A Igreja e a Literatura em Cabo Verde

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A Diocese de Cabo Verde comemora a 31 de Janeiro deste ano os 435 anos da sua fundação, pelo Papa Clemente VII.
Daí a oportunidade da publicação de um texto histórico de autoria de H. Teixeira de Sousa sobre os primórdios da escola, da instrução em Cabo Verde e sobre o papel fundamental e relevante que a Igreja católica teve nesse extraordinário empreendimento que é o ensino em Cabo Verde.
Trata-se de um “original” (batido à máquina) que por um feliz acaso, encontrámos entre os nossos papéis e aqui transcrevemos. Posteriormente, pela boa informação da nossa amiga Monique Widmer, tivemos a indicação de que este texto vem mencionado como palestra, nas Actas do Colóquio internacional, Paris, 1984. Igualmente foi  publicado no jornal «Terra  Nova» nos números 304 e 305 de Janeiro e Fevereiro de 2002.
Como o leitor verificará, esta pesquisa feita pelo grande escritor, ensaísta e médico de profissão, Teixeira de Sousa, faz uma autêntica panorâmica do percurso do Ensino em Cabo Verde desde a chegada dos primeiros mestres franciscanos à ilha de Santiago ainda no séc. XV afinal, poucos anos (1466) após a descoberta das ilhas pelos navegadores e missionários portugueses até “praticamente” os nossos dias.

A IGREJA E A LITERATURA EM CABO VERDE
Henrique Teixeira de Sousa
Os primeiros mestres ou educadores terão sido os franciscanos chegados à ilha de Santiago em 1466, isto é, seis anos após o achamento do arquipélago de Cabo Verde.
Em 1546 o rei autorizava expressamente que alguns homens pretos e mestiços, devidamente qualificados, pudessem entrar nos cargos públicos para os servir, sinal de que na primeira metade do século XVI já funcionavam eficazmente as então chamadas escolas de ler e escrever, embora em escala reduzida.
O bispo D. Frei Francisco da Cruz (1554-1571) leccionou na própria residência muitos ignorantes (escravos), exemplo que se generalizou por todas as paróquias, especialmente junto dos meninos de coro e de catequese.
A criação de mestres de latim em 1555, a ordenação de sacerdotes entre os nativos, os quais passariam a ser preferidos na provisão dos benefícios eclesiásticos, todas estas iniciativas e estratégias da classe religiosa constituíram, sem dúvida, o ponto de partida da aventura civilizacional do cabo-verdiano. Outras condicionantes históricas viriam juntar-se, através dos séculos, às medidas tomadas pela Igreja no campo da instrução, Igreja cujo contingente militante não chegava para a missão evangelizadora tão estendida pela expansão ultramarina dos portugueses. Daí, a urgência na preparação de pessoal para suprir as deficiências dos quadros religiosos. Deste facto, a que outros fenómenos se somaram, resultaria em Cabo Verde o aparecimento duma consciência nacional, muito anterior à respectiva independência politica.
Em 1772, quando foram criadas em Portugal as primeiras escolas oficiais gratuitas, o Conselho Ultramarino autorizou a abertura de escolas semelhantes nas ilhas de Cabo Verde, a pedido do então Governador Saldanha Lobo. Tais escolas, porém, não chegaram a funcionar, mais por falta de verba do que por negligência do poder civil.
Em 1811 mantinha-se a situação, isto é, as escolas régias autorizadas permaneciam apenas no papel, o que provocou um severo reparo da Corte do Rio de Janeiro.
Simultaneamente, a mesma Corte, ordenava ao Governador e ao Bispo levassem por diante com celeridade a criação de escolas públicas, tornando a escolaridade obrigatória a partir dos sete anos de idade.
Só que, o orçamento de Cabo Verde não suportava tamanha despesa. Assim, no ano económico de 1837/38, não funcionaram mais do que dez escolas régias de ensino primário. Em 1842, nem todas as trinta e três escolas previstas também puderam funcionar por falta de fundos.
Em 1848 surgiu a chamada Escola Principal, instalada na Ilha Brava, onde então se achava sediado o Governo da Província por razões de ordem sanitária. Essa escola visava os ensinos primário e secundário (humanidades) tendo durado apenas dez anos.
Porque, entretanto, em 1846, fundava-se na cidade da Praia o Liceu Nacional que também teve pouca dura por via do aparecimento do Seminário Liceu de S. Nicolau, estabelecimento de ensino que se ficou a dever exclusivamente à iniciativa e persistência da classe eclesiástica, embora apoiado pelo poder civil. Foi o bispo D. José Alves Feijó que exigiu este estabelecimento de ensino ao Ministro do Ultramar. Conta-se que perante a insistência do bispo aquele Ministro teria tranquilizado o ilustre prelado, dizendo-lhe: Vá V. Exa. descansado que tudo há-de lá ir ter. Ao que respondeu D. José Alves Feijó: Não sigo para Cabo Verde enquanto não for atendido em tudo; porque, em passando a Torre de Bugio, mandam-me bugiar.
O Decreto de 3 de Setembro de 1866 criava efectivamente o Seminário Liceu com o duplo fim de ordenar sacerdotes e de preparar mancebos para a vida civil, ministrando-lhes para tal, a necessária educação literária e cientifica.
Com o funcionamento do Seminário Liceu raiou uma nova época no âmbito sócio-racial, escorada ainda noutros factores, estes, de natureza económica. Os quadros religiosos começaram a passar para as mãos dos filhos da terra. Facto semelhante viria a ocorrer na esfera administrativa, cujos cargos também foram passando paulatinamente para as mãos dos cabo-verdianos saídos do Seminário Liceu.
  Pergunta-se: A Igreja já visou essa promoção social ao criar o Seminário Liceu ou visou tão simplesmente a preparação de quadros para a missão que se propunha? Evidentemente que à Igreja interessava prioritariamente a ordenação de sacerdotes. Mas, para que pudesse obter o apoio financeiro do Estado, teria de contemplar o ensino laico, neste caso, o ensino secundário. Com semelhante estratégia, obteve o patrocínio do Ministério do Ultramar, e mais do que patrocínio, verba necessária para o empreendimento.
Fosse como fosse, até à sua extinção em 1928-29, pelo Seminário de S. Nicolau passaram centenas de rapazes que se espalharam pelo funcionalismo público, não só de Cabo Verde como ainda da Guiné e demais colónias, sem contar com aqueles que abraçaram a carreira religiosa e se ordenaram padres. Deste alfobre, surgiram os primeiros poetas e prosadores de que o Boletim Oficial do último quartel do século XIX e mais tarde o Almanach de Lembranças nos dão a conhecer. Na falta dum periódico, os arroubos literários dos ex-seminaristas começaram a exprimir-se em letra de forma através daquelas publicações até o aparecimento de jornais impressos em Cabo Verde, nomeadamente a partir do advento da república em Portugal. Na euforia desta nova ordem politica, poemas, crónicas, etc, ficção, alinhavam-se garbosamente ao lado de artigos doutrinários e outros, quase todos subscritos por ex-seminaristas, numa retórica inconfundível a que não faltava a citação de sentenças latinas. Graças ao Seminário Liceu, principia já nos fins do século XIX a esboçar-se a existência dum escol intelectual entre os nativos, fenómeno que viria a tomar corpo e a alargar-se na base com a criação do Liceu Nacional de S. Vicente em 1917. O Liceu Infante D. Henrique surge na sequência dos magníficos frutos colhidos do Seminário de S. Nicolau, revertendo-se logo numa instituição de matiz profundamente democrático, onde filhos de criadas de servir se ombreiam com filhos-família na ânsia de aprender.
Não se pense, porém, que foi fácil a obtenção desse Liceu. Ele foi exigido pelas forças vivas com o apoio entusiástico de então Governador Fontoura da Costa que encontrou alguma resistência no Terreiro do Paço.
Quando as dificuldades se reduziram apenas à inexistência de edifício para instalar o Liceu, Augusto Vera Cruz, abastado comerciante e armador de S. Vicente, e natural da Ilha do Sal, deixou a sua magnífica vivenda para nela terem inicio as aulas do curso secundário. O gesto generoso deste concidadão, que ainda como senador por Cabo Verde muito lutou por outras melhorias, foi devidamente reconhecido pelo Município do Mindelo, o qual deliberou dar o nome de Augusto Vera Cruz a uma das principais artérias da cidade, nome que foi substituído pelo de Kwame N’Krumah após a independência. Nessa vivenda funcionou o Liceu durante alguns anos.
Foi com os padres que o Cabo-verdiano começou a assimilar os valores da cultura europeia. No ambiente da miséria em que sempre viveu, foi sob a sombra da Igreja que ele encontrou o seu primeiro espaço de libertação, espaço mais tarde ampliado pela instrução laica e pela emigração. Fenómeno idêntico ocorreu nos Estados Unidos da América do Norte, onde o negro transladado do continente de origem descobriu no cristianismo a filosofia da sua revolta silenciosa, ao mesmo tempo esperançosa.
Salvo alguns dos sermões do Padre António Vieira, proferidos no Brasil, não conheço nenhum texto da época, firmado por bispo ou sacerdote, que condenasse o esclavagismo. Estou mesmo em crer que a Igreja não experimentou tormentos de consciência face ao negócio de escravos. Se o não aceitou, também não o combateu. Todavia, por motivo da sua acção evangelizadora, teve de tomar medidas que resultaram benéficas ao nível de instrução das suas ovelhas. Em Cabo Verde, por exemplo, o arranque para a alfabetização e promoção intelectual se ficou a dever à actividade pedagógica do clero desde o inicio do povoamento. Daí que não possamos esquecer o contributo da mesma Igreja na formação duma inteligenzia regional.
Factores de natureza geo-económica facilitaram essa acção pedagógica da Igreja. Ilhas de fracos recursos agrícolas e outros, nelas o colono não prosperou em nenhum sector económico, acabando por se fundir na mestiçagem e na pobreza com os descendentes dos antigos escravos. As secas, a inexistência de minérios, a insularidade, a emigração maciça, ao lado da miscigenação intensa, afastaram desde logo a tendência para a estratificação da sociedade baseada em privilégios de raça, como aconteceu nas restantes possessões ultramarinas. Em Cabo Verde, brancos, mestiços e negros deram-se as mãos para arrostar com adversidades climáticas e o abandono administrativo por parte duma Metrópole distante e insensível.
Daí que foi precisamente em Cabo Verde onde eclodiu o primeiro movimento literário africano de expressão portuguesa com características regionais acentuadas e inconfundíveis, embora influenciado pela mensagem da literatura brasileira dos anos 30. A receptividade às obras dos poetas, romancistas e ensaístas brasileiros daquela época, explica-se simplesmente pelo paralelismo dos respectivos processos culturais, e pela ânsia de afirmar uma identidade nacional, que para o caso de Cabo Verde seria muito anterior à independência politica. Os fundadores da revista Claridade, em 1936, e a literatura que então se seguiu, expressaram essa aspiração nacionalista que a luta pela independência viria mais tarde a imprimir carácter político.
Cabo Verde constituiu-se, pois em nação ainda sob a administração colonial.
Voltando à instrução, um dos factores primordiais de promoção social, direi que ela não esteve somente nas mãos dos agentes da Igreja ou nas do poder civil (mais tarde). Também esteve nas mãos de mestres particulares, estes naturalmente preparados, na sua maioria, pelos párocos e seus auxiliares. Entre os séculos XVIII e XX existiram 110 escolas particulares espalhadas pelo arquipélago, período em que a população não atingia a ordem dos 100.000 habitantes. Esses mestres particulares, cujos honorários ou eram pagos com moeda sonante, ou pagos com géneros alimentares, desempenharam um papel na alfabetização de meninos e adultos, não menos valiosos que o das escolas de padres e as escolas régias. Tiveram ainda outro mérito, esses agentes do ensino particular. Houve-as também do sexo feminino as mestras com quem as raparigas de todos os estados aprendiam costuras e lavores. Semelhante tipo de ensino foi muitíssimo útil numa terra onde o orçamento geral do Estado não conseguia satisfazer as necessidades públicas correntes.
Essa ânsia de aprender que foi inicialmente insuflada pelos homens de batina (é um dado histórico que não se pode ignorar) viria mais tarde a conhecer um incentivo mais pragmático: A emigração para os Estados Unidos da América do Norte que arrancou na segunda metade do século XIX , viria a experimentar no primeiro quartel do século XX, a sua primeira dificuldade. O Governo Americano proibiu a entrada dos emigrantes analfabetos. Logo à chegada lhes faziam um teste de leitura na linguagem de origem. Quem não soubesse ler correctamente era recambiado para o país natal. Assim, semelhante afã de aprender se alargou mais, sobretudo entre os adultos. Mais uma vez o factor miséria, a emigração se achava e se acha ligada, favoreceu a escalada social em Cabo Verde. O que nas restantes colónias foi até recentemente um privilégio do colono branco, em Cabo Verde, esse privilégio, ou seja o ensino, se revelou desde cedo uma preocupação da classe eclesiástica para com o nativo colonizado. Apraz-me aqui citar o que escreveu o padre António Vieira aquando da sua passagem pela cidade da Ribeira Grande, na ilha de Santigo, em 1652: " Vim encontrar clérigos e tão negros como azeviche; mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer inveja aos que lá temos nas nossas catedrais ."

Resumindo e Concluindo:

a) A Igreja necessitou desde logo de utilizar o material humano africano para criar quadros destinados à ocupação religiosa. Assim, começou, desde cedo (1466) a ministrar instrução literária e religiosa a pretos e mestiços, devidamente seleccionados, e a ordenar sacerdotes entre os mais aptos (docilidade e inteligência).
b) Na sequência dessa preparação literária e religiosa, viria a mesma Igreja a conseguir em 1866 criar o Seminário Liceu de S. Nicolau, com o duplo fim de ordenar sacerdotes (agora em maior escala) e de habilitar os mancebos para a vida civil.
c) A breve trecho, os cargos religiosos e públicos começaram a povoar-se de elementos nativos, principiando também a surgir um escol de letrados com outras ambições que não apenas as dum púlpito ou da banca duma repartição pública.
d) A partir da segunda metade do século XIX, ouvem-se os primeiros vagidos literários dos ex-seminaristas, cuja poesia e prosa se publicam no Boletim Oficial, depois no Almanach de Lembranças.
e) Ainda na sequência dessa sede de aprender e desses pruridos literários, exige-se e consegue-se o primeiro Liceu de ensino laico, em 1917.
 f) Daí em diante, os cursos superiores passam a ficar cada vez mais ao alcance da pequena burguesia, facto que viria a possibilitar a consciencialização politica dos futuros “fundadores” da nacionalidade, estes filhos dos homens que através da literatura revelaram a existência dessa mesma nacionalidade.


BIBLIOGRAFIA


 BRAZIO, ANTÓNIO (padre) Monumenta Missionária Africana Africa Ocidental segunda série, Vol. III, Lisboa,1964.
CARREIRA, ANTÓNIO Migrações nas Ilhas de Cabo Verde - Lisboa, 1977.
MONTEIRO, FELIX A Ilha de S. Vicente de Cabo Verde, Relatório de Joaquim Vieira Botelho da Costa – Rev. Raízes, Praia,1980.
SILVA, FRANCISCO FERREIRA (deão) Apontamento para a História da Administração da Diocese e Organização do Seminário Lyceu Lisboa,1899.
SOUSA, HENRIQUE TEIXEIRA DE Cabo Verde e a sua Gente Boletim de Informação
e propaganda de Cabo Verde- Praia,1956.


/H. TEIXEIRA DE SOUSA/
(escritor cabo-verdiano)





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