Língua cabo-verdiana e Língua portuguesa: Uma ligação perene

sábado, 10 de fevereiro de 2024


Temos vindo a reflectir quase que diariamente – passe o exagero – sobre a evolução, sobre a transformação e sobre a vitalidade que o nosso idioma ilhéu tem vindo a demonstrar, tanto na oralidade como na escrita; e a sua aproximação cada vez mais audível da Língua portuguesa actual.

Antes de continuar, gostaria de aqui fazer uma espécie de comparação, entre um filho que mesmo atingida a maioridade, não deixa a casa paterna; assim a Língua cabo-verdiana, que a cada dia que passa ilustra tanto na sua expressão, sobretudo oral, como também escrita, um léxico e uma construção sintáctica, que estão cada vez mais próximos da norma actual da Língua portuguesa. Aliás, sua principal matriz. Daí que o crioulo destas ilhas seja considerado de “base portuguesa” com válidos fundamentos históricos e etimológicos.

Vale aqui repetir que, nunca a Língua cabo-verdiana, o crioulo das ilhas, esteve tão próximo e tão dependente da Língua portuguesa como o está na hora actual, fazendo daquela língua o seu “banco fornecedor” (principal) de vocábulos e de construções morfossintácticas.

 Poderão, eventualmente, dizer-me que o fenómeno apenas é observável no meio urbano. Direi que não, pois, as “fronteiras” entre o campo e a cidade, hoje mais do que nunca, estão muito esbatidas no que toca à recepção da televisão, da rádio, dos jornais, todos órgãos que circulam regular e abrangentemente no espaço nacional. E os mesmos níveis de ensino universal, obrigatório, vamos encontrá-los tanto na cidade como no campo. De destacar ainda, a aproximação urbana/rural, trazida pelo desenvolvimento imprimido pelas autarquias locais, pelo fenómeno de uma migração crescente dos nossos jovens do meio rural para a cidade, normalmente designado “êxodo rural”, e ainda por um regular trânsito de uma população flutuante para os principais centros urbanos. A confluência de todos estes factores, conjugados com a tendência mimética de seguir o modelo de fala usada na comunicação social, apresam o crioulo a revestir-se gradualmente de modos e de construção similares aos usados na Língua portuguesa.

Ora bem, a vitalidade e a evolução do nosso crioulo, tem residido também, nessa apropriação que ele vem fazendo da língua portuguesa e da maneira como a incorpora na sua fala e na sua escrita hodiernas.

Estamos cientes de que tal acontece e tem origem em vários factores, dos quais, apenas citamos os considerados mais evidentes: a filiação natural,  a contínua e ininterrupta ligação da Língua cabo-verdiana à Língua portuguesa; a escolarização alargada e universal, que leva a uma maior exposição e contacto dos aprendentes com a Língua portuguesa; uma cobertura nacional dos meios da comunicação social, com os principais programas (noticiários, debates, notícias do desporto, artigos de opinião) em Língua portuguesa; o fenómeno das telenovelas faladas em português, a já denominada globalização, entre outros factores.  E como resultado de tudo isso, temos que o falante do cabo-verdiano escolarizado, vem incorporando com uma notória visibilidade e intensidade, expressões portuguesas “ipsis verbis” com o eventual fito de enriquecer ou precisar a sua mensagem oral.  

Clamo, pois, a vossa atenção para que as escutemos quando presentes em entrevistas de rua ou/e de estúdio, nos discursos políticos; nos programas de educação e de saúde, entre outras participações, radiodifundidas e televisivas, em que ouvimos, diariamente, o falante cabo-verdiano ilustrado ou academicamente habilitado, expressando-se na sua Língua materna, através de vocábulos, de articuladores do discurso, directamente provenientes da Língua portuguesa actual. As mais das vezes, como atrás referimos, sem qualquer alteração ou, transformação (na passagem do português para o crioulo) fonética ou morfológica dos vocábulos.

O mais interessante desta fenomenologia linguística cabo-verdiana sincrónica, é que vão desaparecendo os monemas lexicais e gramaticais; a corruptela dos semantemas; os vestígios que ainda subsistem na Língua cabo-verdiana, cuja origem remonta ao português arcaico do século XV, trazido pelos portugueses; e os substractos das várias Línguas das terras e dos países da Costa africana – Felupe, Jalofo, Balanta, Papel e Bijagó - que aqui aportaram na boca dos escravos.  De facto, já se podem considerar residuais ou, pelo menos, em pouca quantidade, no falante nacional, escolarizado.  Sim, esses adstractos e substractos que conformavam de maneira notória, a Língua materna cabo-verdiana, tendem a desaparecer no modo de falar hodierno do cabo-verdiano. Repito: do falante nacional escolarizado.

Curioso é que se trata de um processo que já havia sido previsto por Baltazar Lopes da Silva, quando, em 1947 no ensaio «Uma Experiência Românica nos Trópicos» afirmava a determinada altura: “(…) um esforço generalizado de aristocratização, cada vez maior, à medida que maior for o derrame da instrução e forem maiores os contactos com a cultura europeia.”

E continuava o nosso eminente filólogo, referindo-se às senhoras e às raparigas “que fizeram o seu Liceu e que contavam em crioulo os romances e folhetins que liam (…) crioulo especial, repleto de fenómenos linguísticos reinóis.”  Fim de transcrição. Ver obra acima citada.

Abro aqui um pequeno parêntesis para ilustrar o facto interessante de Baltazar Lopes da Silva se referir à leitora (e não à contraparte masculina) dos romances recontá-los em crioulo e, deste modo, voltarmos àquela ideia que se tinha em Cabo Verde de que o português era a fala masculina e o crioulo a fala feminina, nas ilhas. Fecho o parêntesis.

O que me espanta – enquanto leitora dos escritos filológicos de Baltazar Lopes da Silva – são a sua profundidade filológica e a sua actualidade, actualidade aliás, que residiu na capacidade extraordinária de prever fenómenos linguísticos, no que ao crioulo cabo-verdiano concernem.

Para além do mais, é curioso o facto conclusivo que B. Lopes da Silva retira da fala crioula na boca do cabo-verdiano escolarizado: (…) do impulso inovador que extrai o seu vigor do profundo sentimento aristocratizante de aproximação do padrão linguístico metropolitano”.

 Nota a destacar, a similitude com o que se passa nos tempos que correm. De facto, actualmente, tornou-se muito mais fácil, para um falante de Língua portuguesa, entender o seu interlocutor cabo-verdiano que não se expresse totalmente em português, visto que a Língua cabo-verdiana se aproximou e vem se aproximando – diria que quase acelerada e quantiosamente (perdoem-me o eventual exagero) – do português. Aliás, tenho ouvido de amigos e conhecidos, falantes da Língua portuguesa que nos visitam a isso referirem-se com alguma frequência.

Pois bem, são observações que faço de forma rotineira, sem qualquer juízo de valor e de forma objectiva, tentando assim, convidar os mais interessados, linguistas ou não, simples falantes do nosso idioma materno e da Língua portuguesa, a interpretar estes sinais linguísticos e dinâmicos (todas as Línguas são corpos dinâmicos em transformação, sincrónica e diacrónica, constantes) que projectam a Língua cabo-verdiana.

Por um lado, essas apropriações, importações ou até mesmo empréstimos (?) que o nosso Crioulo faz de vocábulos, de construções sintácticas e de articuladores do discurso, da Língua  que lhe esteve na origem, só demonstram a riqueza, a  vitalidade crescente do mesmo, o seu grau de desenvolvimento, e a resolução das suas necessidades em matéria semântica ao ir à Língua portuguesa satisfazê-las de cada vez que surge uma situação elocutória em que a Língua cabo-verdiana, não possuindo recursos endógenos, vai  busca-los à Língua matriz. Até aqui tudo certo.

Por outro lado, temo que a tarefa do professor que tem a seu cargo o ensino da Língua portuguesa, seja agora mais complexa e mais difícil, – ainda que com os métodos que se usam para o ensino de uma Língua viva, de comunicação, presente entre nós – dada a mistura e a contaminação dos dois idiomas. Ainda que seja ensinada com os métodos aplicados a uma língua segunda, a uma língua estrangeira, o entranhamento e o entrosamento entre as duas línguas, a cabo-verdiana e a portuguesa, são de tal monta que as duas, na boca do aprendente, se confluem, se misturam e, naturalmente, se contaminam.

Nesta oportunidade, acrescentarei que o professor da disciplina da Língua portuguesa, deve estar bem atento a esses sinais e munido de uma didáctica específica para o ensino do português – Língua viva, Língua segunda e Língua veicular do ensino – e que desta forma, consiga levar a bom porto os objectivos esperados da disciplina. De recordar que estes objectivos, deverão estar focados na compreensão, na leitura, na interpretação de textos e no aperfeiçoamento continuado da expressão escrita e oral do aprendente.

 Para finalizar, solicitarei – apesar da minha formação – como disse alguém: “concedam-me a liberdade própria de um artigo de opinião, sem as obrigações de um ensaio. porque não é deste género de texto – ensaio – que se trata. É de apenas um texto de opinião. Não vá alguém, algum comentador nos media, confundir (como já aconteceu) “Artigo de Opinião” com “Ensaio” ou “Tese Universitária”.

 

 

 

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Foi com imenso gosto que li este utilíssimo artigo da Drª Ondina Ferreira, escrito com a habitual pertinência,
objectividade, elevação e clareza com que trata a fenomenologia do confronto entre estas nossas duas línguas - a cabo-verdiana e a portuguesa. E naturalmente escrito com a autoridade que lhe confere a sua condição de linguista.
Estou à vontade para concordar inteiramente com a abordagem e a argumentação desenvolvida, porque desde sempre me interessei por esta temática e, embora não sendo especialista, emiti também opinião sobre o caminho errado que alguns voluntaristas se propunham seguir para uma suposta e duvidosa valorização do crioulo que só poderia resultar numa desvalorização social da língua portuguesa e consequente enfraquecimento da sua prática oral e escrita pela nossa gente. E sem que os cabo-verdianos ganhem o que quer que seja, porque neste mundo globalizado, a começar na própria CPLP, não faz sentido tentar projectar uma língua falada por uma população demograficamente reduzida.
Estava em curso a minha leitura e intimamente ia congeminando que o problema será chegar a um tal estado de promíscua relação entre as duas línguas, com um crescendo de contribuição do português para o crioulo, que irá dificultar a acção do professor da língua. Por isso não me surpreendeu chegar ao fim da leitura e verificar que a autora ressaltou essa mesma observação. E isso autoriza-me a perguntar se será descabido prever que chegará um momento em que o cabo-verdiano comum, ou seja, o não muito escolarizado, estará a falar uma língua muito mais parecida com o português, já bastante expurgada da componente crioulística. E isso pelo tempo fora poderá significar mesmo a extinção do crioulo propriamente dito, pelo menos daqui a umas quantas gerações muito mais escolarizadas. Olha-se para o caso do Brasil e vê-se que qualquer camponês ou homem do povo pouco escolarizado ou mesmo analfabeto fala um português rudimentar mas
que é perfeitamente compreendido por qualquer cidadão
dos PALOP.

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