Mesa Redonda Sobre o Homem cabo-verdiano - 1

segunda-feira, 29 de maio de 2017

1ª Reunião
Princípios básicos da nova Antropologia. O problema da mestiçagem. Discussão.

Presidente: Está aberta a discussão.
Júlio Monteiro: Tenho dois problemas a pôr. Um é sobre uma dúvida, que se liga directamente ao que Sr. Dr. Almerindo Lessa expressou, quando disse que não havia um estudo ´sério sobre a qualificação do mestiço como elemento biológico. Salvo erro, eu li um trabalho do Prof. Mendes Correia, apresentado ao Congresso de Antropologia do Porto, no qual ele fazia um estudo psicossomático da população de Cabo Verde, em confronto com a população portuguesa da Metrópole. Esse confronto foi-nos desfavorável. O Dr. Mendes Correia lidou, ao que parece, com números restritos, alguns cabo-verdianos que tinham ido à exposição do Porto. O Sr. Dr. Almerindo Lessa conhece esse estudo? Gostava que me desse a sua opino sobre o seu valor científico.
Almerindo Lessa: Os trabalhos feitos durante a Exposição Colonial do Porto foram valiosos como demonstração do interesse que à Escola de Antropologia do Porto mereceram esses estudos, mas, do ponto de vista científico, têm um valor restrito, por causa da insignifincia do número de sujeitos observados.
Destacam-se apenas pela prioridade e porque demonstram que nessa data, como já em 1930, o Prof. Mendes Correia e os seus colaboradores estavam informados do interesse antropológico da Bioquímica. Mas, na realidade, não pode ser aceite sem grandes reservas um estudo feito sobre tão poucas unidades.
Júlio Monteiro: A segunda pergunta que desejo fazer é esta: eu li a tese do Prof. Tamagnini. Se eu compreendi o que ele escreveu, o Prof. Tamagnini entende que a Biologia não repele a mestiçagem. Todas as raças se podem cruzar e reproduzir; simplesmente, condena a mestiçagem por razões de ordem política. Qual foi a posição do Congresso do Porto. em relação à tese do Prof. Tamagnini? Fo a pergunta, porque na mesma altura um mestiço – Fausto Duarte – tinha publicado um livro - Auá - que mereceu um prémio literário e que provocou críticas acerbas, entre as quais uma do Prof. Luís de Pina, do Porto. Desejava
sabe
r qual foi a opinião da ciência portuguesa, reunida nesse Congresso, perante o problema.
Almerindo Lessa: Não posso dar uma resposta concreta. No entanto, não deve ter havido discussão, porque o trabalho do Prof. Tamagnini foi uma das conferências plenárias, e essas não eram susceptíveis de discussão.
Júlio Monteiro: Agora uma outra pergunta. O Doutor falou há pouco no mestiço como homem do futuro. Claro está, a mestiçagem não é recente. Parece-me que, sendo muito antiga, esses homens do futuro já deveriam estar formados. Ou quereria referir-se ao homem do futuro que o grupo luso-tropical apresentará no concerto das nações?
Almerindo Lessa: Sempre que eu falo no mestiço do futuro é evidente que me refiro ao mestiço luso-tropical, em que uma das raízes é um natural das regiões intertropicais, seja um amendio ou seja um negro, e a outra é, em princípio, um caucasóide da nossa metrópole.
Júlio Monteiro: Mas acredita nesse homem do futuro como predominando sobre o elemento europeu?
Almerindo Lessa: Acredito, em princípio, que esse homem vai oferecer outras possibilidades. Eu creio que, se se mantiver este sentido de equilíbrio genético, este sentido de adaptação, o homem novo das regiões intertropicais, o mestiço luso-tropical, terá melhores possibilidades de se adaptar e de subsistir nas regiões intertropicais e de aí criar uma civilização. A meu ver, por dois motivos: em primeiro lugar, porque ele vai apresentar, com equilíbrio, as características essenciais das duas raças mães; em segundo lugar, porque ele vai beneficiar neste momento do que faltou ao mestiço de outrora ainda quando teve o mesmo «tempo» mental: das possibilidades da técnica actual.
Júlio Monteiro: Nos seus estudos de agora fez quaisquer investigações de carácter psicossomático?
Almerindo Lessa: Não fiz. Não tinha possibilidade.
Presidente: O Sr. Dr. Almerindo Lessa falou há pouco nas raças superiores ou, melhor, naquelas que se consideram superiores. Estou absolutamente de acordo com a sua opinião de que não existem raças superiores, mas simplesmente povos que por circunstâncias várias, em determinado momento, comandam a civilização.
Há, no entanto, entre todas as raças, ou, melhor, entre todos os povos, um que pelas suas características especiais sempre me impressionou. Refiro-me ao povo judeu, que redigiu grande parte dos princípios da nossa Civilização, ao qual pertencem alguns dos maiores génios em todos os ramos do Saber e da Actividade.
Estou convencido de que eles mesmos, e com um pouco de razão, se consideram uma raça superior.
Como muito bem frisou o Sr. Dr. Almerindo Lessa, tem-se verificado que ciclicamente vão aparecendo povos ou raças que, mercê de especiais circunstâncias, assumem, em determinadas épocas, o comando de outros povos e que então se consideram superiores. Assim, alguns milhares de anos antes de Cristo, um observador poderia dizer que a raça superior era a raça amarela, pois a Civilização mais florescente correspondia aos povos dessa raça. Séculos mais tarde, dir-se-ia que o povo grego era o povo superior, criador dos princípios da nossa Cultura. Um pouco mais tarde, os Romanos impunham a sua Verdade de Civilização: eram um povo superior, detentor da Força. Séculos volvidos, seríamos nós, Portugueses e Espanhóis, os senhores do Mundo, possuidores da Riqueza. Depois, seriam os Ingleses, senhores do carvão. Actualmente, dois povos disputam essa hegemonia: de um lado, os Americanos e, do outro, os Russos: são os detentores do petróleo. Ora todas estas considerações servem para demonstrar que no plano da História não há povos nem raças superiores, mas simplesmente povos que em dado momento, por disporem de maior número, de maior força e de melhor qualidade, comandam os outros. Assim, os Portugueses e os Ingleses perderam o Mundo por lhes faltar a Força, e não a Qualidade. Ora é aqui que eu quero chegar para fazer uma pergunta ao meu amigo Almerindo Lessa: será possível, pelos métodos biológicos de que dispõe, determinar a percentagem de sangue negro e de sangue branco na constituição do cabo-verdiano? Parece-me que seria interessante o estudo, porque estou convencido de que, apesar de na nossa população não haver predomínio de sangue europeu, o povo cabo-verdiano é um povo absolutamente integrado na civilização Ocidental e é, e assim se considera, absolutamente português pelo Pensamento.
Como eu ia dizendo, se um mestiço com tal percentagem já sente e pensa como a cepa europeia que lhe deu origem, não terá razão Gilberto Freire quando afirma que aos luso-tropicais pertencerá o comando da futura Civilização, ou, pelo menos, da Civilização intertropical? Sim, porque: se ao Português o que lhe faltou para continuar, a partir do século XVI, a conduzir a Civilização foi o número; se o sangue português diluído a tal ponto no mestiço cabo-verdiano não degenerou nós, os luso-descendentes, devemos ter confiança no nosso futuro, pois nós compensaremos o número. É por isso que eu ponho estas perguntas: é possível determinar por meios biológicos a percentagem genética de cada uma das raízes a que pertencemos? Há alguma informação concreta sobre a serobiologia dos Judeus? Não acha que nós temos alguma coisa a dizer no futuro da Civilização?
Júlio Monteiro: Pode verificar-se até que ponto é que os Judeus interferiram na formação de Cabo Verde?
Almerindo Lessa: Nem eu, nem ninguém, que eu saiba, pode responder a todas essas questões. Mas direi aquilo que penso. Em primeiro lugar, há uma confusão que é necessário desfazer nos nossos espíritos: é sobre o que seja Civilização. Não se devem confundir Civilização e Técnica, Cultura e Tecnicismo. Eu nego-me terminantemente a aceitar que os criadores da Civilização actual sejam os povos dos Estados Unidos da América. Considero-os para isso demasiado incultos. São povos que atingiram um aperfeiçoamento técnico, uma riqueza, um poder material que nós, pobres povos da Europa, e vós, pobres povos intertropicais, estamos longe de conseguir. Que só isso seja suficiente para gerar uma Cultura, nego-me terminantemente a aceitar.
O problema dos Judeus é muito difícil, tão difícil como eles próprios. Pouco se sabe da sua Antropologia e o que se sabe é perturbador. Por exemplo: há maiores diferenças bioquímicas entre os judeus do Iémene e os judeus de Varsóvia do que entre certos povos judaicos e não judaicos. Os judeus estão assimilados; estão dissolvidos dentro das nações. Além de ser pequeno o seu número, não conheço características químicas, mensuráveis, que nos permitam diferenciá-los. É claro que é muito difícil saber o que é que leva um povo ou uma civilização a tomar o seu apogeu e depois cair numa fase de decadência. Mas creio que os factores aí podem ser externos, climáticos, alimentares, ou outros. Pelo menos não deixa de ser estranho que a decadência de Roma e a decadência da Grécia correspondam a duas das maiores secas geográficas que houve no norte do Mediterrâneo; não deixa de ser estranho que a invasão da Europa pelo bárbaro Gengis Khan tenha correspondido a outra grande seca e, possivelmente, à necessidade de deslocar povos para novas zonas de alimentação; não deixa de ser estranho que uma das maiores sociedades modernas, o que neste momento está a retomar uma posição decisiva no mundo, que é o Maometanismo, tenha nascido na altura de outra seca histórica, esta em Marrocos, quer dizer, quando os homens estavam a descrer de tudo, até dos deuses que tinham e os abandonavam; e surgiu um homem, dotado de extraordinárias qualidades de persuasão, de dialéctica e de comunicabilidade, que conseguiu canalizar noutro sentido essa crise religiosa. É possível que circunstâncias como estas expliquem o fim ou o começo de uma Civilização. Mas para a maior parte das actuais como a norte-americana ou a eslava nós não temos nem perspectiva nem serenidade que nos permitam avaliar o seu valor real. Sobre problema do mundo luso-brasileiro direi que é possível fazer cálculo das percentagens exactas das suas raízes, mas não está feito. Os dados que eu colhi em Cabo Verde, quando trabalhados, hão-de permitir-nos saber quais as percentagens presentes da raiz negra e da raiz branca, mas não da dos Judeus. Sobre o problema de o cabo-verdiano se sentir perfeitamente português e ocidental, nada sei dizer. Os meus dois meses de contacto não me parecem suficientes. Outros observadores, como A. Chevalier, têm negado essa tese, e terminantemente. Não me peçam que dê já a minha opinião. Seria apressada.
Júlio Monteiro: Chevalier é derrotista.
Almerindo Lessa:. É derrotista? Bom, eu abro um parêntesis para dizer que estranho profundamente que não tenha aparecido ninguém para responder a Chevalier. Considero esse livro, o único que se encontra correntemente nas Universidades da Europa, um texto muito mau como informação, como juízo
e como descrição da Cultu
ra e do homem de Cabo Verde.
Foi como botânico que Augusto Chevalier se interessou por estas ilhas: como botânico, ou seja, como biologista. Daí não ter podido abstrair-se de observar as terras onde se criavam ou desapareciam essas plantas e os homens que as comiam ou as queimavam. Correu a maior parte delas, tirou apontamentos e deixou sobre a sua geografia observações cheias de' razão e de pertinência, embora profundamente contundentes para a nossa posição histórica. Cabo Verde ainda era naqueles anos de 1930 uma das regiões mais ignoradas no campo da biogeografia. Apesar de manter o, atractivo de ser «a mais antiga colónia tropical do Mundo» e dotada de um «clima de paraíso terrestre», o explorador de Paris sentiu-se desolado, afirmando que séculos de exploração irracional e destrutiva tinham transformado as terras num país de ruínas e num arquipélago de males irreparáveis. Alguns dos seus períodos[1] têm o cheiro de um responso: «o português julga ter marcado o negro cabo-verdiano e o mestiço com uma impressão profunda. Julga ter-lhe imposto a sua religião, ter-lhe feito perder os seus costumes africanos, seu feiticismo, seus ritos, suas danças, sua magia, seus costumes livres. Tudo isso não passa duma aparência. O negro cabo-verdiano continua o negro bon enfant que conhecemos em África. Só se transformou à superfície. Mais: o branco e o quase-branco que vivem à sua volta é que foram, muitas vezes, ao encontro dos seus costumes.
Os cabo-verdianos têm, na sua maioria, sangue português, mas não pensam em português. São mais vivos, porém menos empreendedores; a maior parte dos jovens sonha navegar e gosta da aventura, mas, se se expatria fàcilmente, mais fàcilmente regressa ao país natal. Guardaram da raça negra o carácter versátil e a puerilidade. Ao contrário dos negros do Norte de África, são muitas vezes taciturnos e mornos. Esta última palavra faz até parte da língua crioula, muito diferente do português. São por vezes bastante inteligentes, mas infelizmente indolentes. Não é duvidoso que mentalidade africana predomine».
Júlio Monteiro: É a introdução.
Almerindo Lessa: Sim, é a introdução. Eu não discuto as suas informações botânicas. Agora, o que lá diz do homem cabo-verdiano não é um bom serviço a Cabo Verde. Os seus juízos já influenciaram mal muitos políticos e sociólogos: «ilhas desertas, irrecuperáveis, desoladoras, para as quais seria necessário um trabalho recuperador de milénios, ilhas para abandonar»… eis a tese de Chevalier.
Júlio Monteiro: Parece que ele falou em nome de Dacar.
Almerindo Lessa: Então, lamento que não haja um homem de Cabo Verde que fale em nome de Cabo Verde.
Júlio Monteiro: Já se devia ter respondido.



[1] Auguste Chevalier – «Les Iles du Cap Vert.», in Rev. Botan. Appliquée, 15 :733, 1935

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