sábado, 26 de setembro de 2020

 

Após uma prolongada ausência, eis-nos de volta ao leitor com um texto de todo oportuno e interessante, da autoria de Nuno Pacheco, Jornalista do Jornal Público. 

Trata-se de uma análise muito assertiva que nos dá a (re)conhecer a “barafunda linguística” que grassa na nossa bela Língua  causada pelo novo Acordo Ortográfico.

 

 

 

Paira um espectro sobre os amigos do acordo

 ortográfico — o espectro da fonética

Nuno Pacheco*

Há dias, o jornal Voz Portucalense, semanário da diocese do Porto, trazia um curioso artigo intitulado “Vamos aprender a pronunciar a língua portuguesa?”. M. Correia Fernandes, o seu autor, partindo de um facto antigo (“As palavras não se escrevem como se pronunciam”) e de uma conclusão sensata (sendo uma convenção, a ortografia “deve servir para se distinguirem as palavras e não para as confundir”), sugere que passemos a pronunciar melhor as palavras e que dispensemos muitos dos anglicismos que para aí andam a despropósito. Mas não se fica por aí. Escreve, a dado passo, o seguinte: “Há palavras em que o acordo ortográfico deveria ter servido para valorizar a distinção de muitos vocábulos em que a grafia fosse orientada para ajudar a pronunciar as consoantes, tornando-as de mudas em pronunciadas.” E dá como exemplos “contrato” (elemento jurídico) e “contracto” (de contraído, devendo ler-se o c), “ótico” e “óptico” (lendo-se o p), “repto” e “recto” (sugerindo que se leia o p e também o c), dizendo que as ditas consoantes mudas deveriam ser também pronunciadas em “facto” (já o são), “factor”, “acto”, “actor”, “concepção” e “percepção”, etc. Tudo isto parece contrariar o acordo ortográfico de 1990, o tal que decepou consoantes a eito. Mas o autor escreve com o acordo de 1990…

Sem desmerecer as boas intenções implícitas no texto, dir-se-á que andamos como o bicho que corre atrás da própria cauda a tentar mordê-la sem estranhar que ela se afaste quando se move. O acordo ortográfico, mexendo na escrita, mexeu também na fonética. Isto já foi dito mil vezes, mas nunca é de mais repetir. Escrever “fator” e pretender que se leia “fàtôr” (factor) é ilusório. Daqui a uns anos, diremos “âtor”, “dir’ção”, “obj’tivo” e disparates do género. Sim, estamos a mudar a nossa fala por causa de uma escrita aberrante que, sendo diferente da brasileira (e nunca é excessivo insistir nisto), não respeita o nosso sistema vocálico e as suas idiossincrasias.

O autor estranha que se diga “xesso” em vez de excesso, ou “xêntrico” em vez de excêntrico, só que a erosão das palavras na fala é um fenómeno antigo, persistente e é não apenas português. Estranho era que escrevêssemos “xesso” e “xêntrico”. Coisa que, a seu modo, o acordo faz. Há um interessante teste, que qualquer leitor poderá fazer por si, e que consiste em dar à “máquina” do Word, programa de texto (aqui, uns lerão “tâichtu” e outros “têchtu”, sem que a escrita se altere), um lote de palavras para “ler” em voz alta. A máquina usa um algoritmo introduzido por mão humana e esse algoritmo está adaptado ao português de Portugal, como logo se percebe.

O teste do Word é elucidativo: a grafia do AO não é tragável, nem por uma máquina

O processo é simples: copiem as palavras indicadas para uma folha do Word em branco, escolham a opção “Rever” no menu, coloquem o cursor do rato no início da primeira palavra e carreguem em “Ler em voz alta”, que a máquina lerá tudo numa voz feminina sintetizada. Para parar, basta carregar de novo no mesmo botão. Numa série de palavras, o som da escrita segundo o acordo de 1945 e o de 1990 soará igual. Exemplos (copiem-nos e ouçam): Acção, Ação; Acepção, Aceção; Activo, Ativo; Actual, Atual; Baptista, Batista; Cacto, Cato; Coacção, Coação; Espectáculo, Espetáculo; Exactamente, Exatamente; Factura, Fatura; Percepção, Perceção; Reactor, Reator; Recto, Reto; Recepção, Receção; Selecção, Seleção; Tractor, Trator.

Porém, noutras, o contraste entre fonéticas é chocante. E esta lista é bem maior (experimentem copiá-la e depois ouvi-la): Adjectivo, Adjetivo; Adopção, Adoção; Arquitecto, Arquiteto; Aspecto, Aspeto; Acto, Ato; Actor, Ator; Actores, Atores; Baptismo, Batismo; Baptizado, Batizado; Bóia, Boia; Correcção, Correção; Correcto, Correto; Detecção, Deteção; Detectar, Detetar; Dialecto, Dialeto; Direcção, Direção; Directa, Direta; Efectivamente, Efetivamente; Efectivo, Efetivo; Electivo, Eletivo; Efectuar, Efetuar; Electricidade, Eletricidade; Electrónica, Eletrónica; Espectador, Espetador; Expectativa, Expetativa; Exacto, Exato; Excepto, Exceto; Exceptuando, Excetuando; Factor, Fator; Fracção, Fração; Indefectível, Indefetível; Infectado, Infetado; Infecção, Infeção; Injecção, Injeção; Insecto, Inseto; Inspecção, Inspeção; Inspector, Inspetor; Interactivo, Interativo; Jóia, Joia; Lectivo, Letivo; Nocturno, Noturno; Objectiva, Objetiva; Objecto, Objeto; Perceptível, Percetível; Perspectiva, Perspetiva; Projecção, Projeção; Projecto, Projeto; Prospecção, Prospeção; Protecção, Proteção; Protector, Protetor; Reacção, Reação; Receptor, Recetor; Redacção, Redação; Retrospectiva, Retrospetiva; Selectivo, Seletivo; Sector, Setor; Sectores, Setores; Tecto, Teto; Tracção, Tração; Vêem, Veem.

Burrice da máquina? Erro no algoritmo? Não, erro no acordo. Não se pode torcer a barra e querer que ela fique direita ao mesmo tempo. Claro que a máquina tem falhas: abre indistintamente as vogais em “coação” (de coar) e “coacção” (coagir); e lê “acordam” como “acurdam”. Mas ainda assim tem suficiente “entendimento” para abrir o u em “equitativo” ou “equidade” e fechá-lo em “equilibrado” ou “equinócio”; e dá o devido som às vogais em contexto, abrindo o o em “quando eu acordo” (ò) e fechando-o na frase “assinaram o acordo” (ô).

Por isso, este teste é elucidativo: a grafia que nos impingiram em Portugal não é tragável, nem mesmo por uma máquina.

*JornalistaPúblico de 24 de Setembro de 2020

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Ondina, o que é intrigante é constatar que a maior parte das pessoas cultas, inteligentes, lúcidas e sem outra motivação que não a defesa do interesse público, continuam a pregar no deserto, com os decisores políticos a assobiarem para o lado. À excepção de uma ou outra voz isolada e sem crédito a defender este AO, a verdade (científica) entra pelos olhos dentro e quem tem poder para parar e inverter o processo age como se nada se passasse. Será pelo desconforto que essa decisão acarreta e pelas suas consequências no imediato? Provavelmente, mas é só uma questão de reflectir sobre o que mais convém à grei: suportar os inconvenientes e custos da suspensão do AO ou deixar a língua portuguesa com entorses e maleitas insanáveis.
Este Acordo é das maiores monstruosidades cometidas pelo poder político português nas últimas décadas.

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