MONTE CARA, O DOS VÁRIOS NOMES

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Por Joaquim Saial

É conhecido o gosto que quase todos temos, sobretudo quando crianças, de vermos no formato das nuvens e rochas rostos e figuras de gente, animais e objectos. Chamam os entendidos a isto pareidolia, exótico nome técnico que caracteriza o fenómeno. Muitos exemplos há dele, nomeadamente no que concerne a rochas. Podem ser provocados pelo ser humano, que na pedra quer retratar alguém ou algo, mas na maioria dos casos o efeito deve-se à erosão recebida durante séculos ou milénios por efeito da água ou dos ventos. Daqueles, temos dois espécimes significativos nos EUA: as cabeças dos presidentes George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln esculpidas numa fachada rochosa de Keystone, o monte Rushmore, Dakota do Sul (1927-1941), da autoria Gutzon Borglum, pintor e escultor descendente de dinamarqueses imigrantes nos EUA, e a mais recente, representação equestre do chefe índio sioux Crazy Horse en Black Hills, também no Dakota do Sul (iniciada em 1948 e ainda não concluída), do escultor polaco-americano Korczak Ziolkowski – que, quando finalizada, terá 195 metros de comprimento, por 172 de altura. Nos anos 30, o ditador italiano Benito Mussolini também teve "rosto de pedra" de grande impacto visual no monte Pietralata – artificial, neste caso, feito de blocos de calcário e betão armado, depois destruído por resistentes italianos. Quanto às peças "naturais", a mais famosa de Portugal será a Cabeça do Velho, afloramento granítico situado entre Gouveia e Manteigas (zona da Serra da Estrela); na localidade de Chimoio (antiga Vila Pery), Moçambique, há outra célebre, de bem maiores dimensões; na Austrália, a Split Apple Rock, com aparência de maçã rachada ao meio; e em Cabo Verde, o Monte Cara da ilha de S. Vicente – citámos apenas estes exemplos entre os muitos mais que existem mundo fora. Mas o que para o artigo interessa é obviamente a afamada formação rochosa são-vicentina.

Com os seus 490 metros de altitude máxima, o Monte Cara é uma espécie de guardião ou de figura de convite, situado à direita de quem entra no Porto Grande e motivo inspirador para os mais variados assuntos. O cantor Bana fundou em Lisboa em 1976 o restaurante e sítio de música Monte Cara, primeiro a celebrar os ritmos africanos – em particular os de Cabo Verde – onde tocaram ou cantaram para além do bom gigante nomes como Cesária Évora, Celina Pereira, os irmãos Toy e Paulino Vieira, Armando Tito ou o angolano Valdemar Bastos. No seu disco "Voz de Amor", Cesária cantou "Monte Cara", de Toy Vieira e Luís Lima. Monte Cara é nome de agência bancária no Mindelo, do banco BAI (Angola) e foi-o de editora discográfica (também de Bana) e de grupo mindelense de protesto cívico "Cordá Monte Cara". Vários poetas e escritores, de igual modo o têm inscrito nas suas obras. Por exemplo, Corsino Fortes cita-o seis vezes no livro "A Cabeça Calva de Deus" (2001) e Germano Almeida utilizou-o como título do romance de 2014, "Do Monte Cara Vê-se o Mundo". Coroando este amor dos são-vicentinos e restantes cabo-verdianos pelo seu monte mais distinto, ele tornou-se em 2013 por votação tripartida entre júri, comissão técnica e público como uma das sete maravilhas de Cabo Verde.

O Monte Cara é, pois, "figura" tutelar da ilha onde se alça. Quanto ao seu nome, tem sofrido oscilações ao longo dos tempos. Vejamos todos os que conseguimos encontrar em postais ilustrados antigos (excepto dois casos, surgidos num livro e numa revista portuguesa), diferentes ou variantes do mesmo nome, por ordem alfabética1:

• Cabeça de Washington

• Cabeça do Washington

• Cara de Nelson (revista Occidente n. 439, de 01.03.1891, pág. 51)

• Montanha da Cara (livro “África Occidental – Notícias e Considerações”, de Francisco Travassos Valdez, ed. Imprensa Nacional, Lisboa, 1864, pp. 406/407)

• Monte Cara

• Monte da Cara

• Monte da Cara de Vashinton2

• Monte da Cara de Washington

• Monte da Cara (Washington Head)

• Washington Head

O curioso designativo "Cabeça (ou cara) de D. Afonso Henriques" (neste caso, supostamente baptizado pelos primeiros navegadores chegados a S. Vicente) que o monte também terá tido é versão que por enquanto não nos merece crédito, apenas pelo facto de no ponto onde a obtivemos não se declarar a fonte consultada. Temos assim que "Montanha Cara" é a forma datada mais antiga que conhecemos, de 1864, como acima vimos. A alusão ao almirante inglês Lord Nelson, vencedor da batalha de Trafalgar, é passível de ser atribuída aos ingleses das companhias carvoeiras e de cabo submarino que se estabeleceram em S. Vicente3.  Por outro lado, diz-se comummente que nomear George Washington como "padrinho" do monte dever-se-á ao facto de este ter sido admirado por marinheiros de veleiros americanos que demandavam Cabo Verde, em particular o Porto Grande, em busca de hábeis tripulantes locais para a pesca da baleia4 e que terão achado parecenças entre a "cabeça" rochosa e a do seu primeiro presidente.

"Cabeça de/do Washington", "Monte da Cara de Vashinton" ou o já híbrido "Monte da Cara (Washington Head)" aparecem em postais ilustrados datados entre 1903 e 1953, publicados pelas casas britânicas Godfrey Hastings-Whitley Bay e Matthew Auty Ltd.- Tynemouth, por Giuseppe Frusoni, italiano com casa aberta no Mindelo e pelo igualmente mindelense Café Royal. Sem data que nos permita inseri-los numa cronologia, Giuseppe Frusoni editou postais com o "Monte da Cara de Washington'". Conhecemos um postal "Cabeça do Washington", de Frusoni, datado de 1932, e outro, o mais tardio do género, editado pelo Café Royal (tiragem de 500 exemplares com impressão a cargo da Empresa Nacional de Publicidade, Lisboa, em 3 de Abril de 1953), no qual ainda se identificava o monte como "Monte da Cara (Washington Head)". A hodierna e assente versão “Monte Cara” assoma episodicamente por volta de 1910 num raro postal de que só conhecemos a imagem frontal, embora não a posterior, onde se veria a editora5 – o que quer dizer que afinal “Monte Cara” conviveu desde cedo com os outros nomes bem mais frequentes.

Terminamos este memorial toponímico com divulgação do excerto do texto de Manuel Barradas da revista Occidente que descreve o monte6 e com notícias de dois jornais americanos onde é referido associado a George Washington – que provam que não era desconhecido no exterior, no início do século XX7. Comecemos então pela revista portuguesa, de 1891: “(...) É montanhosa, S. Vicente, contudo a maior elevação das suas montanhas não excede 1000 metros de altura acima do nível do mar, como por exemplo o Tope de Galã [?], o Monte Verde assim chamado pela muita vegetação que o reveste e a montanha da cara de Nelson no norte-noroeste do Porto Grande que banha a vila do Mindelo, principal povoação da ilha de S Vicente. A montanha Cara tem a exacta configuração de um rosto humano, lembrando o topete as cabeleiras de 1790. Os marinheiros chamam-lhe há mais de um século8 a cara de Nelson”. Quanto aos textos dos jornais, o primeiro, com o título "Uma Aberração da Natureza", encontramo-lo no The Morning Astorian (Astoria, Oregon), de 30 de Junho de 1906, página 6; o segundo, cópia quase exacta do primeiro, vem na página 4 do Hyannis Patriot (Barnstable, Massachusetts), de 15 de Janeiro de 1917. Segue-se um resumo da parte igual em ambos: "Entre os muitos monumentos dedicados a Washington, este é aquele que o visitante das ilhas de Cabo Verde lembrará como uma das mais colossais e maravilhosas esculturas naturais existentes. Ao longo de um dos lados do porto de São Vicente, a cidade principal9, ergue-se um ousado cume de rochas vulcânicas cinzentas-escuras, cuja crista forma uma semelhança exacta do nosso imortal George, aparentemente deitado de bruços, como se estivesse num sono tranquilo. As feições grandes e ousadas do herói, o cabelo ondulado para trás, os ombros maciços e até os folhos na frente da camisa10 são todos reproduzidos em escala gigante com exactidão maravilhosa. O estranho monumento bem delineado contra o azul profundo do céu tropical é um dos primeiros objectos que chama a atenção a quem se aproxima da ilha."

ANOTAÇÕES

Postais (datados) obtidos futuramente poderão alterar o que aqui agora afirmamos.

2 Erro ortográfico óbvio.

3 Em 1850, as carvoeiras britânicas já estavam a laborar em S. Vicente e o primeiro cabo submarino foi amarrado na zona da Matiota em 1874 (Western Telegraph Company), com administração da Brazilian Submarine Telegraph. Ver PIRES, Francisca Gomes. O Porto Grande e a Urbe Mindelense na Aurora da Contemporaneidade, Dissertação de Mestrado em História Contemporânea, FCSH, UNL, 2015.

4 E também a ilha Brava.

5 Existente na James J. Lopes Cape Verdean Postcard Collection, Rhode Island College Library, Providence, RI, EUA. Este é o único exemplar em que se refere “Monte Cara”, das dezenas que conhecemos com a fotografia do monte.

6 Este texto da revista Occidente baseia-se em informações contidas no livro “Africa Occidental – Notícias e Considerações”, de Francisco Travassos Valdez, copiando algumas.

7 Tradução livre nossa.

8 Modernizámos grafia e pontuação do texto. A fazer fé na afirmação, o monte teria o nome de Nelson desde antes de 1791.

9 O mesmo erro da nota anterior.

10 No The Morning Astorian, a camisa é apresentada ao leitor como colonial.


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