O ensino do português em África vai mal e procuram-se soluções

quinta-feira, 8 de novembro de 2018


Com a devida vénia ao autor e ao Jornal «Público» aqui se publica também esta matéria de muito interesse para nós, falantes do português


Nuno Pacheco - Língua portuguesa*
O número de falantes da língua nos PALOP é bem menor do que apontam os números oficiais. Hoje e amanhã, no ISCTE, um congresso procura exemplos, dados concretos e soluções.
O título do comunicado parece um alerta vermelho: “O ensino do português nos PALOP está a falhar e só parte da população o fala.” E os números avançados não diminuem tal inquietação: em Cabo Verde, só metade da população falará português fluentemente; em Moçambique, “só 10% assumem o português como língua materna”; na Guiné-Bissau, só 15% falarão português; em Timor-Leste “eventualmente 25%”; escapará Angola, onde mais de 70% falam português porque a guerra os empurrou para as cidades.
Se não fosse tal intróito, talvez poucos reparassem no IV Congresso de Cooperação e Educação, que se realiza hoje e amanhã no ISCTE, em Lisboa, com especialistas de vários países. Organizadoras do congresso, as investigadoras Clara Carvalho e Antónia Barreto, do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, são mais comedidas do que o comunicado difundido pelo instituto. Não negam que a situação é grave, mas o que as move é a procura de soluções. “O português está em crescimento no mundo, mas o que se diz não corresponde aos números nem nunca correspondeu”, diz ao PÚBLICO Clara Carvalho.
Não serão, pois, os 280 milhões da propaganda oficial, mas é impossível obter números exactos. “Há estimativas, não há um estudo.” E as mais actuais são sempre as do The World Factbook, da CIA. “Eles multiplicam, relativamente ao último censo, pela taxa de crescimento populacional expectável.” Angola teve um censo em 2014 e Moçambique em 2017, embora os números deste ainda não estejam disponíveis. As outras estimativas são calculadas a partir das “taxas de literacia declaradas, baseadas no número de pessoas que vão à escola”. Pecarão por excesso ou defeito? Não se sabe.
Sabe-se, no entanto, o que dizem a experiência e a história. “Quando se chegou ao fi m do processo colonial, não havia, à parte algumas excepções, um sistema de ensino primário estabelecido”, aponta Clara Carvalho. Num território com taxas de analfabetismo e iliteracia elevadas, Portugal incluído, a situação não era homogénea.
“Em Angola, com a guerra, e com a grande movimentação de populações e de soldados, o português foi adoptado como ponto de contacto”, acrescenta a investigadora. Mas nas cidades apenas, não nas zonas rurais. Em Moçambique a situação é mais débil, com apenas 10% da população a assumir o português como língua materna. Já em São Tomé o panorama será melhor: “Os dialectos locais são também falados, mas o português é a língua franca.”
“Provavelmente o bilinguismo será solução, porque ele é assumido na prática”, defende a investigadora Clara Carvalho
Cabo Verde é, dizem as investigadoras, um caso à parte. “Pelo menos desde o século XIX há um sistema de ensino funcional, embora o crioulo tenha sido sempre, e continuará a ser, a língua franca.” Ali perto, na Guiné-Bissau, o caso complica-se: “Sendo uma colónia de ocupação, onde não havia grande contacto [dos colonos] com a população, o PAIGC instituiu o crioulo como a língua de contacto nacional, a língua da modernidade.”
A razão para os crioulos não terem sido logo adoptados como língua oficial após as independências residirá, nota Clara Carvalho, no facto de os dirigentes dos novos países serem “elites educadas em português”, que o adoptaram “numa perspectiva geopolítica”. Os crioulos não tinham expressão escrita oficializada, nem gramática, nem difusão internacional.
Ensinar em que língua?
Neste cenário, o que pode e deve ser feito? O congresso, sob o lema Cooperação e Educação de Qualidade, procura respostas. Antónia Barreto, que sublinha a importância do “apoio, grande, do Instituto Camões” para custear as deslocações de especialistas, diz que estes dias servirão para que fiquemos a conhecer melhor “os panoramas actuais e os desafios que esperam os sistemas educativos destes países”.
O bilinguismo será a solução? “Muito provavelmente, porque ele é assumido na prática”, responde Clara Carvalho. Com ressalvas: “Em sítios onde existe uma língua franca local, é muito fácil adoptá-la. Quando não há, promover o ensino das mais impactantes é ajudar a manter essas línguas e, eventualmente, na identificação dos jovens com o sistema de ensino.” Antónia Barreto dá, como exemplo da dificuldade de tal opção, a Guiné-Bissau: “Numa sala com 50 meninos, onde estão juntos manjacos, mandingas, fulas, ensina-se em que língua?”
“Há várias soluções”, insiste Clara. “Vamos ter cá o padre Luigi Scantamburlo [pedagogo italiano], que defende há décadas que se devia ensinar o crioulo como entrada para o português, algo que tem feito, aparentemente com sucesso.” Mas há outra via, que está a ser promovida pela UNESCO: “Colocar as crianças mais cedo na escola, para não abandonarem tanto. Habituá-las desde pequenas. E essa entrada deve ser feita com um misto das línguas maternas. Na Guiné, uma criança fula entrava na escola e aprendia em fula. Mas nós vimos uma experiência fantástica, de uma ONG [indiana] que está a trabalhar em aldeias fula no Sul, com crianças que não falam crioulo. O que têm? Professores que ganham três vezes mais e dispõem de uma formação à parte, com reuniões todos os meses e novos métodos pedagógicos. Aí vimos crianças a falar e a aprender em português.”
Antónia Barreto concorda: “Quando estão reunidas as condições, a aprendizagem do português faz-se relativamente bem. [Na Guiné-Bissau] as escolas dependentes de grupos religiosos, católicos ou protestantes, ou as madrassas, estão a funcionar. Já o sistema público está sem controlo e fica muito difícil que as pessoas aprendam alguma coisa.” Clara acrescenta: “Isto é mais caro, é verdade, mas o preço a pagar por aquilo que não se faz será muitíssimo superior ao que se pagaria se se conseguisse este nível para todas as escolas. Porque serão sempre crianças com uma escolarização deficiente, seja em que língua for.” E o empenho dos professores faz a diferença. “Têm de ver o seu trabalho como algo de gratificante.”
Do congresso, as duas investigadoras esperam algo de útil. Antónia deseja que estes dias contribuam “para a consciencialização de que os países têm de ter soluções ajustadas ao seu contexto”: “Tem de haver informação a nível multinacional, e apoios, mas não se podem impor agendas, soluções, cópias.” E há outro ponto que Clara quer ressalvar, o ensino de qualidade: “Não falo do melhor ensino do mundo, mas de qualquer coisa que não seja repetir o que o professor escreve no quadro (quando tem professor!) e dê competências para avançar.”
*”Público” de 08.Nov.2018



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