Há tempos, li o comentário de um conterrâneo que era de veemente
severidade sobre a realidade da paisagem urbana do Mindelo da actualidade.
Entre outros mimos, disse que a cidade parece uma grande favela, o que não é
exagero se incluirmos na apreciação certas zonas periféricas. Mas também já li
desabafos diferentes mas não menos depreciativos, como dizer-se que em certas
zonas a cidade se assemelha a bairros pobres de comunidades do Médio Oriente ou
do Corno de África, quer pela tipologia das habitações, que nada tem a ver com
a arquitectura que mais nos caracteriza, quer pela ausência de qualquer ideia
de ordenamento. Com particular singularidade, outra apreciação comparava os
arredores do Mindelo a uma cidade bombardeada.
Os que de fora nos visitam têm idêntica opinião. Por exemplo, um amigo
meu português, que amiúde vai de férias às nossas ilhas, por gostar da nossa
gente, regressou há dias da Boavista e confessou-me que não compreende por que em
Cabo Verde cada um constrói a seu bel-prazer, sem regra e sem respeito por uma
ideia de integração num conjunto.
O que tudo isto tem de verdade no Mindelo, será porventura ainda mais
gravoso noutras cidades, como a Praia. Com efeito, estamos perante falhas
clamorosas ao nível da arquitectura paisagística, no Mindelo como em outras
cidades cabo-verdianas que cresceram à margem de regras que são imperativas
numa cidade que se preze. A arquitectura das cidades, por princípio, deve
integrar as artes criativas, as ciências naturais e as ciências sociais, e da
sua conjugação resultam soluções que sempre têm de se coadunar com a história,
a cultura e a traça dominante herdada do passado. Nada disto se verifica na
nossa terra e a pergunta que se põe é se tudo se deve à impreparação ou
incompetência dos arquitectos. Direi que não porque os nossos arquitectos têm a
ciência necessária para conceber qualquer tipo de projecto.
O que sucede na nossa terra é que não há nem nunca houve rei nem roque
nesta matéria, desde a independência, sobretudo a partir de 1990. Cada um faz o
que lhe apetece e sempre em obediência ao seu gosto ou interesse pessoal,
marimbando para o colectivo. Por isso, razão tem a pessoa que considera Mindelo
uma vasta favela e não uma cidade que devia primar por um mínimo de bom gosto,
decência e funcionalidade. E, cereja amarga em cima do bolo azedo, é essa
ausência de acabamento exterior em grande parte das construções, pelo que
resulta da amálgama de casas sem estética uma paisagem feia, sem graça,
incaracterística, além do grave problema de se inscreverem em ruas mal
traçadas, desconexas, anquilosadas, sem espaço sequer, em inúmeros casos, para
fins utilitários e públicos, como acesso a ambulâncias, viaturas de bombeiros,
etc.
Então, se não é uma questão de falta de arquitectos capazes, o mal só
pode ser atribuível a corrupção ou demissão de responsabilidades ao nível das
autarquias. A começar, pois, pelas autoridades, que não agem ou hesitam em agir
de acordo com as suas competências e responsabilidades, ou que, mais grave
ainda, não estabelecem baias intransponíveis entre o interesse público e o
privado, dando azo a situações de duvidosa legitimidade, ou mesmo de flagrante
transgressão, isto para ser mais eufemístico do que assertivo nas minhas
palavras.
Depois, não é difícil imaginar que a demissão, apatia ou inacção de quem
governa tem um efeito de autêntica permissão e aval aos desmandos das empresas
construtoras e dos próprios cidadãos. Assim, direi que o mal se entrelaça de
tal forma que não se sabe onde começa e onde acaba, nem quando vai ter fim ou
se é mesmo possível pôr-lhe um fim. O que está em causa pode ser mais propriamente
aquele tipo de transgressão que é fruto de favoritismo, cedência, lassidão,
desleixo, hábitos paroquialmente enraizados nos meios em que quase toda a gente
se conhece. Poderá, por enquanto, não assumir a escala das situações mais
gravosas nas suas repercussões sociais, em que a criminalidade se aloja
dissimuladamente; mas, silenciosamente, sub-repticiamente, a fenomenologia dos
comportamentos deletérios vai-se instalando e ganhando proporções crescentes,
produzindo os seus efeitos melífluos. É como certo tipo de cancros.
No fundo, o mal está na comunidade como um todo, na sua mentalidade de
conformismo e permissividade, que é sintomática de uma insuficiente consciência
cívica e identitária. A simples constatação da proliferação desses inúmeros
caixotes de maior ou menor tamanho em detrimento da bonita traça colonial de
muitas construções que herdámos, diz-nos de uma realidade que não podemos
ignorar e temos de lastimar e condenar. Aos poucos, se não houver contenção e
travão aos desmandos, as nossas cidades vão-se assemelhando a muitas grandes
favelas de qualquer outra cidade africana sem história e sem passado digno de
registo.
Contudo, penso que aos nossos arquitectos cabe uma particular e
intransmissível responsabilidade. Pela sua formação académica, deviam ser os
primeiros a agir em defesa do nosso legado patrimonial, em vez de caucionarem,
activa ou passivamente, as transgressões sucessivas que nos conduziram à
situação que várias fotografias do Mindelo e outras cidades vêm reportando.
É preciso ver que a oferta turística das nossas ilhas tem muito a ver
com a singularidade arquitectónica das suas urbes. Podem ser pequenas e pobres,
mas se se lhes tira a alma, tudo se perde. Será um erro imperdoável importar o
que de pior existe lá fora, mais ainda se forem imitações grosseiras e em
desconexão com a nossa realidade cultural.
Adriano
Miranda Lima
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