Nota ao Leitor: De acordo com o autor - o nosso
prezado e sempre bem-vindo colaborador e clínico Arsénio Fermino de Pina - o texto que se
segue destinou-se a uma revista de saúde infantil, publicada em Coimbra.
Pois bem, o artigo versa um tema já aqui publicado,
a célebre festa ou a comemoração do sétimo dia de nascimento da criança, mais conhecida
entre nós por: “Guarda Cabeça” ou “Festa de Sete”, celebração com fundas raízes
nestas ilhas. Recordemos a descrição de Augusto
Casimiro, sobre o evento na ilha Brava e o texto do poeta José Lopes sobre as possíveis
origens do facto em apreço.
Ora bem,
o texto de Arsénio de Pina vai nesta linha e com enfoque bem interessante sobre
a amamentação do recém-nascido, coadjuvada pela também conhecida planta, bafureira ou bofareira.
Um convite ao leitor para uma leitura ilustrativa
de certos usos e costumes do antanho do Arquipélago.
S.
Vicente, 30 de Maio de 2017-05-30
Exmo Senhor Director da
Revista
SAÚDE INFANTIL
COIMBRA
A localização de um texto, do século
XIX, enviado de Cabo Verde, por um irmão do Prof. H. Carmona da Mota descoberto
na sua visita periódica a alfarrabistas, tratando dos efeitos lactogéneos da
bafureira (planta do rícino, também conhecida sob o nome de bofareira, bofarêra,
mamona, carrapateiro, catapúcia, etc.), na Revista
Universal Lisbonense, 1ª série, Tomo II, 1842/1843, levou-me a fazer
pesquisas até encontrar a confirmação da notícia num dos livros do escritor
cabo-verdiano Germano Almeida. Fi-la chegar ao Prof. Carmona da Mota, que me
tinha contactado a saber se conhecia essa acção da planta, tendo-me sugerido,
ao enviar-lhe os elementos coligidos, que comunicasse os factos descobertos à Acta Pediátrica ou Saúde Infantil. Como continuo a ser assinante da Saúde Infantil, tendo
até publicado na Revista “A Saúde das
crianças em Cabo Verde”, de parceria com Bjorn Wenngren e Ingve Hofvander –
separata de “Saúde Infantil”, nº 2, Setembro 1984, faço chegar esses factos à
Revista que, se encontrar interesse neles, poderá publicá-los. Incluo recortes
do livro do citado escritor, “Regresso ao Paraíso”, onde encontrei referências
à tradição, outros textos, juntando alguns esclarecimentos da minha experiência
como pediatra cabo-verdiano.
Antes de mais, o texto descoberto: “Já
se terá reconhecido pelos nossos artigos 176, 324 e 1173, a grandíssima
utilidade que para a amamentação, especialmente nas misericórdias se poderá
sacar da bafureira, se de véras há n´ella a lactígena virtude, que apregoam, e
transplantada para o nosso clima a não perverte, continuando pois a pedir aos
médicos e cirurgiões, que façam na matéria todas as possíveis tentativas,
continuaremos ao mesmo tempo a ajuntar para este processo quantos documentos
nos vierem à mão. A carta que abaixo transcrevemos nos foi graciosamente
oferecida pelo Exmo Sr. Visconde de Sá da Bandeira, que foliando do cavalheiro
que lh´a escreveu, nol-o abona por pessoa de toda a confiança, residente
n´aquelle tempo na Ilha de S. Nicolau, e ao presente nesta cidade de Lisboa”
CARTA : “Exmº Sr. Joaquim Marques,
capitão de navios, e sua mulher D. Maria do Carmo Marques, naturaes d´este
reino, foram para Cabo Verde em 1808 por causa da invasão francesa e
estabeleceram-se em S. Nicolau em 1818 ou 13: teve esta senhora a infelicidade
de perder a vista, um anuo depois, pouco mais ou menos, teve um filho por nome
António: vendo-se ella impossibilitada de o crear, chamou uma mulher por nome
Maria Ganela, que costumava a visitar a sua casa e fazer-lhe algum serviço como
criada, e lhe pediu quizesse incumbir-se de amamentar seu filho; esta mulher
contava então 71 annos de idade; não poz objecção, fez o tratamento com a
planta lá chamada bafureira, e em S. Thiago jagué jagué; no terceiro dia
veio-lhe o leite em muita abundância; e criou o menino forte e robusto, sem ter
nunca mais pequena moléstia: os pais do rapaz ainda existem, e ele também: o
leite da velha foi examinado por um médico inglez, que o achou excelente.
Bem podia eu relatar a V. Exª centos de casos como este, e
dar-lhe os nomes de muitos que foram assim creados por avós, tias, primas, e
mesmo por algumas mulheres caritativas que não são raras n´aquellas ilhas;
porém limito-me só a este caso por ser o mais extraordinário, em razão da
grande idade da mulher. V.Exª pode afiançar isto em qualquer parte sem receio
de ser desmentido. Sou com todo o respeito e amizade De. VExª, venerador e a
migo obrigado”
João António Leite
Lê-se no livro do Germano Almeida (natural
da Ilha da Boavista),“A Família Trago”, o seguinte que corrobora o assunto
acima descrito: “… Quando nha Ninha recebeu a nova de que o seu afilhado já
estava a caminho, começou a acompanhá-lo cada dia com um carinho e cuidados
cada vez mais redobrados, deslocando-se à casa dos Trago para pessoalmente fazer
a fricção de azeite de purga na barriga da mãe, cuidando da planta de bofareira
que mandou colher e guardar, porque explicava, o suadouro da bofareira não só
servia para apertar as entranhas desconjuntadas da mulher pelo esforço de
suportar durante nove meses uma criança a crescer dentro dela e depois pari-la,
como para obrigar o organismo a reagir e a produzir leite em abundância”.
Uma senhora da Boavista contou a um
amigo meu, letrado nesses assuntos, que consultei, que as folhas de bofareira
eram cozidas num bacio de barro, onde se sentavam as parturientes a fim de
receberem o vapor produzido, o que melhorava a qualidade e a quantidade de
leite materno. Ela mesma, aquando do nascimento da primeira filha, há 43 anos,
submeteu-se ao tratamento com bons resultados. Não referiu a função higiénica e
outra através da Delta de Venus (Anais Nin), possivelmente por pudor.”
No romance do mesmo escritor, Regresso ao Paraíso, encontra-se a
página 139: “Durante os seis primeiros dias após o nascimento a família podia
ainda relaxar-se um pouco os cuidados. Porém, na noite do sétimo dia, a famosa
“noite de sete”, era a noite do alerta máximo, porque sem dúvida a mais
temerosa e aziaga, dado que nessa noite as bruxas perdiam completamente o tino
e o recato, ficavam endemoniadas na raiva de saberem que estavam desbaratando a
última oportunidade de se banquetearem à grande e à francesa com as tenras
carninhas do bebé.” […] “Para as esconjurar nesse perverso desígnio e
afastá-las do local onde estava a criança que perseguiam, era preciso que
dentro da casa houvesse grande barulho, muita confusão de gritos, vivas e
demais alarido por toda essa noite. Com cantos, com música, com festa, com
muito grog e muita comida, com muito sal grosso atirado a espaços sobre o
telhado, acompanhado de insultos e uma longa tesoura escondida debaixo do
travesseiro do menino, e sobretudo com palavras cabalísticas “vai para o espaço
superior, vai ensombrar a tua mãe, com este aqui não tens poder porque ele é da
parte de Nosso Senhor Jesus, vocês são da parte d´Aquele Homem pelo
sinal-da-santa-cruz”. […] “Mas finalmente chegava a meia-noite sem mais
sobressaltos, a parturiente mais o bebé eram solenemente trazidos do quarto
para a sala ao som dos instrumentos de corda, violino, viola, cavaquinho, que
alguns convidados tinham levado, e ali, de pé, cerimoniosamente ouviam
embevecidos a bela morna esconjuradora de todos os males que nhô Eugénio
Tavares tinha dedicado à alma de um amigo, cantada em sentido e aliviado coro
por todos os presentes na festa: Ná, ó
menino ná/ sombra rum fugi di li/ Ná ó menino ná/ Dixa nha fidjo dormi/Sono di
bida, sonho de amor,/ Ou graça, ou dor,/ Es é nós sorte…/ Se Deus, más logo,
mandano morte, /Quem que tem medo/ Ta morrê cedo”, enquanto a madrinha, com
a tesoura recuperada de debaixo da almofada, cortava o ar em redor do
recém-nascido em todas as direcções, como forma de afastar e mandar para o
espaço qualquer coisa ruim ou mal-intencionada que pudesse ter entrado e estar
ali a rondar com intenções maléficas. E terminada a morna, mas sempre ainda ao
som os instrumentos, todos, comovidamente e um por um, abraçavam e beijavam a
mãe e depois os pezinhos do bebé, apertavam a mão do pai, e finda a sessão de
cumprimentos continuavam a festa em alegria redobrada.”
Há outros hábitos e costumes ligados à
criança, que ainda se mantêm em praticamente todas as ilhas, embora menos
frequentes, desde que se pôs de pé, o Programa
de Saúde Materno-infantil e planeamento familiar (PMI/PF), após a
independência, mas só transcrevo
estes, resultado da tradição e experiências das pessoas. Realmente, e posso
atestar isso por ter começado a trabalhar como clínico geral em várias ilhas
desde 1967 até 1971, e somente em 1976 é que regressei ao país, com um
interregno de cinco anos na especialização em Pediatria e Saúde Pública. Antes
da PMI/PF, as mortes por tétano umbilical e hemorragia dos recém-nascidos eram frequentes
por se utilizar can-can (rapé) e terra fina para facilitar a secagem do cordão
umbilical, terra que veiculava, bastas vezes, esporos do Clostridium tetani,
manifestando-se a doença (quase 100% letal) antes dos sete dias, bem como a
hemorragia, também por essa data, período que o organismo do recém-nascido leva
para adquirir autonomia na produção da Vit K endógena. Actualmente, como a
vacinação antitetânica das mães é muito elevada em Cabo Verde, se administra
vitK injectável aos recém-nascidos, e a acção da PMI/PF é eficaz, essas doenças
são raríssimas, bem como o sarampo e a paralisia infantil, praticamente
erradicados.
A “noite
de sete” também se chama, em certas ilhas, “guarda cabeça”.
Glossário:
Grog
- aguardente de cana sacarina
Di
li - daqui
Rum
- ruim
Dixa - deixa
Nha-
meu, minha, senhora
Fidjo
- filho
Es
é nós sorte –esta é a nossa sorte ou sina
Nhô
- senhor
Fontes de consulta:
Revista
Universal Lisbonense – 2º volume
A
Família Trago, de Germano Almeida
Regresso
ao Paraíso, de Germano Almeida
Sobre
o uso medicinal: Mamona – usos, efeitos colaterais, interacções e avisos, no
Google Chrome
AECCOM,
Anais, volume 1,nº 1 e volume 1, nº 2, 1999. Mindelo. Cabo Verde.
S.Vicente, 31 de Maio de 2017
Arsénio
Fermino de Pina
PS Encontro-me de férias, até
fins de Julho, em S. Vicente, Cabo Verde. Email pinaarsenio@gmail.com
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