Por Adriano Miranda Lima[i]
Para desgosto dos que acreditam piamente nas
virtudes da democracia liberal, é cada vez mais corrente a ideia de que a
política é o campo das relações humanas onde a palavra verdade sofre os mais
graves tratos de polé. Claro que é fenómeno que só podia observar-se na
democracia, porque nos regimes autoritários a verdade é só uma, a de quem
captura e manipula o poder. Dir-se-á que aí a palavra verdade é apagada dos
dicionários. O exemplo mais flagrante nos nossos dias vem da Rússia de Putin,
mas não só, porque angustiosamente vamos acompanhando os sinais de recessão da
democracia um pouco por todo o lado, como aconteceu recentemente na Argentina de
Milei.
Mas, afinal, o que é a verdade, a questão que
nos interpela? A semiótica conduz-nos a vários significados da palavra. Se é a
verdade do ponto de vista judicial, trata-se da conformidade com factos
apurados numa dada circunstância. Se é a verdade histórica, a questão tem a ver
com hermenêutica. Se é a verdade científica, é o resultado da interpretação da
realidade através da razão e dos instrumentos e técnicas disponíveis num dado
momento.
Fazendo uso de uma curiosa metáfora, um amigo e
correspondente afirmou-me que a verdade é “um ponto no infinito”.
Inclinar-me-ia a pensar que a verdade na política é a que mais devia tentar aproximar-se
desse “ponto no infinito”, já que o infinito é para onde tenderá a verdade
absoluta, total e universal, quer dizer, a verdade na sua acepção metafísica. O
filósofo é quem especula e teoriza sobre a verdade absoluta, enquanto para o
político ela é, ou devia ser, a referência ética que lhe inspira as
congeminações da retórica discursiva com que procura convencer o eleitorado e
pleitear com o adversário político. Assim, o conceito de verdade que lhe
interessa é de natureza epistemológica, é o que se traduz em realidades
objectivas abarcando estes três mundos coexistentes: o mundo que os sentidos
apreendem; o mundo das emoções; o mundo das concepções. Ora, é a inter-relação
entre esses mundos que define o campo das experiências sociais onde o homem
busca conhecer-se e confrontar-se com os desafios da sua existência. E é ali
que ele procura conceptualizar ideias e soluções para viver em sociedade numa
relação de partilha e disputa com o seu semelhante e de envolvimento com o meio
natural.
Mas é a realidade política que a toda a hora
nos fornece evidências da degradação a que está hoje sujeito o debate de
ideias, por culpa de actores políticos que, não ignorando a verdade kantiana de
que “os conceitos são transitórios e só a verdade é definitiva”, contudo pouco
fazem para valorizar e dignificar as ideias que perfilham. E é desta forma que
a actividade nobre que é a política se vê frequentemente emporcalhada por
linguagem agressiva, ordinária e panfletária, as mais das vezes como recurso
para preencher o vazio das ideias.
Basta assistir a um debate parlamentar para
colher os exemplos mais diversos. A rejeição sistemática das soluções políticas
do adversário é incompreensível, quando não se tem alternativas válidas e
devidamente fundamentadas. Discursos ambíguos, vazios e muitas vezes
contraditórios só para contrapor ao argumento do partido opositor, pode valer
como espectáculo circense, mas atenta contra a dignidade do debate político.
Proclamar que tudo o que fez o adversário está errado e que importa derrogá-lo
em proveito da minha solução, evidencia uma visão maniqueísta da realidade,
entorpece a discussão democrática e estorva a resolução dos problemas
colectivos. O mais grave é quando forças políticas com representação
parlamentar exponenciam no seu discurso a expressão mais odiosa e violenta da
sua oposição aos valores do próprio regime democrático. Lamentavelmente,
tornou-se banal chamar mentiroso, ou simplesmente insinuá-lo, a um adversário
no parlamento, coisa que noutras circunstâncias teria de exigir retractação
imediata. Longe vai o tempo em que injúrias desta natureza exigiam lavagem de
honra com sangue, como aconteceu em 1908 entre os deputados Dr. Afonso Costa,
republicano, e conde de Penha Garcia, monárquico, num duelo de espadas que,
felizmente, terminou sem danos físicos para além de um ligeiro ferimento num
braço do deputado republicano.
Posto isto, seria enterrar a cabeça na areia se não se reconhecesse que a verdade e a política dificilmente se conciliam quando são os próprios políticos que, com a sua prática, contribuem muitas vezes para a denegação de ambos. A solução reabilitadora da política consistirá em carrear para as suas fileiras os melhores da sociedade nas ciências, na cultura e nas artes. Mas isso não se resolve com uma varinha mágica. É preciso que toda a nação convirja nesse sentido. É preciso que quem aceite um cargo político não seja logo à partida alvo de suspeição ou vigilância judicial. E interessará que a comunicação social saiba reabilitar-se para não se confundir com as redes sociais, deixando de ser meio difusor do que pior acontece no país, enquanto silencia ou coloca em nota de rodapé o que prestigia e promove o país, com ganhos para a auto-estima nacional.
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