Por termos achado o texto muito oportuno e cujo
conteúdo se revela cada vez mais pertinente para a reflexão da sociedade
cabo-verdiana, aqui o publicamos.
Com efeito, o autor, Humberto Cardoso, chama a nossa
atenção para o perigo da "idiolatria". Uma sociedade idólatra, no
sentido singular, é pobre civilmente e a democracia sairá dela certamente em
modo redutor.
É sempre bom recordar que Cabo Verde foi nação muito
antes de se tornar Estado, e isto quer dizer que já existia no Arquipélago uma
plêiade de homens e de mulheres que tinham plena consciência das suas
peculiaridades identitárias e da sua condição cultural mestiça.
Colocar apenas um nome (só!), neste gigantesco e
complexo fenómeno a que actualmente damos o nome de cabo-verdianidade, é
certamente muito redutor. Até porque A.C., ele próprio, já foi um produto
de imensas transformações e de profundas consciencializações que ele terá
encontrado já feitas, pois que o tempo (ao longo de séculos) moldou e forjou o
Ser insular cabo-verdiano de que ele é parte…
E a propósito de tudo isto, do texto em apreço,
aqui transcrito, levou-nos a outro grande nome da cultura das ilhas, o poeta e
ensaísta Gabriel Mariano (1928-2002). Este autor, na nossa opinião, foi dos que
mais completamente estudou, analisou e verificou através dos seus ensaios,
a nossa cultura mestiça e a nossa identidade. Outros houve que através da
história e da geografia humana cabo-verdianas nos demonstraram as nossas
singularidades e as similitudes com os povos também resultantes de
cruzamentos.
Logo, reiteramos ao leitor, o interesse deste
Editorial de Humberto Cardoso publicado no Jornal «Expresso das Ilhas».
Não mais embalar o povo com estórias
Foi
notícia no dia 12 de Setembro a declaração do presidente da república a tomar a
data como “início das comemorações do centenário de Amílcar Cabral”. De
imediato, a comunicação social pública surgiu na sua onda de costume a tecer
loas à figura do líder do PAIGC e à luta de libertação na Guiné-Bissau
secundada pela Fundação Amílcar Cabral a clamar por gratidão eterna dos
cabo-verdianos para com os “libertadores”.
Ora,
o 12 de Setembro não é reconhecido como feriado nacional para ser objecto de
declarações oficiais e sabe-se que decisões em matérias de comemorações nos
países com o sistema político de feição parlamentar são fundamentalmente do
executivo. Em Cabo Verde, por exemplo, já foram tomadas sob a forma de
resolução do governo (Resolução 27/2006 de 26 Junho, Centenário da Claridade) e
em Portugal também as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril foram
determinadas por resolução do governo (Resolução 70/2021 de 4 de Junho.
Talvez
ciente de um faux pas, ou lapso do PR a ultrapassar os seus
poderes, apareceram posteriormente outras vozes a perguntar o que é que o
governo e o parlamento iriam programar para essas comemorações. São perguntas
que procuram preencher o vácuo criado e servem certamente para pressionar os
outros órgãos de soberania a agir no sentido pretendido e de acordo com o
quadro já estabelecido.
Nas
declarações do PR quer-se que ainda hoje Amílcar Cabral, o líder fundador e
ideólogo do PAIGC, seja força inspiradora para realizar os sonhos daqueles que
lutaram pela independência. Isso poderá ter sentido em projectos totalitários,
mas não numa república assente nos princípios da soberania popular, no
pluralismo de expressão e no respeito pelos direitos e liberdades individuais.
De
facto, a procura do bem comum nas sociedades livres resulta do processo
democrático e não da concretização dos sonhos de alguns. Aliás, do conhecimento
histórico e da experiência própria em Cabo Verde, sabe-se no que dá seguir por
esse caminho. O desastre do que foi o regime de partido único na Guiné-Bissau e
o atraso que representou para Cabo Verde – até hoje Cabo Verde é um dos países
mais atrasados em comparação com outros pequenos estados insulares, os SIDS –
resultaram do projecto do PAIGC que, como se veio a constatar ao longo de
década e meia, era mais um projecto de poder de alguns, camuflado em projecto
de libertação.
A
recomendação do PR de seguir Cabral no “pensar com as nossas próprias
cabeças” também não faz muito sentido. No contexto em que foi expressa
a frase adequava-se aos regimes políticos previstos que posteriormente seriam
estabelecidos pelo PAIGC na Constituição da Guiné-Bissau de 1973 e na
Constituição de Cabo Verde de 1980. Nesses regimes não há pluralismo, apenas se
prevê um partido político e os direitos fundamentais são exercidos como a lei
ordinária no momento determinar. Forças do conformismo ideológico, ameaças de
ostracismo social e o perigo de exílio ou mesmo de eliminação física garantem
que “pensar com as nossas próprias cabeças” passa a significar, de facto, “pensar
com a cabeça do partido, ou seguir a linha do partido”.
O
ponto de partida do regime democrático é outro. Ninguém tem a verdade absoluta
e assegura-se a possibilidade de haver pensamento independente, não se
inspirando em figuras históricas de matriz ideológica totalitária, mas sim num
ambiente político de liberdade de expressão e liberdade de informação, de
pluralismo e de alternâncias pacíficas de governos. Também não cabem num quadro
democrático apelos que se abeiram da idolatria do tipo que Amílcar
Cabral nos permita mobilizar energias, capacidades e competências para a
realização dos sonhos daqueles que lutaram pela independência (...)
Diz-se
amiúde que os países ou nações precisam dos seus mitos fundadores para terem
uma identidade própria, para manter vivo o espírito de união na resposta às
ameaças existenciais e às adversidades e também para renovar os laços comuns
com vista à construção de um futuro de prosperidade. Tem sido essa a mensagem
passada em vários países africanos para justificar a veneração oficial dos
chamados “libertadores e pais da independência” e inculcar nas gerações
sucessivas o dever de gratidão eterna para com eles. Uma gratidão que na
generalidade dos casos, e em primeiro lugar, os desresponsabiliza dos regimes
ditatoriais implantados, dos sofrimentos indiscritíveis infligidos e do enorme
atraso provocado por governação desastrosa e corrupta.
A
situação crítica que se vive em vários países da África dá conta do embuste que
isso foi, da mesma forma como noutras paragens a desagregação da Jugoslávia
depois da morte do marechal Tito e da União Soviética com o fim do regime do
partido comunista, o partido demiurgo que produzia Pais dos Povos. A Guiné-Bissau,
no dia 24 de Setembro, vai completar cinquenta anos que adoptou a constituição
que criou o regime de partido único e logo de seguida por Lei nº 4/73 proclamou
Amílcar Cabral Fundador da Nacionalidade. Pelas vicissitudes da história desse
país nas décadas seguintes não se poderá dizer que a narrativa da nação forjada
na luta, do partido como factor de cultura e do líder do partido como fundador
da nacionalidade contribuiu para criar identidade, espírito de união e laços
comuns que poderiam tirar a Guiné-Bissau do grupo dos países mais pobres do
mundo. Muito pelo contrário.
Pior
acabou por acontecer em Cabo Verde quando também se instituiu o partido único
e, por uma publicação no B.O. de 7 de Julho de 1975, suplemento, que se
convencionou chamar de Lei, se proclamou Amílcar Cabral como fundador e
militante nº1 do PAIGC (artigo 1º) e como Fundador da Nacionalidade (artigo
2º). O povo das ilhas, que de há muito tinha uma identidade e uma consciência
da nação que já era traduzida designadamente na sua língua, música e
literatura, ganhava um PAI por imposição política. Explica claramente as razões
desse primeiro acto do poder nas ilhas uma frase atribuída ao filósofo,
economista e sociólogo alemão Karl Marx: “Se você conseguir isolar as
pessoas de sua história, elas poderão ser facilmente persuadidas”.
O
partido único durou 15 anos e só terminou com a chamada terceira vaga da
democracia que deitou abaixo, nos fins dos anos oitenta e início de noventa,
regimes autoritários e totalitários em todos os continentes.
Com
a adopção da Constituição de 1992, Cabo Verde erigiu-se numa república não
baseada em sonhos ou projectos de poder de alguns, mas sim num sistema de
princípios e valores que tem o seu fundamento no respeito pela dignidade humana
e no reconhecimento da inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos
individuais.
As
democracias liberais e constitucionais, com os seus valores de pluralismo,
tolerância e de promoção da inclusão têm demonstrado que é possível fortalecer
a ideia de nação, conviver com o multiculturalismo e desenvolver o espírito
cosmopolita sem comprometer a liberdade e a prosperidade. Não há, portanto,
necessidade de se inspirar em figuras históricas com lastro ideológico datado
para reforçar os laços necessários à construção do futuro comum.
É preciso não mais cortar o povo da sua história porque ninguém mais o embala com estórias para lhe roubar a liberdade.
[i]
Editorial do jornal “Expresso das Ilhas” nº 1138 de 20 de Setembro de 2023
Comentários:
Adriano Miranda Lima disse:
Quando li este editorial do Expresso das Ilhas, calculei que o
assunto em causa não podia deixar de ser vertido neste blogue, pela sua pertinência mas sobretudo pela clarividência intelectual e pelo desassombro cívico de denunciar sem peias a rotunda falsidade que é atribuir a paternidade da nacionalidade cabo-verdiana a Amílcar Cabral. Precisamente porque isto entronca com a linha editorial do Coral Vermelho, faz assim todo o sentido transcrever o texto neste espaço.
Os que ainda insistem naquela falsidade, o que é grave se ocupam altos cargos políticos, não se dão conta de quão confrangedor e inaceitável é tentar atropelar a verdade histórica, como bem demonstra Humberto Cardoso. Porque é a história, por mais que se queira lê-la enviesadamente ou à luz de incidências temporais, que mostra que a identidade cabo-verdiana começou a forjar-se, ainda que de forma incipiente, entre os séculos XV e XVII, aprofundando-se mais tarde no ambiente de contínua sedimentação cultural que nasceria sob a égide dos intelectuais nativistas e claridosos. Terão sido estes os que, a meu ver, e creio que cada vez mais reunindo consenso, melhor captaram e interpretaram as condições e os pressupostos geográficos, antropológicos, sociais e ambientais que determinam a identidade e a singularidade da nação cabo-verdiana, distinta de qualquer outra, africana ou europeia.
Sem querer diminuir o que pode ter sido a pulsão de um ideal merecedor de ser olhado, no mínimo, com respeito intelectual, a verdade é que a “luta” de Amílcar Cabral ter-se-á aproveitado do ambiente cultural lavrado pelos claridosos para lhe emprestar a inflexão de uma ideologia e de um desígnio político que o tempo revelaria alheios às aspirações mais profundas dos cabo-verdianos. Desde logo porque o povo não prestou qualquer mandato ao Amílcar Cabral ou aos seus correligionários, o que nem seria concebível tratando-se de uma ideologia totalitária.
Portanto, tem toda a razão Humberto Cardoso quando diz que não faz sentido a “recomendação do PR de seguir Cabral no ‘pensar com as nossas próprias cabeças’ ”. É passar um atestado de menoridade cívica a um povo. Pelo contrário, se o povo cabo-verdiano se der ao escrupuloso cuidado de pensar com a sua própria cabeça, tem de denunciar e rejeitar de vez os falsos mitos que ainda persistem em algumas cabeças aprisionadas, acreditando que só ele pode ser senhor do seu destino.
Em 07.10,2023
1 comentários:
Quando li este editorial do Expresso das Ilhas, calculei que o
assunto em causa não podia deixar de ser vertido neste blogue, pela sua pertinência mas sobretudo pela clarividência intelectual e pelo desassombro cívico de denunciar sem peias a rotunda falsidade que é atribuir a paternidade da nacionalidade cabo-verdiana a Amílcar Cabral. Precisamente porque isto entronca com a linha editorial do Coral Vermelho, faz assim todo o sentido transcrever o texto neste espaço.
Os que ainda insistem naquela falsidade, o que é grave se ocupam altos cargos políticos, não se dão conta de quão confrangedor e inaceitável é tentar atropelar a verdade histórica, como bem demonstra Humberto Cardoso. Porque é a história, por mais que se queira lê-la enviesadamente ou à luz de incidências temporais, que mostra que a identidade cabo-verdiana começou a forjar-se, ainda que de forma incipiente, entre os séculos XV e XVII, aprofundando-se mais tarde no ambiente de contínua sedimentação cultural que nasceria sob a égide dos intelectuais nativistas e claridosos. Terão sido estes os que, a meu ver, e creio que cada vez mais reunindo consenso, melhor captaram e interpretaram as condições e os pressupostos geográficos, antropológicos, sociais e ambientais que determinam a identidade e a singularidade da nação cabo-verdiana, distinta de qualquer outra, africana ou europeia.
Sem querer diminuir o que pode ter sido a pulsão de um ideal merecedor de ser olhado, no mínimo, com respeito intelectual, a verdade é que a “luta” de Amílcar Cabral ter-se-á aproveitado do ambiente cultural lavrado pelos claridosos para lhe emprestar a inflexão de uma ideologia e de um desígnio político que o tempo revelaria alheios às aspirações mais profundas dos cabo-verdianos. Desde logo porque o povo não prestou qualquer mandato ao Amílcar Cabral ou aos seus correelgionários, o que nem seria concebível tratando-se de uma ideologia totalitária.
Portanto, tem toda a razão Humberto Cardoso quando diz que não faz sentido a “recomendação do PR de seguir Cabral no ‘pensar com as nossas próprias cabeças’ ”. É passar um atestado de menoridade cívica a um povo. Pelo contrário, se o povo cabo-verdiano se der ao escrupuloso cuidado de pensar com a sua própria cabeça, tem de denunciar e rejeitar de vez os falsos mitos que ainda persistem em algumas cabeças aprisionadas, acreditando que só ele pode ser senhor do seu destino.
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