Efeitos lactogéneos da bafureira

sábado, 14 de outubro de 2017
Nota ao Leitor: De acordo com o autor - o nosso prezado e sempre bem-vindo colaborador e clínico Arsénio Fermino de Pina - o texto que se segue destinou-se a uma revista de saúde infantil, publicada em Coimbra.
Pois bem, o artigo versa um tema já aqui publicado, a célebre festa ou a comemoração do sétimo dia de nascimento da criança, mais conhecida entre nós por: “Guarda Cabeça” ou “Festa de Sete”, celebração com fundas raízes  nestas ilhas. Recordemos a descrição de Augusto Casimiro, sobre o evento na ilha Brava e o texto do poeta José Lopes sobre as possíveis origens do facto em apreço.
 Ora bem, o texto de Arsénio de Pina vai nesta linha e com enfoque bem interessante sobre a amamentação do recém-nascido, coadjuvada pela também conhecida planta, bafureira ou bofareira.
Um convite ao leitor para uma leitura ilustrativa de certos usos e costumes do antanho do Arquipélago.


S. Vicente, 30 de Maio de 2017-05-30
                                                           Exmo Senhor Director da
Revista SAÚDE INFANTIL
                                                                                  COIMBRA
         A localização de um texto, do século XIX, enviado de Cabo Verde, por um irmão do Prof. H. Carmona da Mota descoberto na sua visita periódica a alfarrabistas, tratando dos efeitos lactogéneos da bafureira (planta do rícino, também conhecida sob o nome de bofareira, bofarêra, mamona, carrapateiro, catapúcia, etc.), na Revista Universal Lisbonense, 1ª série, Tomo II, 1842/1843, levou-me a fazer pesquisas até encontrar a confirmação da notícia num dos livros do escritor cabo-verdiano Germano Almeida. Fi-la chegar ao Prof. Carmona da Mota, que me tinha contactado a saber se conhecia essa acção da planta, tendo-me sugerido, ao enviar-lhe os elementos coligidos, que comunicasse os factos descobertos à Acta Pediátrica ou Saúde Infantil. Como continuo a ser assinante da Saúde Infantil, tendo até publicado na Revista “A Saúde das crianças em Cabo Verde”, de parceria com Bjorn Wenngren e Ingve Hofvander – separata de “Saúde Infantil”, nº 2, Setembro 1984, faço chegar esses factos à Revista que, se encontrar interesse neles, poderá publicá-los. Incluo recortes do livro do citado escritor, “Regresso ao Paraíso”, onde encontrei referências à tradição, outros textos, juntando alguns esclarecimentos da minha experiência como pediatra cabo-verdiano.
         Antes de mais, o texto descoberto: “Já se terá reconhecido pelos nossos artigos 176, 324 e 1173, a grandíssima utilidade que para a amamentação, especialmente nas misericórdias se poderá sacar da bafureira, se de véras há n´ella a lactígena virtude, que apregoam, e transplantada para o nosso clima a não perverte, continuando pois a pedir aos médicos e cirurgiões, que façam na matéria todas as possíveis tentativas, continuaremos ao mesmo tempo a ajuntar para este processo quantos documentos nos vierem à mão. A carta que abaixo transcrevemos nos foi graciosamente oferecida pelo Exmo Sr. Visconde de Sá da Bandeira, que foliando do cavalheiro que lh´a escreveu, nol-o abona por pessoa de toda a confiança, residente n´aquelle tempo na Ilha de S. Nicolau, e ao presente nesta cidade de Lisboa” CARTA : “Exmº Sr. Joaquim Marques, capitão de navios, e sua mulher D. Maria do Carmo Marques, naturaes d´este reino, foram para Cabo Verde em 1808 por causa da invasão francesa e estabeleceram-se em S. Nicolau em 1818 ou 13: teve esta senhora a infelicidade de perder a vista, um anuo depois, pouco mais ou menos, teve um filho por nome António: vendo-se ella impossibilitada de o crear, chamou uma mulher por nome Maria Ganela, que costumava a visitar a sua casa e fazer-lhe algum serviço como criada, e lhe pediu quizesse incumbir-se de amamentar seu filho; esta mulher contava então 71 annos de idade; não poz objecção, fez o tratamento com a planta lá chamada bafureira, e em S. Thiago jagué jagué; no terceiro dia veio-lhe o leite em muita abundância; e criou o menino forte e robusto, sem ter nunca mais pequena moléstia: os pais do rapaz ainda existem, e ele também: o leite da velha foi examinado por um médico inglez, que o achou excelente.
         Bem podia eu relatar a V. Exª centos de casos como este, e dar-lhe os nomes de muitos que foram assim creados por avós, tias, primas, e mesmo por algumas mulheres caritativas que não são raras n´aquellas ilhas; porém limito-me só a este caso por ser o mais extraordinário, em razão da grande idade da mulher. V.Exª pode afiançar isto em qualquer parte sem receio de ser desmentido. Sou com todo o respeito e amizade De. VExª, venerador e a migo obrigado”
                                                            João António Leite

         Lê-se no livro do Germano Almeida (natural da Ilha da Boavista),“A Família Trago”, o seguinte que corrobora o assunto acima descrito: “… Quando nha Ninha recebeu a nova de que o seu afilhado já estava a caminho, começou a acompanhá-lo cada dia com um carinho e cuidados cada vez mais redobrados, deslocando-se à casa dos Trago para pessoalmente fazer a fricção de azeite de purga na barriga da mãe, cuidando da planta de bofareira que mandou colher e guardar, porque explicava, o suadouro da bofareira não só servia para apertar as entranhas desconjuntadas da mulher pelo esforço de suportar durante nove meses uma criança a crescer dentro dela e depois pari-la, como para obrigar o organismo a reagir e a produzir leite em abundância”.
         Uma senhora da Boavista contou a um amigo meu, letrado nesses assuntos, que consultei, que as folhas de bofareira eram cozidas num bacio de barro, onde se sentavam as parturientes a fim de receberem o vapor produzido, o que melhorava a qualidade e a quantidade de leite materno. Ela mesma, aquando do nascimento da primeira filha, há 43 anos, submeteu-se ao tratamento com bons resultados. Não referiu a função higiénica e outra através da Delta de Venus (Anais Nin), possivelmente por pudor.”
         No romance do mesmo escritor, Regresso ao Paraíso, encontra-se a página 139: “Durante os seis primeiros dias após o nascimento a família podia ainda relaxar-se um pouco os cuidados. Porém, na noite do sétimo dia, a famosa “noite de sete”, era a noite do alerta máximo, porque sem dúvida a mais temerosa e aziaga, dado que nessa noite as bruxas perdiam completamente o tino e o recato, ficavam endemoniadas na raiva de saberem que estavam desbaratando a última oportunidade de se banquetearem à grande e à francesa com as tenras carninhas do bebé.” […] “Para as esconjurar nesse perverso desígnio e afastá-las do local onde estava a criança que perseguiam, era preciso que dentro da casa houvesse grande barulho, muita confusão de gritos, vivas e demais alarido por toda essa noite. Com cantos, com música, com festa, com muito grog e muita comida, com muito sal grosso atirado a espaços sobre o telhado, acompanhado de insultos e uma longa tesoura escondida debaixo do travesseiro do menino, e sobretudo com palavras cabalísticas “vai para o espaço superior, vai ensombrar a tua mãe, com este aqui não tens poder porque ele é da parte de Nosso Senhor Jesus, vocês são da parte d´Aquele Homem pelo sinal-da-santa-cruz”. […] “Mas finalmente chegava a meia-noite sem mais sobressaltos, a parturiente mais o bebé eram solenemente trazidos do quarto para a sala ao som dos instrumentos de corda, violino, viola, cavaquinho, que alguns convidados tinham levado, e ali, de pé, cerimoniosamente ouviam embevecidos a bela morna esconjuradora de todos os males que nhô Eugénio Tavares tinha dedicado à alma de um amigo, cantada em sentido e aliviado coro por todos os presentes na festa: Ná, ó menino ná/ sombra rum fugi di li/ Ná ó menino ná/ Dixa nha fidjo dormi/Sono di bida, sonho de amor,/ Ou graça, ou dor,/ Es é nós sorte…/ Se Deus, más logo, mandano morte, /Quem que tem medo/ Ta morrê cedo”, enquanto a madrinha, com a tesoura recuperada de debaixo da almofada, cortava o ar em redor do recém-nascido em todas as direcções, como forma de afastar e mandar para o espaço qualquer coisa ruim ou mal-intencionada que pudesse ter entrado e estar ali a rondar com intenções maléficas. E terminada a morna, mas sempre ainda ao som os instrumentos, todos, comovidamente e um por um, abraçavam e beijavam a mãe e depois os pezinhos do bebé, apertavam a mão do pai, e finda a sessão de cumprimentos continuavam a festa em alegria redobrada.”
         Há outros hábitos e costumes ligados à criança, que ainda se mantêm em praticamente todas as ilhas, embora menos frequentes, desde que se pôs de pé, o Programa de Saúde Materno-infantil e planeamento familiar (PMI/PF), após a independência, mas só transcrevo estes, resultado da tradição e experiências das pessoas. Realmente, e posso atestar isso por ter começado a trabalhar como clínico geral em várias ilhas desde 1967 até 1971, e somente em 1976 é que regressei ao país, com um interregno de cinco anos na especialização em Pediatria e Saúde Pública. Antes da PMI/PF, as mortes por tétano umbilical e hemorragia dos recém-nascidos eram frequentes por se utilizar can-can (rapé) e terra fina para facilitar a secagem do cordão umbilical, terra que veiculava, bastas vezes, esporos do Clostridium tetani, manifestando-se a doença (quase 100% letal) antes dos sete dias, bem como a hemorragia, também por essa data, período que o organismo do recém-nascido leva para adquirir autonomia na produção da Vit K endógena. Actualmente, como a vacinação antitetânica das mães é muito elevada em Cabo Verde, se administra vitK injectável aos recém-nascidos, e a acção da PMI/PF é eficaz, essas doenças são raríssimas, bem como o sarampo e a paralisia infantil, praticamente erradicados.
         A “noite de sete” também se chama, em certas ilhas, “guarda cabeça”.
Glossário:
Grog - aguardente de cana sacarina
Di li - daqui
Rum - ruim
Dixa  - deixa
Nha- meu, minha, senhora
Fidjo - filho
Es é nós sorte –esta é a nossa sorte ou sina
Nhô - senhor

Fontes de consulta:
Revista Universal Lisbonense – 2º volume
A Família Trago, de Germano Almeida
Regresso ao Paraíso, de Germano Almeida
Sobre o uso medicinal: Mamona – usos, efeitos colaterais, interacções e avisos, no Google Chrome
AECCOM, Anais, volume 1,nº 1 e volume 1, nº 2, 1999. Mindelo. Cabo Verde.

 S.Vicente, 31 de Maio de 2017                                                    
Arsénio Fermino de Pina

PS Encontro-me de férias, até fins de Julho, em S. Vicente, Cabo Verde. Email pinaarsenio@gmail.com


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