O português de Cabo Verde
sempre existiu, ou antes, existe há séculos.
Esta é uma declaração
introdutória, uma opinião de uma falante também tributária do português das
ilhas.
E justifico-a nos parágrafos que se seguem.
Ora bem, escutei
recentemente uma conversa difundida em rede social, um diálogo havido entre
dois jovens formados em Linguística, e /ou num dos cursos do ramo das Ciências
Sociais, em que um deles dizia com toda a convicção que num futuro, ainda sem
horizonte temporal delimitado, “havia de nascer o português de Cabo Verde, à
semelhança do que aconteceu em Angola e no Brasil”.
Contrariamente ao
ilustrado por estes dois professores - o português de Cabo Verde, formou-se há
muitos séculos nas ilhas, num processo que o tempo graduou - se calhar bem
antes do português do Brasil, dado o lapso de tempo -quarenta anos - entre o
achamento de um (1500) e a descoberta das ilhas ocorrida antes, em 1460 pelos
navegadores portugueses.
O português de Cabo Verde
foi, é e vem sendo falado por falantes cabo-verdianos escolarizados.
Para além disso, o
português de Cabo Verde está plasmado nas obras literárias dos mais conhecidos,
romancistas e contistas nacionais.
Com efeito, encontrámo-lo
na obra de Baltazar Lopes da Silva, (1907-1989) o romance «Chiquinho» de 1947 é
disso prova bastante nas falas das personagens, de tal forma o é, que houve
críticos que afirmaram que este romance foi pensado em Crioulo (variante de
Barlavento) e “traduzido” em português. Ora bem, o facto é que Baltazar Lopes da Silva
escreveu-o quase todo, em português de Cabo Verde, bem fixado em toda a
narrativa. O que o tornou um exemplo paradigmático de transposição literária do
português das ilhas, na variante de Barlavento, na fala do narrador e de quase
todos as personagens. Da mesma forma atestam-no as falas das personagens dos
Contos deste autor.
Continuando, nas
noveletas de António Aurélio Gonçalves, (1901-1984) o português de Cabo Verde
atinge uma graça e uma delicadeza, nas falas das suas personagens femininas.
Para exemplo, a noveleta: «Virgens Loucas»
Igualmente, a variante do
português de Cabo Verde está presente nos Contos: «O Galo Cantou na Baía» de
Manuel Lopes, (1907-2005) publicado em 1936 e continuado em “Chuva Braba,”
1956, romance emblemático deste autor, entre outras obras romanescas do mesmo.
Não vá sem acrescentar
que, os fundadores do movimento cultural, «Claridade» e proponentes da
caboverdianidade, usaram com mestria e propositadamente, na ficção que nos
legaram, a variante cabo-verdiana da Língua portuguesa.
Da mesma forma, o poeta,
contista e ensaísta, Gabriel Mariano, (1928-2002) nos seus Contos, inseridos em
«Vida e Morte de João Cabafume» iniciados na década de 50, usa o português de
Cabo Verde com o mesmo à-vontade com que o fizeram os seus antecessores
claridosos.
Nesta mesma linha, temos
o português de Cabo Verde nas falas, nos
diálogos das personagens dos Contos de Orlanda Amarilís, (1924-2014)
«Cais-de-Sodré-té-Salamansa» 1974.
Mais recentemente, nos
anos 80/90 do século XX, em quase todas as falas das personagens cabo-verdianas
dos romances de Germano Almeida, (1945) «O Testamento do Senhor Napumoceno da
Silva Araújo» 1989, e em quase todos os romances deste autor, lemos e “ouvimos”
o português de Cabo Verde com a entoação, o sotaque, da variante de São
Vicente.
Mas antes, também
Teixeira de Sousa (1919-2006) nos seus Contos insertos na colectânea, «Contra
Mar e Vento, 1972, e nos seus romances, aqui e acolá nas falas de algumas
personagens vemos isso bem presente, a nossa variante de português.
Nós aprendemos que quem
fixa a norma e as variantes de uma Língua viva, são os seus escritores, os seus
poetas, os seus compositores e as falas do povo. Daí falar-se genericamente em
norma, culta, em norma corrente e em norma popular. Os livros, as falas, as
cantigas, e os versos formam a língua, da mesma forma que os seus documentos de
natureza histórica. Logo, a oralidade e a escrita juntam-se, fundem-se e surgem
na nossa variante linguística, alterando-se, modificando-se – diacronicamente -
ao longo do tempo.
Voltando ao português
ilhéu, usado pelos nossos escritores, poderão até questionar se não foi apenas
um artefacto estilístico, pitoresco, usado pelos autores aqui mencionados.
Creio que não. Acredito que foi além disso. Foi para imprimir contexto
verosímil e autenticidade, aos traços sociais, linguísticos, das personagens
cabo-verdianas e ao ambiente insular em que interagem essas mesmas personagens
que assim falam e assim expressam a Língua portuguesa de Cabo Verde.
Vale também dizer, que os
nossos antepassados, os tetravós os avós, os pais, escolarizados expressavam-se
em português fluente, com o sotaque e a entoação caraterísticos do português
das ilhas.
Que não seja esquecido o
papel relevante do antigo Seminário-Liceu de São Nicolau, (1866-1917) na
aprendizagem e consequente difusão da Língua portuguesa como ferramenta de
trabalho e de cultura dos muitos cabo-verdianos que estudaram naquele
prestigiado estabelecimento de ensino e que foram os Quadros por excelência do
funcionalismo público de Cabo Verde, nos finais do século XIX e no dealbar do
Século XX.
Pois bem, continuando, os
nossos governantes, os nossos professores, os médicos, os advogados, os juízes,
os jornalistas, os funcionários públicos, cabo-verdianos, hodiernamente e
quando se expressam em português, fazem-no usando a variante da Língua
portuguesa, aclimatada ao nosso solo. E mais interessante ainda, é que se
percebe no falante cabo-verdiano que se expresse em português, a sua ilha de
origem, pois que subjacente à elocução, está o sotaque
Torna-se igualmente
interessante, verificar no português de Cabo Verde, as formas, as expressões,
as construções que lhe são peculiares.
Apenas uma pequena
ilustração: a forma como o nosso aparelho fonador, articula e pronuncia os
pronomes pessoais complementos indirectos: o lhe, o lho, o lha
os lhes, os lhos e lhas.
Outra particularidade da
nossa variante do português é a maneira como o falante, nativo de São Vicente,
pronuncia os nomes terminados em o fazendo-os terminar no e
velado. Exemplos: movimente, desenvolvimente. De igual forma, o falante de português,
nativo de Santiago, regra geral, omite o r duplo ou r gutural, fazendo-o
apical. Assim ao dizer a palavra terra, pronuncia tera. Podia
aqui acrescentar o falante nativo da ilha do Fogo, que ao falar português,
articula o pronome relativo que como qui com a vogal i bem
acentuada fonicamente.
Mas mais ainda em termos
das características do português de Cabo Verde: o uso do modo imperativo é
quase sempre feito na 3ª pessoa, ainda que os dialogantes se tratem por “tu”.
Exemplo: “não faça isso” em vez de “não faças isso” tratando-se de uma ordem ou de uma exortação,
mesmo entre falantes que normalmente se tratam na 2ª pessoa do singular.
Neste enunciar de
particularidades, segue esta de natureza semântica: no português de Cabo Verde,
quando reencontramos uma pessoa amiga que já não víamos há algum tempo, usamos
com frequência e com sentido elogioso a expressão: “Estás bem disposta! ou bem
disposto!” com o sentido de se estar com bom aspecto ou, com mais uns quilitos.
Nas outras variantes da Língua
portuguesa, o estar-se bem disposto, significa, estar de bom humor, de espírito
positivo, etc, mas nunca dirigido ao aspecto físico.
Outra expressão, muito da nossa variante é a que se usa para se convidar alguém para o pequeno-almoço, com a expressão: “já tomaste café?...vem tomar café” mas para o falante de outra variante da língua comum, o “café” pode ser tomado no sentido literal do termo e responder: “obrigada, mas eu não gosto de café” A variante do português do Brasil, usa: café da manhã, para denominar a primeira refeição do dia.
Mais uma especificidade vocabular semântica, do português de Cabo Verde: o emprego da palavra ingrata, ingrato. Quando dizemos a alguém que ele ou ela "está um ingrato!..." apenas queremos com isso significar que a pessoa amiga, deixou de dar notícias, deixou de aparecer, de visitar os amigos, etc. Mas nas outras variantes do português, refiro-me mais directamente ao falado em Portugal, a palavra ingrato assim dito, tem uma conotação mais forte. Trata-se de uma pessoa mal agradecida, que não reconhece o que outrem fez por ela.
Para terminar estes exemplos que são de uso peculiar na Língua portuguesa de Cabo Verde, lembro o emprego do advérbio de modo e de intensidade, quase que tem o significado de "não completamente" ou: "a ponto de". Ora bem, na variante do português de Cabo Verde, o quase, ora exprime uma dúvida, exemplo: "quase ele não fez o trabalho de casa" com sentido de: "se calhar" não fez o trabalho de casa, ou de "talvez" não tenha feito. Mas mais interessante é o uso do mesmo advérbio com o sentido de se ter uma certeza naquilo que se profere. Exemplo: "quem está a bater à porta a esta hora? (resposta de quem já viu a pessoa à porta): "quase é o primo António."
De certa forma, os exemplos acimas dados, constituem-se como expressões idiomáticas da nossa variante da Língua portuguesa.
Com efeito, isto assim dito e de forma resumida, apenas ilustra algumas particularidades da Língua portuguesa de Cabo
Verde, rica e variada, que já possui existência vetusta e longeva, ao lado do Crioulo -Língua
cabo-verdiana, por vezes até em sobreposição, e na maioria das vezes, muito
próximas uma da outra, na oralidade do falante cabo-verdiano.
Para terminar, reiteraria
que a Língua portuguesa de Cabo Verde existe já com séculos de duração e de
fixação nestas ilhas atlânticas e da Macaronésia, influenciada fortemente pelo
crioulo das ilhas, com ele coevo e em permanente interpenetração.
1 comentários:
A leitura deste texto, que é praticamente um ensaio de Linguística, foi para mim uma bela e preciosa lição. E foi com penetrante saudade porque me trouxe à memória os nossos mestres Baltasar Lopes da Silva e António Aurélio Gonçalves, além de me relembrar as peculiaridades do nosso português das ilhas, que nos acompanharão sempre por mais interconexões vivenciais por que passamos. Ainda não há muito tempo, encontrei em Lisboa um amigo de liceu, que vive em S. Vicente e nunca mais tinha voltado a ver, e me disse: − Adriano, estás “bem-disposto”. Logo aceitei que estaria com uns quilos a mais, o que no caso é algo elogioso na nossa terra, se bem que seria o mais natural porque quase 60 anos se tinham passado desde a última vez que nos vimos. Ainda recentemente, voltei a ler a colectânea de contos "Noite de Vento" e deliciei-me com aquele português meio acrioulado dos diálogos.
Bom seria que os dois jovens universitários tivessem lido esta preciosa lição. No entanto, e se me permite a Dr.ª Ondina Ferreira, quero crer que eles talvez se referissem mais à possibilidade de o crioulo vir a desaparecer de vez para dar lugar a uma expressão mais aportuguesada em virtude da inevitável influência dos meios de comunicação, em especial a televisão.
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