sociais, ignorando códigos de conduta mais sofisticados. Todavia, hoje penitencio-me de não ter mandado bugiar as convenções ou a prudência que me impediram de tomar a iniciativa de lhe falar para saber algo sobre a sua vida, não necessariamente por causa dela ou por reacção à sua indiscreta curiosidade, mas para saber dos nossos conterrâneos que ali trabalhavam de sol a sol para angariar o sustento. Quem sabe prestar-lhe, a ela e a outros, algum favor pessoal dentro das minhas possibilidades. Em boa verdade, os contactos na Fazenda que me permiti foram com pessoas mais próximas do meu estrato social e cultural. Era a atitude mais cómoda e mais conveniente para quem ainda andava na incipiência do amadurecimento psicológico, mais atraído para o óbvio e o senso comum, sem suficiente consciência de si para lançar âncora em fundos abissais. Embora com o arcaboiço psicológico de quem já tinha convivido com a Senhora Morte, o jovem Adriano ainda dormia a noite toda o sono tranquilo da inocência e não acordava de madrugada assaltado por longínquas recordações de factos e acontecimentos que não foram resolvidos em toda a plenitude da sua humanidade.
     Que é feito dessa jovem conterrânea branca, pobre, de pés descalços, que me fitou demorada e enigmaticamente naquela manhã africana e naquela noite no cinema? Provavelmente seguiu o mesmo destino daquela terra martirizada pela guerra civil e pela selvajaria demencial. Deve ter comido o pão que o diabo amassou, como tantas outras criaturas inocentes e indefesas que sofreram penas e horrores por culpa directa ou indirecta daqueles que as queriam “libertar”. Confortar-me-ia que ela tivesse regressado ao Fogo e reconstituído a sua vida, quem sabe emigrando para a América ou outro destino risonho, deliciando-se com a presença de netos como eu.
     Quando, em Janeiro de 1968, deixei a Fazenda Tentativa para embarcar de regresso à Metrópole, observei pela última vez os extensos canaviais que se perdiam de vista no horizonte, ondulando ao sopro da brisa. Da portentosa riqueza restam hoje apenas destroços, como pude ver em imagens actuais obtidas através da net. Mas o esqueleto de toda aquela infra-estrutura ali permanece como um fantasma que, após a morte física, se obstina em não abandonar o mundo dos vivos. Foi certamente daqueles escombros de memória que emergiu a imagem da conterrânea foguense para acordar o meu espírito na madrugada passada, meio século depois.



Tomar, 1 de Agosto de 2016

Adriano Miranda Lima


1 comentários:

valdemar pereira disse...

O autor foi escrupuloso (ou teria tido medo momentâneo?) e nada fez para saber como vivia a "rapariga branca" sua conterrânea. Hoje deve arrepender-se.
Não o julgo mas... eu agiria diferentemente. Mesmo assim aplaudo o gesto e a narrativa que é, ao fim e ao cabo, um emocionante capitulo da vida de um homem

Enviar um comentário