Da verdade de cada um e cada qual no debate político

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

 

Por Adriano Miranda Lima[i]

Para desgosto dos que acreditam piamente nas virtudes da democracia liberal, é cada vez mais corrente a ideia de que a política é o campo das relações humanas onde a palavra verdade sofre os mais graves tratos de polé. Claro que é fenómeno que só podia observar-se na democracia, porque nos regimes autoritários a verdade é só uma, a de quem captura e manipula o poder. Dir-se-á que aí a palavra verdade é apagada dos dicionários. O exemplo mais flagrante nos nossos dias vem da Rússia de Putin, mas não só, porque angustiosamente vamos acompanhando os sinais de recessão da democracia um pouco por todo o lado, como aconteceu recentemente na Argentina de Milei.

Mas, afinal, o que é a verdade, a questão que nos interpela? A semiótica conduz-nos a vários significados da palavra. Se é a verdade do ponto de vista judicial, trata-se da conformidade com factos apurados numa dada circunstância. Se é a verdade histórica, a questão tem a ver com hermenêutica. Se é a verdade científica, é o resultado da interpretação da realidade através da razão e dos instrumentos e técnicas disponíveis num dado momento.

Fazendo uso de uma curiosa metáfora, um amigo e correspondente afirmou-me que a verdade é “um ponto no infinito”. Inclinar-me-ia a pensar que a verdade na política é a que mais devia tentar aproximar-se desse “ponto no infinito”, já que o infinito é para onde tenderá a verdade absoluta, total e universal, quer dizer, a verdade na sua acepção metafísica. O filósofo é quem especula e teoriza sobre a verdade absoluta, enquanto para o político ela é, ou devia ser, a referência ética que lhe inspira as congeminações da retórica discursiva com que procura convencer o eleitorado e pleitear com o adversário político. Assim, o conceito de verdade que lhe interessa é de natureza epistemológica, é o que se traduz em realidades objectivas abarcando estes três mundos coexistentes: o mundo que os sentidos apreendem; o mundo das emoções; o mundo das concepções. Ora, é a inter-relação entre esses mundos que define o campo das experiências sociais onde o homem busca conhecer-se e confrontar-se com os desafios da sua existência. E é ali que ele procura conceptualizar ideias e soluções para viver em sociedade numa relação de partilha e disputa com o seu semelhante e de envolvimento com o meio natural.

Mas é a realidade política que a toda a hora nos fornece evidências da degradação a que está hoje sujeito o debate de ideias, por culpa de actores políticos que, não ignorando a verdade kantiana de que “os conceitos são transitórios e só a verdade é definitiva”, contudo pouco fazem para valorizar e dignificar as ideias que perfilham. E é desta forma que a actividade nobre que é a política se vê frequentemente emporcalhada por linguagem agressiva, ordinária e panfletária, as mais das vezes como recurso para preencher o vazio das ideias.

Basta assistir a um debate parlamentar para colher os exemplos mais diversos. A rejeição sistemática das soluções políticas do adversário é incompreensível, quando não se tem alternativas válidas e devidamente fundamentadas. Discursos ambíguos, vazios e muitas vezes contraditórios só para contrapor ao argumento do partido opositor, pode valer como espectáculo circense, mas atenta contra a dignidade do debate político. Proclamar que tudo o que fez o adversário está errado e que importa derrogá-lo em proveito da minha solução, evidencia uma visão maniqueísta da realidade, entorpece a discussão democrática e estorva a resolução dos problemas colectivos. O mais grave é quando forças políticas com representação parlamentar exponenciam no seu discurso a expressão mais odiosa e violenta da sua oposição aos valores do próprio regime democrático. Lamentavelmente, tornou-se banal chamar mentiroso, ou simplesmente insinuá-lo, a um adversário no parlamento, coisa que noutras circunstâncias teria de exigir retractação imediata. Longe vai o tempo em que injúrias desta natureza exigiam lavagem de honra com sangue, como aconteceu em 1908 entre os deputados Dr. Afonso Costa, republicano, e conde de Penha Garcia, monárquico, num duelo de espadas que, felizmente, terminou sem danos físicos para além de um ligeiro ferimento num braço do deputado republicano.

Posto isto, seria enterrar a cabeça na areia se não se reconhecesse que a verdade e a política dificilmente se conciliam quando são os próprios políticos que, com a sua prática, contribuem muitas vezes para a denegação de ambos. A solução reabilitadora da política consistirá em carrear para as suas fileiras os melhores da sociedade nas ciências, na cultura e nas artes. Mas isso não se resolve com uma varinha mágica. É preciso que toda a nação convirja nesse sentido. É preciso que quem aceite um cargo político não seja logo à partida alvo de suspeição ou vigilância judicial. E interessará que a comunicação social saiba reabilitar-se para não se confundir com as redes sociais, deixando de ser meio difusor do que pior acontece no país, enquanto silencia ou coloca em nota de rodapé o que prestigia e promove o país, com ganhos para a auto-estima nacional.



[i] Escreve conforme a ortografia anterior ao AO90

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