Nota de Leitura - A propósito de alguns Contos tradicionais brasileiros

domingo, 26 de setembro de 2010
Antes de mais gostaria – ao introduzir esta breve nota de leitura – de parafrasear o famoso ensaísta e filosofo alemão Walter Benjamin que questionou se haveria quem ainda soubesse contar histórias? A propósito daquilo que ele cogitava maléfico no avanço rápido do progresso. E aqui quando se usa o semantema “contar” complementado por “história” está-se a referir à espontaneidade, nos tempos que correm, de se narrar um conto da tradição oral de uma comunidade.
Vem isto também a propósito e em contexto, pelo facto de me encontrar ainda sob o “encantamento” da leitura recentemente feita de alguns contos tradicionais brasileiros.
Trata-se de uma selecção e de uma adaptação da autoria de Cármen Lúcia Tindo Secco, professora/pesquisadora da UNFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Retomando a questão de Walter Benjamin, claro que o tempo, o contexto, as transformações tecnológicas, humanas e as formas de socialização ainda que em ambiente rural – onde mais tempo, regra geral perduram as manifestações folclóricas de que o conto tradicional oral é parte – são outras actualmente, naturalmente, e não creio que já existam tais contadores/recriadores repentistas de histórias orais, como os havia outrora.
É meu entender que a leitura deste conjunto de narrativas em que o maravilhoso e o mágico naturalmente dominam, ainda que limitado em número que não em qualidade, se destina a leitor apreciador de contos da tradição oral e, eventualmente, atrairá também o leitor interessado em conhecer um pouco dos contos pertencentes ao folclore brasileiro. Que fique esclarecido que estamos perante uma infinitésima parte daquilo que são os contos tradicionais brasileiros – dez contos – mas ainda que parca em quantidade, não deixa de ser significativa e exemplar em termos de amostragem.
De facto, alguns dos contos aqui transcritos, ilustram de certa forma – e creio que boa parte deles – uma região do Brasil que salvo melhor opinião, se trata do Rio Grande do Norte.
São contos orais recolhidos da tradição folclórica, que nos fazem viajar no tempo. Num tempo longinquamente passado, mas, em que, também diria, fixado pela palavra oral e/ou pela palavra escrita e carregado de uma profunda ancestralidade e de genuína ruralidade, ganha forma intemporal e a dimensão do espaço neles (nos contos) se dilui, pois que os sentimos – nós leitores da língua portuguesa de outras paragens e culturas – por vezes bem próximos e identificáveis, não só linguisticamente, mas sobretudo culturalmente.
No fundo, trata-se da tal proximidade legada pela língua comum e pelas matrizes culturais portuguesas e africanas, acrescida, no caso do Brasil, pela matriz cultural índia.
Logo, os contos aqui colectados, estão embebidos de uma maravilhosa e sublime cosmogonia mestiça, que os tornam ao nosso entendimento, uma “fonte” onde todos, ou quase todos, também tivemos em algum momento ou, temos lá ainda algum “cântaro” que comungou da mesma água.
Com efeito, são pequenas narrativas oralmente transmitidas, que vêm de tempos remotos, algumas delas fizeram, por vezes, atormentadas e demoradas viagens, originárias de terras e de países longínquos e de culturas diferentes, foram escutadas por muitas gerações e transmitidas a outras tantas; pelo caminho sofreram diversas alterações e transfigurações geo-sociais, até chegarem aos nossos dias.
As histórias contidas nestas narrativas orais ao mudarem de ambiente, os seus conteúdos também se alteraram, igualmente se adaptaram e adquiriram nova feição, novo tom, outros ritos, acção renovada, aventuras novas, paisagens aculturadas à região e à comunidade, de tal modo que estes os envolveram como parte da sua própria vivência. Nesta arte modificada, as personagens iniciais e/ou originais transmudaram-se em outras figuras bem locais, e muito poucas conservaram as suas formas estrangeiras ou forasteiras. E isto é válido, quer para os animais, quer para os humanos ou sobre-humanos efabulados, quer ainda para as personagens fantasmagóricas.
De qualquer forma ganharam quase todas, novas cores, novas feições, novas formas de falar e de se socializarem, outros usos e diferentes costumes locais e/ou regionais e novas “manhas” e/ou “artimanhas para garantir a sobrevivência.
Enfim, dito de maneira resumida: tanto as personagens como os seus comportamentos aculturaram-se ao país, no caso, Brasil e nas suas diferentes regiões. As personagens antropomorfizadas ou não, foram recriadas e enriquecidas com novos tipos humanos, com novas atitudes e reacções, novas travessuras e posturas outras perante o relativismo do bem e do mal, da riqueza e da pobreza. Em síntese, ouvidos os contos e identificados os dramas, as tragédias e as alegrias da condição humana neles efabulados, eles foram incorporados na comunidade, absorvidos e transformados pela mesma comunidade em algo de pertença própria. Tudo isto emoldurado num fundo em que existe e se percebe uma autêntica recriação antropológica ficcional, conformada – reitere-se – ao ambiente para onde os contos orais migraram e passaram a ser património da região.
É assim que temos no conto «Os Compadres Corcundas» uma acabada narrativa de personagens, ou melhor de duas personagens que só na aparência física se assemelham, porque ambas corcundas, mas enquanto um era pobre, humilde e amigo de ajudar o próximo, o outro era rico, vaidoso e ambicioso desmedido. O conto de final exemplar gira à volta da virtude e do pecado, dois ditames antagónicos que coexistem no ser humano em divergência constante um contra o outro e o caso contado não foge a este figurino esquemático. No final do conto, naturalmente que a virtude e a humildade são copiosamente recompensadas e o vício e o pecado severamente punidos.
O interessante do enredo do conto «Os Compadres Corcundas» reside também nas informações que vão sendo dadas sob forma de juízos de valor social e ditas de uma forma aparentemente despicienda. É que, enquanto: «o povo do lugar vivia mangando do corcunda pobre» assim se inicia a narração, ninguém «reparava no rico» que também era corcunda. A medida que se adensa a narração das desventuras do «corcunda pobre» pois ele é o protagonista, o universo mágico por onde ele circula vai-lhe preparando a alteração para a riqueza e para a bem-aventurança próximas pois que ele não desrespeitou os preceitos cristãos religiosos ao acrescentar à cantiga de roda dos seres mágicos (seus benfeitores finais) a sua quadra de versejador repentista: «Segunda, terça-feira / Vai, vem! /E quarta e quinta-feira / Meu Bem!
Opostamente, embora sem o saber, mas com ambição desmedida, quando lhe chegou a vez, o «corcunda rico» a quem «a medida do ter, nunca se enche» querendo ser compensado como o outro compadre que, para além de rico se tornou «esbelto», quis acrescentar também a cantoria dos duendes da floresta encantada, dizendo desastradamente: «Sexta, sábado e domingo! / também!» Ora, não guardou os dias santos. A assomar aqui o intertexto religioso cristão de clara influência cultural portuguesa/europeia.
Remate final do conto «Os Compadres Corcundas»: o corcunda rico, além de muito espancado fisicamente pelos duendes em fúria, ficou com dupla marreca, isto é, com mais «aquela de que o compadre pobre se livrara» para se lembrar do pecado e do atrevimento cometidos.
Outro dado singular deste conto é que o universo da história se desenrola em ambiente muito masculino, não há presença feminina explicitada. O conto respira: “Muita briga,” “caçador esforçado,”trabalho duro,” “força física” são os elementos e os requisitos constantes de que se compõe toda a acção do conto.
Entrando agora no dos outros contos, este intitulado, «Bicho de Palha» somos remetidos intertextualmente, e diria que quase de imediato, para a universal «Gata Borralheira» dos Irmãos Grimm. Aliás, este paralelismo, esta similitude temática de base entre as duas narrativas, já foi e tem sido objecto de análises comparativas de ensaístas, de críticos literários e de antropólogos brasileiros de renome, de entre os quais destacaria o insigne folclorista Luís da Câmara Cascudo.
Continuando com o conto «Bicho de Palha» aqui e agora a jovem bonita, de seu nome Maria, que nascera de família rica e educada, mas que devido às viagens constantes, ao novo casamento e o posterior desaparecimento do seu progenitor, ela ficou entregue aos maus-tratos da madrasta; à inveja por parte da meia-irmã feia e, para cúmulo, é alcunhada por todos da vizinhança de Bicho de Palha, «graças ao seu vestido singular (…) uma grande capa de palha entrançada com um capuz…» o tipo de vestuário que diariamente envergava para não lhe serem reconhecidos os traços de beleza aristocratas, pois que a função que exercia era de serva. Tal como a homóloga europeia, (Gata Borralheira) Bicho de Palha, tropical/brasileira, tem também uma protectora, uma fada – disfarçada sob a forma de uma velha bondosa – e igualmente irá ao baile do princípe por quem está apaixonada e será retribuída com igual afecto; a sedução fará bem o seu jogo entre os dois; a “Bicho de Palha” terá também direito ao teste do sapato de cristal. O casamento final é abençoado pelos reis e a fada velhinha então revela-se. Afinal, era ela, nada mais, nada menos, do que a “Nossa Senhora!” A arquitectura deste conto oral acaba por ser clássica com os três momentos: o primeiro, de equilíbrio pois que supõe a infância tranquila de Maria repleta de afecto e de bem-estar; o segundo, de desequilíbrio e de muita instabilidade, dá a conhecer toda a saga da “Bicho de Palha” e, por último, o terceiro momento em que se dá a transformação de novo na “Maria” original, mas agora adulta, bela e amada pelo Príncipe. Repare-se no simbolismo da fada que não é uma “encantada” qualquer, é a santa maior (Nossa Senhora) de entre todas.
Ora isso faz-nos identificar e reconhecer de novo o fundo religioso que se implica de certa forma no conto, dado que buscado na própria realidade do quotidiano. Dito de outro modo: a iconografia sagrada e os ritos cristãos funcionam como “hiper-texto” em grande parte das manifestações folclóricas, tradicionais e populares das regiões e dos povos que possuem a base histórica/linguística comum portuguesa.
Além do mais, num dos contos, temos de volta o eterno Pedro Malas Artes, ou Pedro das Malas-artes ou ainda Pedro Malasartes, como é mais conhecida esta personagem. Possivelmente terá “viajado” do Portugal quinhentista para as terras de Vera Cruz, pois que é personagem recorrente no conto tradicional português – em recolhas feitas por Teófilo Braga e outros autores – com incidência nos contos tradicionais orais alentejanos.
Desta feita e no conto aqui presente, o nosso pícaro e manhoso “Malasartes,” um exímio e ardiloso mestre na arte da sobrevivência, engana a todos, incluindo o próprio rei, ao prometer-lhe que em troca de “três bilhas de azeite” lhe traria ao palácio “três mulatas moças e bonitas”. Ora bem, com a oferta real em mãos, sai Pedro Malasartes pelo mundo, na aventura de conseguir sustento e de cumprir com o prometido ao rei. Pelo caminho vai enganando, torpedeando e ludibriando tudo e todos até conseguir em pleno os seus objectivos.
Outra narrativa muito interessante é o conto «Mãe do Ouro» que introduz na história narrada alguns elementos que me parecem pertencer ao maravilhoso de matriz cultural dos índios. A começar, a simbologia do nome e do significado na narrativa da personagem/protagonista “Mãe do Mundo” cosmogónica, abrangente, onde começa e acaba a natureza, que «vira nascer o primeiro Deus» de tão velha e antiga que era, pois «que até parecia haver a morte se esquecido dela». Narra-nos o conto que com o decorrer do tempo e ciclicamente, nas noites de lua cheia acontecia um ritual, a “mãe do Mundo” acompanhada de uma jovem de boas virtudes, banhava-se num lago e era por ele tragada. Passara o testemunho. Reaparecia transformada em mulher-serpente cujas escamas eram de ouro; daí o novo nome que intitula o conto: «Mãe do Ouro». Assim, através dela vem a explicação fantástica do renascer constante e eterno da terra e da água (ambas prefiguradas em mulher) que geram os demais elementos da natureza.

Fazendo agora um pouco a “narrativa tradicional oral comparada” se assim me é permitido expressar, a propósito dos contos acabados de ler e que foram pretextos desta singela nota de leitura, (re)contaria também que outrora em Cabo Verde as contadoras de histórias mágicas e de encantar, mas igualmente exemplares, pois que quase sempre continham algum ensinamento, ilustravam algumas normas de comportamento mediante castigos e recompensas – nisso as histórias contadas em crioulo, e/ou em crioulo/português adaptadas ao Arquipélago e, por vezes, às singularidades de cada ilha, não diferiam muito em finalidade com o que acontecia ou acontece noutras partes do nosso mundo – terminavam-nas regra geral com as seguintes lengalengas ou sentenças «história, história, fartura do céu, ámen!» (ilhas de barlavento) «quem souber mais que conte melhor» (ilhas de sotavento). Tudo isso dito oralmente nas variantes do crioulo das ilhas ou Língua cabo-verdiana. Logo, um final, ou melhor, uma “suspensão” a adivinhar continuidade, desde que se verificassem algumas condições: «fartura do céu…» e mais estórias por e para contar.
As histórias, normalmente destinadas às crianças tinham, ou podiam ter, também entre o auditório ouvinte adulto. Regra geral, os contos orais só deviam ser narrados, depois do pôr-do-sol ou, como então se dizia: à «boquinha da noite», ao anoitecer e nunca antes. O que faz supor a existência de um ritual em termos de tempo de lazer que não devia ser roubado ao tempo do trabalho. De tal modo assim era respeitado a hora de contar histórias que se tal narração acontecesse antes da noite, ou fora de horas, havia ritos a cumprir para que os malefícios que o conto explicitasse não fizessem recair os seus efeitos sobre alguém de entre a assistência. Um desses ritos ou gesto era, por exemplo, de entre os ouvintes do conto, três pessoas, normalmente voluntárias, arrancassem ou simulassem arrancar um cílio das pestanas. Feita esta espécie de esconjuro, a contadora poderia iniciar tranquilamente a sua narração, na certeza, de que embora estivesse a transgredir o preceito da hora apropriada de contar história, lhe seria relevada a eventual falta, e nada de mal sucederia a quem a escutasse.
Para alguns de nós, muitas das histórias escutadas na infância ajudaram-nos a construir, de certa forma, valores e a intuir o lado misterioso, encantado e maravilhoso da vida.
Concluindo, gostaria de declarar que se me fosse pedida alguma recomendação ou sugestão de leitura, ela seria a seguinte: que se leiam os dez contos; da «Princesa Bambuluá» ao «Peixinho Encantado», passando por «O Marido da Mãe D’Água», «Mulher Dengosa», e indo até «O Bem se Paga com o Mal» pois que o resultado da leitura integralmente feita será gratificante por várias razões, mas sobretudo, pela espécie de alegria inicial ou de um regresso ao ponto de partida, que estes contos nos devolvem.
É minha convicção que enquanto nota de leitura, singela como se apresenta este escrito, ela não se deverá alongar muito mais, sob pena de contrariar o objectivo final desejado, pois que nada substitui a intimidade que se vai estabelecer entre o leitor e o conto. Por isso mesmo convido-o, caro leitor, a ler estas pequenas – “ariscas,” “delicadas” e deliciosas ao mesmo tempo – peças culturais saídas de um criador colectivo, prenhes de prefigurações, de ícones e de símbolos da cultura miscigenada e rica que é o folclore brasileiro.
Para fechar mesmo estes apontamentos que me seja permitido voltar de novo ao universo de um dos contos ora colectados, «A Princesa Bambuluá,» e fazer minhas as palavras da narradora do conto: “Eu estava lá e vi tudo, e trouxe um boião de doces, mas, na Ladeira do Escorrega, escorreguei, caí e se quebrou tudo…”
Que perdure o maravilhoso!


OBS – Este texto foi elaborado a pedido do IILP (Instituto Internacional da Língua Portuguesa) para uma colectânea de contos tradicionais da CPLP.

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