quarta-feira, 1 de agosto de 2018

À volta dos contos de Baltazar Lopes

A colectânea de Contos intitulada «Os Trabalhos e os Dias» de Baltazar Lopes, que me serviu de apoio para este escrito, é uma edição de 1987, do extinto Instituto Cabo-verdiano do Livro, antecessor do actual Instituto da Biblioteca Nacional.
Trata-se de uma colectânea que traz uma nota biográfica sobre o autor assinada por Manuel Ferreira, que terá sido o organizador desse conjunto de contos, e prefácio do poeta Arménio Vieira que fez uma análise de pormenor bastante interessante e assertiva, de cada história.
São dez, os Contos compilados nesta edição, a saber: «A Caderneta», «Dona Mana», «Balanguinho», «Muminha Vai Pa ra a Escola», «Egídio e Job», «Nocturno de Dona Emília de Sousa», «O Construtor», «Pedacinho», «Sileno» e «Os Trabalhos e os Dias».
Pois bem, os Contos de Baltazar Lopes, conheceram publicação de estreia sob forma dispersa em revistas à época prestigiadas, tais os casos de Claridade, Vértice, Boletim Cabo Verde, Raízes, entre outros periódicos de teor literário e cultural. Daí também o mérito desta compilação de há mais de três décadas que reuniu num único volume estas peças singulares, saídas da pena maravilhosamente culta e poética de um grande vulto das Letras cabo-verdianas, que foi um “caçador de heranças”, no poema homónimo de Osvaldo Alcântara – que serviu de título a um ensaio de Gabriel Mariano – em que o sujeito poético acompanha o enterro de um capitão das ilhas, como quem enterra simbolicamente, um tesouro, uma arca de memórias, cujos eflúvios procura captar.
Entrando agora na teia das diferentes histórias narradas na Colectânea, começaria pelo conto «Muminha Vai Para a Escola», na minha opinião, o mais bem urdido e conseguido neste conjunto.
O interessante é que consigo filiá-lo na linha directa do tipo e da arte de narrar de «Chiquinho», romance emblemático do autor.
É que Baltazar Lopes da Silva, trabalha com primor as memórias infanto-juvenis, levando o leitor de volta, de certa forma, à sua própria vivência, agora sob forma de reminiscência, através de uma linguagem densamente poética e maravilhosamente tecida. O narrador deixa-nos entrar no universo da intriga ficcionada a que não faltam nem a crueldade, nem a generosidade muito próprias e peculiares nas crianças.
A narrativa prende e enleia o leitor numa leitura emotivamente solidária. O narrador condu-lo (o leitor) ao drama de “Muminha” o protagonista, aparentemente bafejado pela sorte material, motivo de alguma inveja entre os colegas pertencentes a um estrato socio-económico menos favorecido, mas o final da narrativa encarrega-se de nos esclarecer acerca da conduta introvertida e apenas defensivamente “aristocrática,” do protagonista.
Efectivamente, estamos perante um belo conto exemplar. «Muminha Vai à Escola» é dedicado a Bento Levy, Director do célebre «Boletim Cabo Verde», (1949/1964) onde o conto foi publicado pela primeira vez, num dos números daquele periódico, nos anos 50 do século XX.
Logo a seguir, nesta hierarquia classificativa e obviamente, subjectiva, vem o já considerado clássico, «A Caderneta», um primor de monólogo em que o leitor pressupõe o diálogo que subjaz entre a protagonista que recusa o apodo de prostituta, que a caderneta lhe conferiria e o advogado “senhor Doutor” que ela deseja que a defenda com aquele saber e a generosidade que ela lhe conhece do antecedente.
Abro aqui um pequeno parêntesis, para recordar a peça de teatro do Mindelact baseada na «Caderneta» e apresentada em São Nicolau, em Abril de 2007, aquando das comemorações do centenário do nascimento de Baltazar Lopes da Silva e a que tive o prazer enorme de assistir porque maravilhosamente interpretada pela actriz Mirita Veríssimo desse Grupo teatral. Fecho o parêntesis e volto aos contos.
Relativamente às duas histórias – “Dona Mana” e “Nocturno de Dona Emília de Sousa” – embora diferentes e distintas nos enredos, mantêm, no entanto, um ponto comum: ambas as protagonistas, estão em desgraça social e familiar no momento histórico narrativo e encontram-se a viver na ilha de São Vicente.
Mas do passado, da ilha de origem, São Nicolau, guardam marcas e ainda vestígios de um tempo, de uma vivência mais bonançoso, mais farto, no qual elas eram socialmente bem enquadradas.
Vicissitudes várias, e bem explicadas pelo narrador, levam-nos a entender o presente das personagens principais, reflexos de uma migração de gente de São Nicolau para Mindelo num tempo de seca e de carestia de vida. Recordo-me de que li algures (suponho que na “Mesa-Redonda sobre o Homem Cabo-verdiano,”1956) numa das excelentes  intervenções de Dr. Baltazar, de ele ter afirmado que vira pessoas em S. Vicente, pobres, mal-nutridas, com vergonha da sua penúria, e que outrora as havia conhecido,em São Nicolau, a viver com algum desafogo económico.
No fundo, a tragédia antiga das ilhas agrícolas, retratada também nestes dois contos. O final de «Nocturno de Dona Emília de Sousa é nisso claramente ilustrativo: de “Dona Emília de Sousa”, acaba em “Nha Milinha”.
O Contista transpõe para algumas das suas histórias a sua experiência de advogado, (pro bono) defensor dos mais pobres e dos mais vulneráveis. O drama exposto em «Dona Mana» desenrola-se numa sala do tribunal da cidade do Mindelo.
Uma nota também interessante da parte do autor, é que ele partilha os espaços e os cenários dos seus contos para além da sua ilha de eleição, S. Nicolau.
E é assim que vamos ter a história de «Balanguinho» e a de «Os Trabalhos e os Dias» a terem por cenários, espaços e zonas da ilha de Santo Antão. Já o conto «Sileno» desenrola-se na ilha da Boa Vista. S. Vicente constitui o cenário e o espaço em que circulam as personagens dos contos: «Dona Mana», «A Caderneta», e «Nocturno de Dona Emília de Sousa».
A terra no seu sentido cosmogónico e telúrico do qual o homem se sente parte inalienável, e unitário, está muito bem configurada em «Balanguinho», a propriedade agrícola, dos antecessores da protagonista, Mamã Marcelisa, cujo amor por essa parcela de chão, simboliza, por um lado, a profunda ruralidade que acompanhou outrora o habitante de ilha agrícola, e, por outro lado, a maternidade, a fecundidade da boa terra que não trai - pelo contrário - recompensa com grãos e com frutos, quem nela pensa e cuida com esperança e com perseverança.
E essa mesma relação que ouso denominar de “uterina,” vamos de novo encontrá-la num outro conto desta colectânea, «Pedacinho». A bela sombra, o local de acolhimento e de recolhimento do narrador/protagonista, que tem naquele chão, a paz e uma espécie de reconciliação consigo próprio e com o mundo.
Na esteira dos contos inseridos na colectânea, temos a loucura criativa, que confunde a realidade e a imaginação, e que está soberbamente contada na narrativa «O Construtor». O protagonista, o Sr. Alberto, já idoso, armou no quintal, da sua residência um verdadeiro estaleiro, onde intenta construir, dois barcos – o “Estrela da Manhã” e o “Arlequim”. Chegados ao enredo, o leitor é convidado a transpor fronteiras deslizantes e sem balizas divisórias, entre a realidade e a imaginação. Um conto excelente enquanto temática ligada ao mar e pertencente ao domínio do fantástico.
A metáfora e a paráfrase estão representadas e bem, no conto «Egídio e Job», que recria o episódio bíblico, transfigurado em cenários e personagens ilhéus.
Aproveitaria a oportunidade para aqui registar em jeito de síntese, o comentário final do prefácio de Arménio Vieira à edição de 1987, da obra em análise: “(…) o acto de escrever, quando assumido com seriedade, é uma espécie de viagem, apaixonante, por certo, mas com alguns escolhos pelo meio e tormentosos por vezes” (…) e continua:“(…) Baltasar Lopes, o contista (…) sabe dos riscos que correu ao longo dessa travessia. Mas isso já não importa, uma vez que a nave foi conduzida a bom porto.”(Fim de citação).
Não poderia estar mais sintonizada com as palavras de Arménio Vieira. Daí também o meu desafio à Editora Pedro Cardoso, que tem feito obra notável em matéria de edições, de reedições de clássicos nacionais, para que tome em mãos este encargo frutífero de trazer para as novas gerações os contos de Baltazar Lopes – memórias sociais e históricas das ilhas genialmente efabuladas – os quais, merecem ser (re)lidos por leitores dos tempos hodiernos, enquanto passagens de um testemunho, não só da condição de ilhéu, mas também de um passado que moldou a nossa idiossincrasia.
Chegados ao fim da revisitação dos contos incluídos nos «Trabalhos e os Dias», é tempo de convidar o leitor a fazer o mesmo ou, a conhecer – porque vale a pena – o lado contista do grande e multifacetado autor, poeta, romancista e filólogo que foi Baltazar Lopes da Silva.
Nota devida: este Artigo foi publicado na Revista «Leituras» nº- 2 Abril/Junho 2018 da editora Pedro Cardoso.

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