«CERTEZA» e o sentir o mundo da II Grande Guerra E as ilhas por transformar...

sexta-feira, 29 de março de 2019

Antes de mais felicitar a oportuna e feliz iniciativa do Jornal «Expresso das Ilhas» nesta reedição completa dos números de «Certeza – Folha da Academia».
Relembrar que foram três números. Dois em 1944 e um em 1945.
O texto que se segue foi uma intervenção feita nas celebrações dos 75 anos do Movimento «Certeza» e a convite do Jornal aqui referido.

 É interessante reler os textos dos organizadores e dos autores  pertencentes a esta corrente literária. Isto, por várias razões, entre as quais distinguiria três :

Uma dessas razões, e a primeira, tem a ver com a juventude dos seus fundadores, 18 e 20 anos de idade, sendo ainda alunos liceais, a cultura que demonstram - estruturada e madura - aliada à sede, e à a vontade de aumentar a dimensão da “redescoberta social e psicológica” das ilhas,  iniciada por «Claridade», em 1936. No dizer de Manuel Ferreira.
São eles, entre fundadores e organizadores: Nuno Miranda, Arnaldo França, Guilherme Rocheteau, José Spencer, Silvestre Faria, Filinto Meneses,  Orlanda Amarílis e Tomaz Martins. Sendo Director Eduíno Brito Silva e Editor; Joaquim Ribeiro.
Tudo isto aconteceu em Mindelo, em 1944/45. Mindelo a cidade portuária  com o seu Liceu; com as suas tertúlias, para os de Certeza, tertúlias da Academia «Cultivar»; com os mais velhos, os  da «Claridade» em plena pujança criativa; com as informações que constantemente  chegavam à ilha-cidade, através do Porto Grande aberto ao mundo e aqui entramos já no segundo motivo ou razão de interesse do Movimento «Certeza», a influência da II Grande Guerra Mundial nas preocupações e na escrita dos seus autores. Justificada por Arnaldo França  da seguinte forma, nas suas preciosas «Notas sobre poesia e Ficção cabo-verdianas» de 1962 – Separata do Boletim Cabo Verde.
Diz o Dr. França a determinada altura, e passo a citar: “ ...o aparecimento da revista em 1944 é significativo. Nessa altura desenhava-se  já no horizonte o triunfo das forças aliadas no campo da guerra europeia, e  mais pressentidos que conscientemente esperados, desenhavam-se os fecundos tempos em que ainda vivemos.” Fim de citação.
Ora bem, a influência do conflito mundial terá sido tema presente e marcante na produção dos jovens  «Certeza». E para ilustrar a forma como os seus poetas o viviam não resisto a transcrever excertos do poema “Testamento para o Dia Claro” de Arnaldo França em que a própria terminologia reflecte esse tempo bélico  vivido um pouco por todo o mundo, e em Mindelo também, nos idos anos da década de 40 do século passado - um tempo horrendo - mas sempre na esperança do “Dia Claro”....
Cito: “Quando no fundo da noite vier o eco da última palavra submissa / E a pátina do tempo cobrir a moldura do herói derradeiro // Quando o fumo do último ovo de cianeto / se dissipar na atmosfera de gases rarefeitos / E a chama da vela da esperança / se acender em sol de madrugada do novo dia...
E continua: (...) “ Quando só restar na franja da memória // lapidada pelo buril dos tempos ácidos. (...) Sejais vós ao menos infância renovada da minha vida // A colher uma a uma as pétalas dispersas / da grinalda dos sonhos interditos.”
Claro, que como texto poético que é o «O testamento para o Dia claro» é plurissignificativo e suporta várias análises e diferentes desmontagens.
Ainda um outro motivo de interesse dos jovens membros do movimento «Certeza», é a preocupação da procura do saber e de actualização literária, daí que uma das correntes influenciadoras dos seus poetas, dos seus ensaístas e prosadores, foi ou, tenha sido o Neo-Realismo português. O Neo-realismo, que somos sobre isso elucidados, pois  Manuel Ferreira a prestar serviço militar em São Vicente, à época e  que à «Certeza» se juntou, lhes terá dado a conhecer obras e autores desse movimento, tais foram Mário Dionísio, Alves Redol, Manuel da Fonseca, Fernando  Namora, entre outros, então notáveis neo-realistas portugueses.
Pois bem, é também o próprio Manuel Ferreira ( «No Reino de Caliban», vol. I 1974) que destaca –na opinião dele -  como  único poeta saído do movimento, Arnaldo França. Este, por sua vez, e nas “Notas” já aqui já citadas, e escritas em 1962  diz que o movimento apenas produziu um romancista: Nuno Miranda e que não produziu poeta. Não se fala aqui dos  nomes de António Nunes e nem de Teixeira de Sousa pois que eles foram de uma adesão, é certo, mas   à distância e posteriores, não foram presenciais - embora ideologicamente muito próximos do ideário de «Certeza». Não é por acaso, que no nº. 2 de «Certeza» venha na primeira página, os emblemáticos versos do “Poema de Amanhã” de António Nunes.
Faço-vos aqui um desabafo, uma espécie de confidência intramuros, numa espécie de à parte:
Uma das coisas que sempre me encantou no homem intelectual que foi Arnaldo França,  é  aquilo a que chamarei, para comodidade de expressão: uma modéstia culta, ao falar ou ao escrever sobre si, sobre a produção escrita do seu tempo por exemplo, sobre a  sua participação,  no movimento «Certeza». Creio que ele pertence ao grupo de pessoas de espírito e de mente profundamente cultos e civicamente instruídos que não se deslumbra e por isso  diz as coisas com toda a naturalidade,  com simplicidade, sem necessidade de se pôr em ”bicos de pés” Um encanto! Que infelizmente, hoje está a  rarear ou, mesmo a desaparecer entre a classe dos literatos, pois encontramo-los entre nós, os que se gabam, se citam excessivamente, e se auto-projectam à primeira redacção bem feita. Enfim...  desculpem-me este à parte, que vou fechar não sem antes dizer que o exemplo de probidade e de humildade intelectual de dr. França deviam ser bem seguidos.
Continuando, Nuno Miranda e Arnaldo França – foram de facto, quem melhor consubstanciou - porque o projectaram, e o vivenciaram -  o ideário dos jovens oriundos da academia «Cultivar» e apresentados publicamente na Folha «Certeza». ambos na poesia, e um no Conto e no Romance. Em matéria de análise cultural, literária também se deve destacar o nome de Guilherme  Rocheteau.
Gostaria de distinguir o contista e romancista que é Nuno Miranda e que reflectiu de forma explicita e alongada, no seu romance: «Cais de Pedra» esse ideário “certeziano”. Obra, creio eu que tardiamente publicada. O meu exemplar é de 1989,  publicado pelo antigo Instituto cabo-verdiano do Livro.
Ora bem, dizia eu que o autor  reconstruiu, através dos ambientes mindelenses e dos diálogos das personagens, do seu «Cais de Pedra»  os anos da década de 40. Trata-se de uma ficção em que as personagens  mais intervenientes são «Torna-viagem». Abro aqui um pequeno parêntesis, para dizer que na minha opinião, é na ficção de Nuno Miranda que apareceu pela primeira vez, o «Torna-viagem» como protagonista  da narrativa. Mais tarde, Teixeira de Sousa, retoma esse perfil de personagem no seu romance «Xaguate».  Fecho o parêntesis.            
Para exemplificar, em «Cais de Pedra», o protagonista Guilherme  veio da Argentina, onde fora um emigrante, bem sucedido,  Eduardo  regressa dos Estado Unidos, também bem-sucedido. As falas deles deixam transparecer  o alter-ego, aliás são vários os alter-egos do autor e de alguns referentes reais recortados dentro do Movimento «Certeza». Outras  personagens do romance, regressam também de Portugal, da Europa, todas elas carregadas de teorias desenvolvimentistas e de ideias novas, modernas, ideias que o leitor se apercebe, saídas afinal do programa de «Certeza» e sobre as quais, discutem a sua realização, efectivação em São Vicente, em Santo Antão, nas outras ilhas... Enfim, um romance de personagens em diálogo permanente, que deixam perceber que  as boas ideias, para terem credibilidade islenha, teriam de vir fora e da parte do mundo considerada,  desenvolvida,  industrializada e civilizada... Assim questionam e interagem as personagens do romance, «Cais de Pedra» de Nuno Miranda, cujo conteúdo, terá sido modelado e transfigurado no ideário de «Certeza» que hoje aqui homenageamos..
E  isto aconteceu há 75 anos! Bem hajam os seus fundadores! Bem haja a sua memória!

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